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Diabetes, quase uma epidemia
por Miguel Nítolo
A fadiga estava criando embaraços ao comerciante Paulo Malimpensa Neto, empresário do ramo de camisetas personalizadas de Salto, no interior de São Paulo. O ânimo tinha dado literalmente no pé e a canseira fincava barreiras a suas atividades, situação que foi ficando insustentável para quem, como ele, sempre se portou com vivacidade à frente dos negócios.
“Em situações como essa você pensa em tudo”, diz Malimpensa, que foi eliminando, uma a uma, as possíveis causas que, em seu entendimento, podiam estar por trás do irritante desconforto. Ele dorme o suficiente, não é anêmico, não sabe o que é depressão e até hoje apenas leu alguma coisa sobre hipotireoidismo, quadros que podem levar ao estado em que ele se encontrava e que, muitas vezes, confundem até os entendidos, dada a similaridade dos sintomas. Se não tinha nenhuma dessas anomalias, “o que está acontecendo comigo?”, ele se perguntava. A resposta só encontrou quando procurou a ajuda de um médico, o certo e recomendado em situações semelhantes.
Em agosto passado, exames de sangue deram a esse empresário saltense de 52 anos o diagnóstico que tanto procurava. “No pico da crise, no hospital, fiquei sabendo, a contragosto, que sou diabético”, relata Malimpensa, acrescentando que a quantidade de glicose no sangue, naquela oportunidade, havia chegado a 709 mg/dl, sete vezes mais que a taxa-limite estabelecida pelos especialistas (100 mg/dl). Ele conta que andou pesquisando a vida e a saúde dos antepassados, tendo descoberto que seus pais, avós e bisavós não tiveram a doença. “Jamais poderia imaginar que seria o premiado da família”, lastima-se.
Na realidade – e talvez Malimpensa não se dê conta disso –, casos como o dele há muito tempo deixaram de ser exclusivos de pequenos grupos, afetando um contingente cada vez maior de pessoas. E é certo que no instante em que ele era informado pelo médico sobre a moléstia que o afligia, uma infinidade de outros brasileiros recebia a mesma notícia. O avanço da doença acelerou-se de tal forma de uns tempos para cá, que alguns especialistas já falam claramente em epidemia. “Penso que 12 milhões de brasileiros são diabéticos”, diz a médica endocrinologista Marília de Brito Gomes.
Registros antigos
Professora-associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e médica do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), Marília é autora de estudos que retratam a escalada no país de uma enfermidade cujos primeiros registros remontam a mais de 3,5 mil anos. Papiros descobertos no Egito já faziam menção aos sintomas da doença, mas foi somente no século 2 da Era Cristã que o nome “diabetes” – sifão, em grego – passou a denominar uma curiosa anormalidade. No dizer do médico Areteu, da Capadócia – o primeiro a discorrer sobre ela –, tinha como característica a eliminação exagerada de água pelos rins (daí a alusão a sifão).
Transcorreram muitos séculos até que a medicina conseguisse entender a estranha moléstia, suas causas e consequências, e obtivesse relativo êxito no tratamento e no desenvolvimento de novas terapêuticas. É sabido que a doença do comerciante Malimpensa deriva do funcionamento irregular do metabolismo da glicose, um combustível para trilhões de células que compõem o organismo humano. Obtida a partir dos alimentos, notadamente os carboidratos, a glicose é introduzida nas células pela corrente sanguínea, uma operação crucial porque é assim que o açúcar que está no sangue pode ser utilizado como energia pelo corpo. Cabe à insulina, um hormônio secretado pelo pâncreas, a tarefa de manter em perfeito funcionamento essa engrenagem, facilitando o ingresso do açúcar nas células. Nas pessoas sadias, a oferta de insulina acompanha passo a passo as taxas de glicose do organismo, e o hormônio é liberado na exata medida das necessidades. Quando não há a produção de insulina ou ela é ineficiente, diz-se que o indivíduo está com diabetes.
Dessa forma, limitada ao sangue porque não consegue entrar nas células, a glicose acaba por causar sérios danos aos vasos sanguíneos e expor a perigo praticamente todos os órgãos e tecidos do corpo. Como não é armazenado e tampouco utilizado pelas células, o açúcar acaba tendo um final inglório: depois de circular pelo organismo, causando estragos pelo caminho, é eliminado pelos rins quando, explicam os médicos, os níveis de glicose já alcançaram a taxa de 200 mg/dl. Nesse momento, conforme a observação feita no passado por Areteu, ocorre a eliminação exagerada e constante de urina. Além disso, instala-se um quadro de fome frequente e sede continuada, só que nesse caso em decorrência da desidratação. Esses sinais, que em parte das vezes são reveladores da presença do diabetes, podem vir acompanhados de outros sintomas, tais como perda de peso e perturbações no campo visual.
É comum, entretanto, a doença não mandar recado. Gregório de Lima de Souza, médico endocrinologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, diz que o diabetes se caracteriza por um quadro silencioso e insidioso, e que quando aqueles alarmes não soam, o doente não percebe a gravidade da situação. “Nós, que trabalhamos diariamente com o diabetes, temos elevada preocupação com o aumento do número de casos da doença”, salienta.
Segundo cálculos de alguns especialistas, é possível que metade dos diabéticos não saibam que têm a doença, levando a vida indiferentes aos riscos dessa circunstância, até o dia em que as complicações derivadas da alteração das taxas de açúcar no sangue mostrem sua face mais cruel: amputação de membros, cegueira, derrame, impotência sexual, infarto e insuficiência renal. O fato é que quanto mais se retarda o diagnóstico e o tratamento, mais a moléstia caminha.
Corpos estranhos
É do conhecimento geral que a doença se manifesta de duas maneiras, e elas são tratadas pela nomenclatura médica de diabetes tipo 1 e tipo 2. Sabe-se que o tipo 1 (DM1), chamado no passado de diabetes infantil, o mais hostil e agressivo deles, deriva da destruição, pelo sistema imunológico, das ilhotas de Langerhans – as células pancreáticas que produzem insulina – e tem a particularidade de acometer com mais frequência as pessoas com menos de 30 anos. Isso porque, mesmo que os exemplos sejam raros, ela também faz vítimas entre os mais velhos. Ainda é um mistério como tudo acontece: sabe-se apenas que as ilhotas de Langerhans são identificadas como corpos estranhos pelo sistema de defesa e, por isso, aniquiladas. Processo semelhante acontece entre as pessoas portadoras de esclerose múltipla e lúpus.
Ivan dos Santos Ferraz, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e professor do curso de pós-graduação em endocrinologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) informa que 10% dos indivíduos diagnosticados com a doença padecem de diabetes do tipo 1, percentual que, entre nós, representa mais de 1 milhão de pessoas, muitas delas ainda menores de 18 anos. Essa faixa etária é uma das preocupações da médica Marília Gomes. Ela coordenou a pesquisa “Estudo Multicêntrico do Diabetes Tipo 1 no Brasil”, investigação que consumiu dois anos (de 2008 a 2010) e é o resultado de entrevistas feitas com 3.591 pacientes de 28 cidades em cinco regiões do país, um trabalho de fôlego que contou com o apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da SBD e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
A professora-associada da Uerj descobriu que apenas 15% dos diabéticos ouvidos têm o nível de glicemia devidamente controlado, o que significa que os outros 85% correm risco de contrair doenças cardiovasculares, amargar amputações, perda da visão e falência dos rins, e de sucumbir num estágio mais avançado da doença. O que choca, segundo Marília, é que esse distanciamento acontece simplesmente porque não há ainda uma consciência sobre a severidade da moléstia. “O problema não é a falta de fitas para medir glicemia e insulina, materiais distribuídos de graça pelo Estado, mas o pouco conhecimento sobre a doença”, diz. Ela acentua que o diabetes é perfeitamente controlável, mas o tratamento, complexo, exige necessariamente o envolvimento de toda a família.
Há aqui um complicador, de acordo com as descobertas do estudo coordenado por Marília. A reduzida escolaridade dos pacientes e a baixa renda econômica familiar – entre um e cinco salários mínimos – de 77,4% dos entrevistados são sérios obstáculos ao tratamento. “Cerca de 6% dos diabéticos ainda em idade produtiva estavam desempregados, licenciados pelo INSS ou aposentados devido aos males decorrentes da doença”, salienta a pesquisadora.
O estudo também mostrou que 71,5% dos doentes entrevistados foram diagnosticados antes dos 15 anos, e cerca de 20% antes de completar 5 anos. “Isso significa que a doença tem início precoce e, portanto, maior chance de evoluir para problemas crônicos, o que implica em maior custo para o Sistema Único de Saúde (SUS) e a sociedade”, acentua a endocrinologista. Uma outra constatação aterradora: “Diagnosticamos o DM1 em crianças com menos de 2 anos”, relata a médica. Ela observa que ainda não se sabem as causas do mal, mas que o excesso de peso e o elevado número de substâncias tóxicas que atacam o pâncreas e estão presentes no ambiente contribuem, sobremaneira, para o surgimento do diabetes. Além disso, ela assinala, “o jovem diabético, muitas vezes, se descuida do tratamento, dando margem ao aparecimento das complicações”.
Os números e os dados revelados pela pesquisa, sustenta Marília, “ratificam a necessidade urgente da implementação de programas eficazes de educação nessa área da saúde”. A endocrinologista coordenou um outro projeto de importância, destinado a levar às instituições de ensino informações sobre o diabetes infantil. O site www.diabetesnasescolas.org.br, desenvolvido pela SBD, foi criado com o objetivo de esclarecer e orientar estudantes, pais e professores sobre a doença e seus sintomas. Marília reafirma que, com a observância de certos cuidados, acompanhamento e alimentação correta, o jovem diabético estará se habilitando a levar uma vida normal. Tendo isso em conta, ela expediu mensagens a milhares de escolas, em todo o Brasil, comunicando a existência dessa página na internet.
Componente hereditário
O diabetes tipo 2, doença cuja incidência é maior nas pessoas com mais de 40 anos, é dez vezes mais comum que o tipo 1 e, ao contrário deste (que requer, necessariamente, a aplicação diária de insulina), pode ser controlado com dieta e exercícios físicos. Em situações mais graves, no entanto, pode requerer o uso de medicamentos e de insulina. Curiosamente, e também de modo diferente do que se verifica no tipo 1, o pâncreas do doente do diabetes tipo 2 continua produzindo insulina. Esta, porém, não é absorvida pelas células, o que leva os níveis de glicose no sangue a subir. Feridas que não cicatrizam ou demoram a sarar, infecções continuadas e visão embaçada são seus sintomas mais comuns. Segundo os médicos, esse tipo da doença tem um forte componente hereditário.
Infelizmente, dizem os especialistas, nem sempre o diabetes faz soar esses alarmes, da mesma forma que – a despeito de todos os avisos e advertências – há aqueles que deixam de dar a devida atenção aos sintomas. Tudo isso reforça a importância da medição dos níveis de glicose sanguínea de tempos em tempos. Em caso de sobrepeso, hipertensão e estresse, colesterol elevado e histórico familiar que reforce a ideia de propensão à doença, recomenda-se que os testes sejam feitos anualmente. O mesmo se aplica a mulheres que tiveram diabetes gestacional (alteração das taxas de açúcar no sangue durante a gravidez).
Há indicadores de que o mal, que já está sendo chamado de “tsunami” por causa do crescimento recorde de novos casos, aqui e no exterior, ainda acabará se transformando num dos maiores problemas de saúde pública em escala planetária. Segundo as estatísticas mais recentes, divulgadas em setembro em Nova York, há mais de 300 milhões de portadores da moléstia em todo o mundo, o que excede em dez vezes os números de 1985. É voz corrente também que o total de brasileiros com a doença poderá dobrar num prazo de 20 anos ou menos.
“Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) projetam um aumento de 72% na prevalência de diabetes nesse período em todo o planeta”, informa Ferraz, da SBD. Ele conta que na América Latina esse incremento será, provavelmente, superior. E como o Brasil é o maior país da região, acolherá, certamente, um número maior de pessoas portadoras de diabetes. O endocrinologista Reginaldo Albuquerque, ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e editor do site www.diabetes.org.br, observa ainda que esse aumento fenomenal de doentes deverá gerar grandes despesas para o sistema de saúde pública em razão dos altos custos do tratamento e das complicações que são próprias da doença.
Obesidade
São muitas as justificativas mencionadas pelos analistas para explicar essas previsões. Uma delas é a obesidade. “Fatores como o sedentarismo e a obesidade estão associados à epidemia de diabetes, e como essas condições são frequentes em nossa população é possível mesmo que tenhamos um grande avanço da doença no país”, diz André Fernandes Reis, professor de pós-graduação em endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Especula-se que em torno de 65 milhões de brasileiros precisam emagrecer e que, pelo menos, outros 90 milhões estão acima do peso. “A obesidade acarreta resistência do corpo à ação da insulina, além de outros distúrbios metabólicos que fazem parte do desenvolvimento da doença”, explica Gregório Souza, da Unesp. Ele informa que o sedentarismo faz com que o organismo deixe de aproveitar melhor o açúcar e as calorias ingeridos, predispondo ao ganho de peso e ao diabetes.
É certo que, como esclarece Reginaldo Albuquerque, nem todos os obesos serão, um dia, diabéticos, mas as pessoas que se encaixam nesse grupo estariam fazendo um bem a si mesmas se aderissem a um estilo de vida mais saudável. Essa receita vale também para os indivíduos identificados pelos especialistas como pré-diabéticos e que, como a própria denominação afiança, denotam um risco potencial ao desenvolvimento da doença (dosagem de glicemia com o sangue coletado em jejum de 8 horas situada entre 100 e 125 mg/dl). “Nem todos evoluirão para o diabetes, mas é uma situação de grande importância (comum em 25% dos adultos) porque a abordagem médica preventiva pode barrar o surgimento da doença”, pondera Reis, da Unifesp.
Além de exercícios e caminhadas, o zíper na boca é, de longe, uma das mais importantes armas com que as pessoas podem contar com a finalidade de dar maior qualidade a sua vida. “O controle da alimentação é uma prática necessária em qualquer tipo de diabetes, e isso vale para todos, da criança ao idoso”, assevera Wilma Amorim, nutricionista clínica e educadora especializada em diabetes. Ela relata que a procura por profissionais da área com o fim de controlar o diabetes tem aumentado, mas o número de novos clientes não guarda proporcionalidade com o acelerado crescimento da doença. “E é comum que, após a primeira orientação nutricional, muitos diabéticos abandonem o tratamento”, diz.
Nutricionista da Unidade de Educação em Diabetes do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede), do Rio de Janeiro, Wilma revela que a resistência às dietas capazes de mudar a história de vida dos diabéticos tem cinco motivações: falta de atendimento médico, oposição à mudança dos hábitos alimentares, dificuldade de acesso a alimentos saudáveis, notadamente no ambiente de trabalho, disparidade entre os horários reais das principais refeições e os padrões convencionais, podendo variar de dia para dia, e mitos alimentares que dificultam a aprovação da dieta sugerida. É um suceder de pretextos que não faz bem, atrapalha o tratamento e torna difícil o controle da doença. “Quando o assunto é diabetes, a disciplina é essencial”, alerta Wilma.