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A arte de uma boa construção

por Henrique Pita

As últimas décadas do século 20 viram crescer, em todo o planeta, a preocupação com o meio ambiente. A palavra da moda, que no passado foi crescimento ou paz social, passou a ser sustentabilidade.

Não faltam razões para os que defendem a nova bandeira. Após as guerras mundiais, a degradação ambiental avançou a passos largos, na esteira de uma industrialização avassaladora. O objetivo de empresas e mesmo de governos era crescer a qualquer custo, sem avaliar as consequências.

O descaso, aliás, é tão antigo quanto o homem. O uso de materiais, ao longo da história, nunca se pautou pela conservação ou economia dos bens fornecidos pela natureza. Ao contrário, as riquezas naturais sempre foram utilizadas com instinto predatório, destruindo-se florestas inteiras sem preocupação com o replantio – fato que ainda ocorre nos dias de hoje em muitas regiões, inclusive no Brasil.

Os ideais da sustentabilidade estão presentes em todas as áreas, seja no ramo empresarial, em que ganharam tanto espaço que rapidamente se transformaram em forte argumento de marketing, seja no dia a dia do cidadão, às voltas hoje com novos termos, altamente valorizados, como reciclagem, produtos biodegradáveis e energia renovável.

Entre os setores influenciados por essa onda, um dos mais sensíveis certamente é o da construção civil. Desde os tempos mais remotos o homem lançou mão da natureza para se proteger dos rigores do clima, construindo abrigos de pedra, barro e madeira. Os conhecimentos adquiridos ao longo dos séculos permitiram que se erguessem verdadeiros monumentos arquitetônicos, que ainda hoje desafiam o passar inclemente dos anos.

O progresso, entretanto, trouxe novos materiais, e o avanço do concreto universalizou o uso de sua majestade, o cimento, acompanhado servilmente pelos painéis de vidro, com notável prejuízo para o conforto, que teve de ser compensado pelo consumo intensivo de energia, seja para aquecimento, seja para resfriamento dos imóveis. À madeira restou servir de material básico utilizado nas formas, barreiras e andaimes, sendo depois descartada, sem nenhum aproveitamento posterior.

Reação

Dominique Gauzin-Müller é uma arquiteta francesa de 51 anos, hoje residente em Stuttgart, que desde seus primeiros estudos especializou-se em construções de madeira e arquitetura ecológica. Após um período em que trabalhou como arquiteta, passou a se dedicar ao ofício de escritora e de professora, sempre fiel ao objetivo de defender e divulgar o uso da madeira e de recursos naturais nas edificações. Em 2001 lançou a obra Arquitetura Ecológica (304 págs.), que a editora Senac acaba de colocar no mercado brasileiro, com tradução de Celina Olga de Souza e Caroline Fretin de Freitas.

A obra, que teve a colaboração dos também arquitetos Nicolas Favet e Pascale Maes, é apresentada ao leitor brasileiro em um alentado prefácio assinado por Marcelo Aflalo, arquiteto e designer, que destaca com vigor e clareza a situação da arquitetura ecológica no país. Ele começa pela comparação do Brasil com as nações europeias, separadas de nós por uma cultura milenar, e evoca a história nacional para mostrar como os moradores do país abençoado por Deus com um infinito estoque de matérias-primas acabaram repelindo toda inclinação para a poupança.

O resultado dessa cultura desastrosa fez-se sentir logo nos primórdios da colonização, quando, apenas para citar um exemplo, a árvore que deu nome ao país praticamente desapareceu. E no decorrer dos anos e séculos foi esse comportamento extrativista e devastador que se fixou nos hábitos construtivos dos brasileiros.

Segundo Aflalo, de certa forma o Brasil praticou arquitetura ecológica durante um período, a partir do século 17, quando predominavam edificações com ventilação e refrigeração passiva, grandes beirais e grossas paredes de taipa. Essas lições, porém, se perderam ao longo do tempo, e outro exemplo disso são as casas de madeira do sul do país, que, levantadas sob influência europeia, sofreram forte desvalorização e rejeição popular, pois as famílias preferiam uma casa “de material”, embora mais dispendiosa.

Aflalo lembra ainda que o uso indiscriminado do cimento, adotado por várias gerações de arquitetos, raramente é ligado aos danos ao meio ambiente. Ao contrário, é valorizado de tal forma que serve de argumento estético ou alimenta arroubos de ousadia ao solidificar em determinado espaço algo espantoso como o maior vão livre do mundo. “Herdamos o pior da tecnologia colonial e insistimos nisso”, afirma ele.

Não faltam, porém, normas, leis e especificações ambientais, embora sejam poucas as instituições isentas, entre elas a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e o Forest Stewardship Council (FSC), cujo selo certifica a madeira utilizada pela indústria, embora não garanta os processos posteriores à colheita. A Fundação Vanzolini, ligada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), também oferece um certificado a empreendedores imobiliários que atendam a certos requisitos de desempenho ambiental dos edifícios. O referencial técnico é baseado no conceito francês de alta qualidade ambiental (HQE).

Outras entidades brasileiras que tratam do assunto são o Conselho Brasileiro de Construção Sustentável (CBCS), uma associação civil de profissionais e empresas, a Associação Nacional de Arquitetura Bioecológica (Anab) e o Instituto de Design para Desenvolvimento Sustentável (IDDS), que promove formação e presta consultoria na área.

Pele de vidro

No Brasil, constata Aflalo, a maioria das construções não conta com a participação de um profissional de arquitetura e, mesmo entre as que têm esse privilégio, poucas dispõem de um projeto adequado ao local e ao clima. Isso significa um acúmulo de desperdícios e consumo desnecessário de energia. O exemplo mais claro são as grandes fachadas de vidro, expostas diretamente ao sol tropical, o que exige o controle interno da temperatura em dias quentes, levando ao uso excessivo de eletricidade.

Um projeto bem-sucedido, diz o arquiteto, é o Edifício Copan, no centro da capital paulista. Assinado por Oscar Niemeyer, o desenho da gigantesca construção controla com habilidade a incidência do sol e a ventilação natural, uma “sabedoria perdida ao longo dos anos, pois o próprio Niemeyer aderiu às peles de vidro em sua obra mais recente”.

Aflalo defende no texto a adequação de todo projeto à realidade econômica e geográfica de sua região. No Brasil há alguns bons exemplos, sendo um dos mais citados a casa Helio Olga Filho, projeto assinado por Marcos Acayaba em 1987. Apoiada em pilares de concreto, a edificação deixa o terreno livre. A topografia local é respeitada e a ventilação é passiva, ou seja, o ar entra por aberturas nos andares inferiores, subindo através de aberturas para o piso superior. O imóvel é dotado ainda de aquecimento solar, incorporado posteriormente, e os proprietários já pensam em instalar células fotovoltaicas para produzir energia.

Outro modelo é o condomínio de casas Vila Taguaí, em Carapicuíba, município da Grande São Paulo. O projeto é de Cristina Xavier e emprega madeira industrializada. O concreto fica restrito às fundações. São oito casas com plantas de desenho variável, que acompanha a topografia, todas com aquecedor solar e previsão para instalação futura de células fotovoltaicas.

A primeira experiência do uso de eucalipto de reflorestamento ocorreu na construção do Residencial Pio IX, projeto de Marta e Marcelo Aflalo. A ideia original nasceu da observação que o casal fez do vasto uso e descarte de madeira nas construções tradicionais. O resultado foi um imóvel com redução total de desperdício de matéria-prima.

O arquiteto cita também um exemplo de construção de maior porte, no caso o edifício que atende à área de pesquisa e tecnologia da multinacional Mahle, empresa do ramo automotivo. Projetada por Roberto Loeb e Associados, a obra foi levantada em Jundiaí (SP), seguindo os princípios de arquitetura ecológica preconizados por Dominique Gauzin-Müller. As instalações acompanham as curvas de nível do terreno, com aproveitamento da luz natural. O controle térmico e da umidade do ar são favorecidos por piscinas instaladas na cobertura, o que garante ainda uma reserva estratégica de água em caso de incêndio.

O livro

Dominique Gauzin-Müller dividiu sua obra didaticamente em quatro partes. Na primeira, discute práticas e perspectivas da arquitetura ecológica; na segunda, trata de urbanismo e desenvolvimento sustentável; a terceira é dedicada a temas relacionados a qualidade ambiental e a última enfoca iniciativas francesas atuais. Com exceção da primeira parte, mais teórica, a autora enriqueceu as demais com exemplos europeus, antigos e recentes, que foram projetados segundo os parâmetros das boas práticas que a autora preconiza.

As questões do desenvolvimento sustentável são abordadas de forma clara, com tópicos sobre degradação dos meios naturais, mudanças climáticas e efeito estufa. Dominique discorre ainda sobre o programa conhecido como Agenda 21 – recomendações para o desenvolvimento sustentável no século 21 – e o Protocolo de Kyoto, estabelecido em 1997 por uma conferência de chefes de Estado comprometidos com o controle dos níveis de emissão de carbono no planeta.

A autora não ignora o contexto político e econômico em que se colocam as exigências da sustentabilidade e suas implicações para os vários setores da economia, com destaque para a arquitetura e o urbanismo. E registra as tendências da arquitetura ecológica, mostrando um interessante confronto entre duas linhas de enfrentamento do problema. De um lado estavam os idealistas do low-tech, ou seja, os que defendiam o uso de materiais oferecidos pela natureza, com o mínimo de intervenção tecnológica. Não faltaram, nessa vertente, projetos de casas feitas de barro e até com coberturas de vegetação.

Os amigos da arquitetura high-tech, por sua vez, optaram por edifícios espetaculares de vidro e aço, propondo soluções tecnológicas para oferecer conforto térmico e economia de energia. Foram obras de grande impacto na mídia, segundo a autora, que tiveram o mérito, pelo menos, de servir de ensaio para transformações. Dominique Gauzin-Müller explica que essas mudanças se traduziram no que chama de humanismo ecológico, ou seja, a adoção de um meio-termo entre as duas correntes. Melhor: a combinação racional entre o uso de materiais tradicionais e produtos inovadores.

Linhas mestras

O uso da madeira na Europa recebe atenção especial da autora. Uma conferência ministerial realizada em 1993 em Helsinque definiu os campos de ação para a comunidade nessa área. As linhas mestras então definidas foram a gestão sustentável do patrimônio florestal, o desenvolvimento do uso de madeira nas construções, a redução do desperdício dessa matéria-prima e o aproveitamento energético da biomassa.

A Comunidade Europeia fixou diretrizes também quanto à eletricidade, com uma política de apoio aos produtores de energia de fontes renováveis e a projetos de redução de consumo nas construções. Essas iniciativas, porém, são consideradas insuficientes pela autora, segundo a qual é indispensável uma abordagem ambiental mais ampla, que se aplique ao planejamento urbano, envolvendo não somente uma cidade, mas até regiões, sempre em favor da dimensão humana.

Dominique apresenta a seguir seis cidades europeias que, explica, colocaram em prática o urbanismo com uma lógica ambiental. O primeiro município citado é Mäder, pequena cidade austríaca onde o desenvolvimento sustentável é praticado em todas as escalas. Após aderir a um plano de recuperação da paisagem, o município plantou em dez anos 60 mil árvores, que, aliadas a um sistema de cercas vivas, exerceram controle importantíssimo sobre o excesso de ventos, enchentes, erosão do solo, protegendo a fauna e controlando as águas pluviais. As árvores plantadas também serviram para o fornecimento de madeira, combustível renovável para uma central de aquecimento que atende os edifícios públicos.

Stuttgart, na Alemanha, é a capital europeia do automóvel, o que não a impediu de se transformar também em uma cidade verde. Com 590 mil habitantes, optou nos anos 1980 por uma urbanização e uma arquitetura influenciadas pela abordagem ambiental. Entre as medidas adotadas merecem destaque a obrigatoriedade de conservar vegetação na cobertura dos edifícios e o emprego de madeira e materiais ecológicos nas escolas e instalações esportivas, inclusive com o objetivo de favorecer experiências sensoriais das crianças. A cidade construiu bairros experimentais, um deles em uma antiga instalação militar, e subsidiou iniciativas voltadas para a economia de energia nas moradias, novas ou antigas.

Apesar de ser um centro industrial, Stuttgart tem apenas 44% de sua área construída. É cercada por florestas municipais adaptadas para o lazer e o esporte, além de contar com inúmeros parques e jardins. O exemplo da cidade levou as vizinhas a elaborar projetos similares, inclusive com a adoção de energia eólica.

Outra cidade citada pela autora é Freiburg im Breisgau, também na Alemanha. Com 215 mil habitantes, abriga grandes centros universitários e unidades industriais voltadas para a tecnologia. Além de uma extensa rede de ciclovias, o município conta com bairros criados de acordo com os princípios do desenvolvimento sustentável.

Amsterdam, na Holanda, com 750 mil habitantes, transformou um antigo conjunto industrial em bairro residencial para 17 mil moradores, entre outras operações urbanas que remodelaram a cidade. A mais curiosa delas foi a criação de um bairro de 600 casas onde não entram veículos motorizados e o transporte predominante é a bicicleta.

O bairro de Viikki, em Helsinque, na Finlândia, também é exemplo de sustentabilidade. Ele abriga um polo de pesquisa e desenvolvimento na área de biociências, que convive harmoniosamente com um centro universitário, uma reserva natural e residências. A cidade conta com quase a totalidade de suas habitações e escritórios ligada à rede pública de aquecimento.

Rennes, na França, também se destaca pelo esforço sustentável. Marcada por grande expansão demográfica, nos anos 1960 teve a sorte de passar por uma administração previdente, que adquiriu vários terrenos tendo em vista um futuro urbano bem planejado.

Novas exigências

Segundo Dominique Gauzin-Müller, a qualidade ambiental envolve três objetivos: conforto dos seres humanos, aproveitamento sustentável dos recursos naturais e controle de resíduos. Esses conceitos, aplicados à arquitetura, impõem novas exigências no processo de construção e requerem mudança de comportamento de profissionais e usuários. A colaboração interdisciplinar torna-se indispensável, assim como a fusão inteligente de práticas tradicionais e técnicas inovadoras.

O consumo racional de energia é um dos fatores principais, que envolve práticas múltiplas, desde o aproveitamento passivo da luz solar até técnicas de isolamento e contenção do ar, calefação, uso de vidros de forma inteligente e ventilação e iluminação naturais. A gestão ecológica da água é outro item de peso, contemplando metas como coleta de águas pluviais, instalação de vegetação nas coberturas e reúso de água.

No que tange à madeira, material reciclável que pode ser objeto de certificação que garante a proteção à natureza, o livro registra diversos modelos de construção europeus que a utilizam, todos com a característica de integração com o meio natural. Outro destaque é a escolha de espécies duráveis, reduzindo o uso de inseticidas e impermeabilizantes, e a opção por madeiras disponíveis no local ou na região.

A energia solar também é privilegiada. Um bom exemplo é o empreendimento experimental de Ölzbündt, bairro residencial de Brégence, na Áustria. São três níveis solidamente instalados sobre um subsolo de concreto, totalmente recobertos de madeira, com vidros triplos nas janelas. Na cobertura, coletores solares garantem o fornecimento de água quente. Vale ressaltar que, apesar das inovações, o custo da edificação ficou apenas 5% acima do de uma construção convencional.

Os modelos de construção apresentados são sempre adaptados à região em que estão instalados, e essa é, aliás, a mais simples e tangível das técnicas de conservação ambiental. É um dos segredos da boa arquitetura, que cada vez mais precisa ser ecológica, não por modismo ou apelo mercadológico, mas por exigência do mundo moderno.