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Um presente da deusa Ciência
por Evanildo da Silveira
O cerrado deve muito à ciência. Foi ela que moldou seu presente e poderá garantir seu futuro. Graças ao trabalho de cientistas – melhorando espécies, modificando a terra e criando novos métodos de cultivo, por exemplo –, essa imensa savana de solos pobres e sujeita a secas se transformou numa das mais importantes áreas agrícolas do Brasil e do mundo. Do mesmo modo, são as pesquisas científicas de hoje que poderão tornar possível a transformação de sua enorme biodiversidade em riqueza para o país, na forma de novos medicamentos, cosméticos e outros produtos oriundos de substâncias extraídas de suas plantas e animais. E são elas que poderão, ainda, criar uma maneira de aproveitar todo o potencial da região, agropecuário ou natural, de forma sustentável, garantindo sua preservação.
Até algumas décadas atrás, o cerrado era visto como um ecossistema pobre e desinteressante, com uma vegetação raquítica e pouco diversa, de onde quase nada se poderia aproveitar. Com 207 milhões de hectares, o que representa cerca de 24% do território nacional, esse bioma é o segundo maior do Brasil – atrás apenas da Amazônia. Suas vastidões vazias começaram a ser ocupadas no século 18, com a mineração de ouro e pedras preciosas. Junto com essa atividade surgiram os primeiros povoados.
Esgotadas essas riquezas minerais, os habitantes da região tiveram de descobrir outra forma de ganhar a vida. A alternativa que vingou foi a pecuária extensiva, a principal atividade econômica daquelas paragens até praticamente o final da primeira metade do século passado. Com a construção de Brasília, na virada dos anos 1950 para os 60, começaram a surgir estradas e ferrovias, pelas quais chegaram os migrantes. Eles vinham atraídos pelas políticas agrícolas desenvolvimentistas do governo, que queria integrar aquele território ao restante do país. Assim foram criadas as condições para a expansão da agricultura comercial.
Foi então que a ciência começou a mostrar todo o seu peso no destino do cerrado. Graças a ela, a região foi incorporada ao processo produtivo da agropecuária nacional. Hoje, de sua área total, cerca de 139 milhões de hectares são agricultáveis. “Além disso, tecnologias recém-desenvolvidas para a recuperação de áreas degradadas, como a integração lavoura-pecuária-floresta, permitirão ao Brasil, nos próximos dez anos, destinar mais cerca de 10 milhões de hectares à produção de grãos, carne e madeira”, afirma o engenheiro agrônomo e pesquisador José Roberto Rodrigues Peres, hoje chefe de gabinete da presidência da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “Essa incorporação ocorrerá sem a derrubada de uma árvore sequer”, acrescenta ele.
O fato é que de nada serviria toda essa imensidão de terras sem o trabalho dos cientistas. Antes da intervenção deles, a baixa fertilidade natural da região e a distribuição irregular das chuvas eram fatores que limitavam seu uso para a agricultura e a pecuária. “O desenvolvimento de técnicas de manejo e conservação foi essencial para o uso racional desses solos”, diz Peres. “As pesquisas proporcionaram a descoberta de processos de adubação e calagem [aplicação de calcário] com rendimentos de máxima eficiência econômica e respeito ao meio ambiente.” Além disso, técnicas que tornaram possível o desenvolvimento mais profundo das raízes propiciaram melhor aproveitamento do estoque de água dos solos, importante para enfrentar os períodos de estiagem que ocorrem em plena estação chuvosa, os chamados veranicos.
Sem erosão
O plantio direto é outra tecnologia que melhora o aproveitamento das terras do cerrado para a agricultura. Trata-se de um sistema de manejo conservacionista, cujas principais características são a semeadura sem revolvimento do solo, a rotação de culturas e a cobertura permanente da terra, seja com plantas em desenvolvimento seja com restos da lavoura anterior. Na década de 1990, essa técnica era empregada em cerca de 11 milhões de hectares, número que hoje subiu para mais de 18 milhões. Além do aumento da produtividade, da melhoria da qualidade do solo e de avanços no aproveitamento da água, a maior vantagem do plantio direto é a capacidade de evitar a erosão. “Estudos mostram que anualmente deixam de ser erodidos quase 100 milhões de toneladas de terra rica em nutrientes e que mais de 18 bilhões de metros cúbicos de água são mantidos no solo”, informa Peres. “Com isso, estima-se que ocorra uma economia da ordem de R$ 1 bilhão a cada ano.”
Não foi somente o uso da terra que a ciência aperfeiçoou, no entanto. As próprias plantas passaram por melhoramentos para se ajustar às condições climáticas e ambientais do cerrado, diferentes daquelas de onde elas são originárias. Nesse aspecto, não é possível falar do assunto sem mencionar a soja, um dos mais bem-sucedidos exemplos de adaptação à região. Na China, onde ela surgiu, seu plantio ocorre sob condições de dias longos. “Quando cultivada em áreas próximas ao Equador, ou seja, com dias de praticamente 12 horas de luz, ocorria florescimento precoce e, como consequência, a produtividade de início era irrisória”, lembra o engenheiro agrônomo Magno Antônio Patto Ramalho, doutor em genética e melhoramento de plantas e professor da Universidade Federal de Lavras (Ufla). “Os melhoristas brasileiros tiveram de obter cultivares com período juvenil [que antecede a floração] longo.” Com isso, mesmo sob dias curtos, o cultivo tornou-se economicamente viável. Em apenas quatro décadas, a produção de soja no país cresceu 12 vezes.
O pesquisador ressalta que esse aumento se deu mais pela melhoria da produtividade que pela expansão da área cultivada. Dados citados por Peres, da Embrapa, dão razão a Ramalho. “A soja é o exemplo mais marcante da competitividade da agricultura nacional”, diz. “Sua produtividade média passou de 1.693 quilos por hectare em 1988 para 2.912 em 2009/2010, representando um aumento de 72%.” Esse incremento, de acordo com ele, está alicerçado no avanço tecnológico, o que gera o diferencial do agronegócio do país. Nos Estados Unidos, a produtividade nos últimos dez anos cresceu apenas 6,5%. “Um ponto relevante é que, enquanto o produtor brasileiro se tornou competitivo por meio do avanço do uso de tecnologia, o americano depende de subsídios à produção e comercialização para garantir rentabilidade”, compara Peres.
Há outros dados que não deixam dúvidas quanto à importância econômica do cerrado. Números da Embrapa de 2006 – os mais recentes disponíveis – sobre o bioma mostram que 61 milhões de hectares eram ocupados por pastagens cultivadas, 14 milhões de hectares por culturas anuais e 3,5 milhões de hectares por culturas perenes e florestais. Segundo estatísticas atuais da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na safra de 2010, o cerrado foi responsável por 60% da produção nacional de soja, 83% da de algodão, 59% da de milho, 18% da de arroz e 17% da de feijão. Além disso, ele abriga 41% dos 190 milhões de bovinos do rebanho nacional, respondendo por 55% da produção brasileira de carne e 41% da de leite.
Áreas degradadas
Tudo isso, no entanto, tem um preço. Num artigo intitulado “Produção Agrícola e Conservação no Bioma Cerrado: É Possível Evitar este Conflito de Escolhas?”, os pesquisadores José Felipe Ribeiro e Carlos Eduardo Lazarini da Fonseca, da Embrapa Cerrados, e Maria Cristina de Oliveira, da Faculdade de Ensino Superior de Catalão, no estado de Goiás, dizem que algumas falhas no planejamento e nas técnicas adotadas na agricultura e na pecuária da região causaram a degradação de muitas áreas. Entre os problemas originados pelo manejo agrícola inadequado, os autores citam a erosão hídrica e eólica, o assoreamento e a poluição de rios e lagos, a degradação da vegetação, com a perda de biodiversidade, e a invasão biológica causada por dispersão de espécies exóticas. A principal consequência disso é o conflito entre a agricultura e o ambientalismo.
Segundo o geógrafo Eguimar Felício Chaveiro, da Universidade Federal de Goiás (UFG), a utilização indevida tem trazido grandes prejuízos ao bioma. “Ele tem potencial para diversos tipos de usos, mas o modelo de desenvolvimento adotado tem destruído parte considerável dessa riqueza, transformando-a em pobreza”, critica. “Há, inclusive, uma contradição: fazem do cerrado uma marca, mas o destroem; enaltecem seu valor mas consagram um modelo de desenvolvimento econômico que extingue parte de sua diversidade genética e cultural. Há problemas de erosão genética, de degradação de matas ciliares, repercutindo em seus componentes hídricos. Já se vê o secamento de vários canais e a extinção de algumas espécies de animais como, por exemplo, o tatupeba.”
A pesquisadora Mercedes Bustamante, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), aponta outro problema que a região tem de enfrentar: a falta de atenção, na comparação com outros biomas do país. “Enquanto existe uma preocupação nacional e internacional com o desmatamento na Amazônia, há pouca divulgação sobre o acelerado processo de degradação do cerrado, que constitui a savana mais diversa do mundo e é origem de três grandes bacias hidrográficas brasileiras [Tocantins, São Francisco e Prata]”, lamenta. “Entender como é essa região, que apresenta zonas de contato com os principais biomas brasileiros [Pantanal, Amazônia e caatinga], e divulgar esse conhecimento em nível nacional e internacional é urgente para reverter o processo atual de uso e ocupação e preservar os remanescentes de vegetação nativa.”
Aqui, de novo entra a ciência, agora num duplo papel. Primeiro, fazendo justamente isso que Mercedes defende, ou seja, tentando alargar o conhecimento que se tem sobre o bioma, para melhor entendê-lo. “A ciência tem apresentado propostas de manejo, de monitoramento e de levantamento de informações”, diz Chaveiro. É graças a ela que estão sendo criados mapeamentos para demonstrar impactos negativos, suscetibilidades e tipos de uso, além de um banco de dados sobre a biodiversidade da região. No segundo papel, em pesquisas mais pontuais, os cientistas atuam catalogando e estudando as plantas e animais do cerrado, em busca de novas substâncias que possam ter aproveitamento comercial.
Um exemplo disso é o trabalho do farmacêutico Fernando Batista da Costa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP). Doutor em química orgânica, ele pesquisa com seu grupo, desde 1997, as plantas daquela região, em especial as da família do girassol, além de alguns microrganismos retirados delas ou do solo. “O objetivo é investigar a natureza e a função de seus constituintes químicos, denominados ‘metabólitos secundários’”, diz. “Estudamos também como esses metabólitos podem ser aproveitados de forma racional, no contexto da bioprospecção.”
Costa ressalta ainda a importância de estudar a riqueza presente em plantas e microrganismos do cerrado brasileiro do ponto de vista farmacêutico, medicinal e biológico, tendo a química como pano de fundo. “Os resultados desse tipo de investigação são importantes para que a sociedade entenda que esse bioma deve ser preservado e que pode ao mesmo tempo ser explorado, porém de modo sustentável”, afirma. “Até agora, nosso trabalho rendeu o isolamento de mais de uma centena de produtos naturais, um quarto deles descritos pela primeira vez na literatura científica.”
Além disso, o grupo de Costa montou um banco de dados com estruturas químicas e “bibliotecas” de substâncias puras e de extratos vegetais, que estão disponíveis para pesquisas futuras. Muitos deles foram testados em diferentes sistemas biológicos, tais como cobaias, células animais e humanas, enzimas, insetos, parasitas e microrganismos. Com isso, foi possível conhecer um pouco sobre suas atividades biológicas e farmacológicas, bem como discutir suas possíveis funções ecológicas e fisiológicas. Alguns dos compostos estudados revelaram ter importância farmacêutica ou potencial de aplicação em outras áreas, como a agroquímica e a de cosméticos.
Remédio para o coração
Em certo sentido, o trabalho do biólogo Cesar Koppe Grisolia, da UnB, foi um pouco além e é um exemplo do potencial da biodiversidade do cerrado. Depois de dez anos pesquisando as propriedades do pequi, fruto do pequizeiro (Caryocar brasiliense), típico da região, Grisolia desenvolveu um produto com efeitos fitoterápicos, que ajuda a evitar a formação de placas de gordura nos vasos sanguíneos, diminuindo assim o risco de problemas cardíacos. Em forma de cápsulas, ele deverá chegar ao mercado no ano que vem. “É um produto revigorante, que incrementa as funções fisiológicas”, explica o biólogo.
A descoberta não é o único resultado dos dez anos de pesquisa de Grisolia. O trabalho rendeu ainda a publicação de mais de dez artigos científicos sobre o assunto. Além disso, segundo Grisolia, o projeto criou um modelo de exploração sustentável, com geração de trabalho e renda para as comunidades rurais da região. “Para quem acha que pesquisa só é importante quando se consegue um ganho econômico, fizemos um fitoterápico”, diz. “Mas meus estudos também levam em conta aqueles que acham que manter a biodiversidade é uma questão de respeito às outras formas de vida.”
Num panorama mais amplo, Mercedes, por sua vez, vem atuando há mais de uma década naquele primeiro papel da ciência, o de expandir o que se sabe sobre a região, realizando pesquisas que abarcam todo o bioma ou grande parte dele. Ela estuda os impactos das mudanças na cobertura vegetal e do uso da terra no funcionamento de sistemas amazônicos e do cerrado, com foco na quantificação dos fluxos de gases de efeito estufa do solo para a atmosfera. Em outras palavras, vem pesquisando em que medida a transformação da vegetação nativa da região, principalmente em áreas agrícolas ou de pastagens, contribui para o efeito estufa e o aquecimento global.
Segundo Mercedes, esse é um bioma que tem muito carbono fixado no solo, em especial nas raízes da vegetação, que são muito profundas devido à escassez de água próximo à superfície. “O cerrado é como uma floresta de cabeça para baixo”, diz Mercedes. “Há mais biomassa vegetal enterrada no solo do que na parte aérea. Ao mexer nisso, revolvendo a terra para a agricultura, uma grande quantidade de carbono e outros gases de efeito estufa, como óxido nítrico e óxido nitroso, é liberada para a atmosfera.”
A pesquisadora lembra que, juntos, o bioma amazônico e o cerrado ocupam a maior parte do território nacional e, além de abrigar enorme biodiversidade, realizam vários serviços ambientais relevantes, como regulação climática, manutenção da qualidade do ar e conservação de recursos hídricos – uma situação que vem sendo comprometida pela intensificação das queimadas e do desmatamento na região. No acumulado até 2009, já haviam sido destruídos 48,2% da vegetação nativa, ou seja, quase 1 milhão de quilômetros quadrados.
De acordo com Mercedes, essas mudanças no uso da terra estão entre as principais causas da emissão de gases de efeito estufa, em especial dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nítrico (NO) e óxido nitroso (N2O). Em suas pesquisas, ela descobriu que com frequência as áreas de vegetação nativa queimada apresentaram maiores emissões anuais de carbono do solo para a atmosfera. Quantificando esse volume, ela concluiu que as queimadas no cerrado liberam 16,9 toneladas de carbono por hectare ao ano.
Os resultados das pesquisas de Mercedes, Costa, Grisolia e centenas de outros cientistas que se dedicam a estudar o cerrado representam uma grande contribuição para o conhecimento do bioma e dos impactos de mudanças no uso da terra, sendo, assim, fundamentais para o adequado manejo e a conservação das áreas nativas.