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Um velho sonho que enfim se realiza

por Cecilia Prada

Definido como o Ano de Portugal no Brasil e vice-versa, 2012 ensejará dupla oportunidade para reavaliar os laços culturais, afetivos e até genéticos que nos ligam ainda à antiga metrópole. O primeiro elemento dessa avaliação concentra-se justamente na língua portuguesa: pois o ideal da “lusofonia” – isto é, o desejo de que nossa língua deixasse de ser minoritária, desconhecida, confundida com o espanhol e carregando aquela espécie de mortalha permanente em que em má hora a envolvera Bilac, “última flor do Lácio, inculta e bela” etc., enfim, a ideia de vê-la difundir-se, congregar várias comunidades políticas e sociais de expressão universal, deixou de ser um sonho: é uma realidade.

Atualmente o português é a quinta língua mais falada no mundo (272,9 milhões de pessoas) e a primeira do hemisfério sul, mantendo, apesar de significativas diferenças vocabulares ou fonéticas, uma reconhecida unidade de expressão – sendo que de cada cinco falantes, quatro vivem no Brasil. Prevê-se que, com o desenvolvimento das novas nações africanas e a plena emergência do Brasil como potência, a população geral de lusófonos venha a ser de cerca de 335 milhões, por volta de 2050. Além disso, cogita-se que o português se torne uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU).

Iniciativa importante também, para congraçamento e intercâmbio cultural, foi a criação, em 1996, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sediada em Portugal, que reúne os oito países em que o português é a língua oficial, ou pelo menos uma delas. Abrangendo quatro continentes, são eles hoje: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, e Timor-Leste.

Patrimônio cultural

Com tão rico instrumental linguístico, o que exatamente se processa atualmente, em termos de expressão literária, nos países lusófonos do mundo? Em Portugal, após o período de trevas e modorra dos 42 anos de ditadura salazarista (de 1932 a 1974), para espanto geral emergiu uma plêiade de escritores do mais alto nível, poetas e romancistas que tomaram mundialmente a dianteira no cenário da língua portuguesa – uma contrapartida do que se passara no tempo do romance brasileiro do Ciclo do Nordeste (1930/40), que tivera influência inclusive sobre a própria literatura de Portugal.

Desse grupo faziam parte já, nos anos 1970, dois geniais romancistas que até hoje dominam o cenário lusófono: José Saramago, falecido no ano passado, que se tornaria em 1998 o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, e António Lobo Antunes, situado no mesmo nível e considerado mesmo até hoje por grande parte da crítica especializada mundial como o mais qualificado para ganhar o disputado troféu. Como diz o escritor e professor brasileiro Nelson de Oliveira, autor de uma tese de doutorado sobre esse romancista: “A geração pós-Revolução dos Cravos, de modo geral, alimentou-se muito da história recente portuguesa, principalmente da profunda crise colonial. Lobo Antunes e Almeida Faria, por exemplo, escreveram sátiras pós-modernas protagonizadas por heróis da história lusitana, como forma de criticar as pretensões imperialistas. Esses e outros autores procuraram se vingar da ditadura salazarista retratando e denunciando sem piedade, por meio da paródia, as instituições degradadas de seu país”.

Pertencem ainda à mesma geração, para citar somente alguns, os romancistas Agustina Bessa-Luís e José Cardoso Pires e os poetas Alexandre O’Neill e Sophia de Mello Breyner Andresen, os três últimos já falecidos. Não pode também ser esquecido o nome de Maria Velho da Costa, que alcançou repercussão internacional pelo livro Novas Cartas Portuguesas, escrito com outras duas mulheres, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – versão moderna de um clássico publicado em 1669 com as cartas de amor de uma freira portuguesa, Mariana Alcoforado, a um oficial francês. As autoras criaram cartas de mulheres portuguesas aos maridos recrutados para as guerras colonialistas de Portugal, o que lhes valeu rigoroso processo judicial, do qual resultaria, evidentemente, sua prisão – felizmente, o julgamento foi interrompido pela eclosão da revolução de 25 de abril de 1974.

Saramago, mesmo após a sagração do Nobel, estranhou-se com os valores conservadores de sua terra natal – como ateu convicto e comunista renitente que era – e autoexilou-se, passando os últimos anos da vida, casado com a espanhola Pilar del Río, encarapitado na mais devastada ilha vulcânica do arquipélago das Canárias, Lanzarote, escrevendo um livro por ano.

Marcella Abboud, mestranda em teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com monografia sobre Saramago, diz: “Por ter feito carreira tardia, com sucesso quase na velhice, ele é diferente da maioria dos escritores. Foi um autor muito enciclopédico, que leu e estudou demais antes de escrever efetivamente, atingindo o auge nos romances. Portugal é um país, ainda hoje, muito conservador, e a relação que Saramago estabeleceu com a Igreja prejudicou sua imagem. Outra coisa foi a mudança para Lanzarote. Passou maus bocados. Foi excluído de prêmios por causa do teor de seus romances, coisa que explica bem ele ter uma certa birra de Portugal. Suas obras, porém, são muito estudadas lá”.

Lugar destacado na literatura atual vai para a romancista Lídia Jorge, que coleciona prêmios internacionais importantes. Nascida em 1946, desde seu primeiro romance, O Dia dos Prodígios (1980), impôs-se como voz capaz de restaurar o imaginário romanesco de um país embrutecido durante a era salazarista e, pela presença do mito e do fantástico, mostrou-se influenciada pelo “realismo fantástico” sul-americano.

Na geração atual o destaque vai para Gonçalo M. Tavares, de nacionalidade portuguesa, embora nascido em Luanda (Angola) em 1970. Recebeu prêmios literários importantes, e seu romance Jerusalém foi incluído na edição europeia de 1001 Livros para Ler antes de Morrer. Saramago dizia dele, há cinco anos: “...ele não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!”

Gigante literário

No início da década de 1980, esteve em visita ao Brasil uma importante caravana de escritores portugueses, romancistas e poetas reputados – entre os quais Saramago e Lobo Antunes. Tive ocasião de conhecê-los. Lobo Antunes impressionava pelo que se pensava ser – na época – apenas uma prova de vaidade desmedida: apresentava-se como “o maior romancista de Portugal”. O que evidentemente provocava em nós o pensamento imediato: “Ué, não é o Saramago?” (que já era mais conhecido). A mim, bastou a leitura de um livro seu de 1979, com o desconcertante título de Os Cus de Judas, para convencer-me de que ele tinha razão: nunca mais deixei de ler suas obras, fascinada que permaneci pelo aspecto dominante de sua escritura revolucionária, a paixão. Há sangue, suor, lágrimas – vida, enfim, em uma intensidade rara – em cada página, das milhares que escreveu até hoje. Aos 69 anos, produz ainda regularmente romances de grande envergadura (já são 30), em que sistematicamente, com uma prodigiosa profundidade psicológica, com um poder de detalhamento insuperável, estabelece um grande e contínuo exorcismo do sistema social e político do antigo império português. Diz: “A morte corre mais depressa do que qualquer um de nós, e a única coisa que posso fazer para contrariá-la é escrever, a única duração que posso ter é a que os livros tiverem”.

Tomando como tema os paradoxos de uma burguesia abalada pelo movimento revolucionário de 25 de abril de 1974, ele soube englobar os conflitos usuais tanto na esfera doméstica como na política – firmando um estilo original, na exata medida do realismo transfigurado, de grande eficácia narrativa. Quando escolhe um núcleo (personagem) parece que o explode de dentro, em todos os sentidos. Tem uma espantosa habilidade de misturar tempos e pessoas, na intercalação de descrições em terceira pessoa, diálogo, monólogo interior. Parece dar corda em si mesmo, em um ímpeto que o leva para a direção que for – mantendo, contudo, a unidade do mistério, do encantamento, da sedução da linguagem barroca que se parte em mil metáforas febrilmente superpostas.

Basta vê-lo falar uma vez, assistir a uma das numerosas entrevistas que concede, para sentir sua genialidade, sua autenticidade permanente. Não se embaraça ao dizer “eu quero é chegar ao mais profundo da verdade das coisas”, ou “só devemos começar a escrever quando temos a certeza de não sermos capazes de o fazer”. E confessa: “O que a mim me mete medo é escrever. Cada livro é o primeiro livro”. Pois, para ele, “o problema é diminuir a distância entre a intensidade com que sinto as coisas e o que fica no papel”.

No início de sua carreira também não foi imediatamente apreciado e assimilado em Portugal, principalmente pelo seu estilo, considerado “gongórico”, mas recebeu consagração imediata na França e nos Estados Unidos. Hoje é um dos autores mais lidos e vendidos no mundo – e recebeu os mais altos prêmios, como o Jerusalém, em 2005, e o Camões, em 2007. Em 2008 o Ministério da Cultura da França atribuiu-lhe o título de Comendador da Ordem das Artes e das Letras.

Lobo Antunes guarda, em relação ao Brasil, uma afeição e uma afinidade especial e costuma dizer: “Eu venho do Brasil...” , pelo fato de seu avô, que também se chamava António, ser de Belém do Pará.

Brasil e África

Não contamos no cenário brasileiro atual com nenhuma personalidade de feitio “gigantesco”, como Lobo Antunes. As últimas e incontestáveis que tivemos – e que chegaram mesmo a brilhar como possíveis candidatos ao Nobel – foram Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Infelizmente eles faleceram antes – e sofreram, também, com o contingenciamento que pesava sobre a língua portuguesa. Uma vez, nos anos 1980, perguntei a um crítico americano (não me lembro de seu nome) quem seria o maior escritor latino-americano. Surpreendi-me com sua resposta: “Guimarães Rosa”, me disse, acrescentando, “mas infelizmente é pouco conhecido, porque escreve em português”.

À falta de gênios (e são raros, realmente, em qualquer lugar) devemos nos contentar com multidões, com catadupas e cataratas de edições vistosas, nas quais o visual, a capa, o chaleirismo do marketing forçado prevalece sobre o conteúdo. É incontestável, porém, o esforço de abertura editorial do país, o surgimento de escritores de todo tipo, a formação de núcleos temáticos – em uma feliz relativização dos determinismos ideológicos prevalecentes durante o século passado.

É ainda Nelson de Oliveira que nos esclarece sobre isso: “Entre Portugal e Brasil, não vejo muita diferença literária. Os idiomas são sensivelmente diferentes, estão se afastando. Já as literaturas estão se aproximando, no planeta inteiro. As marcas regionais estão desaparecendo da literatura mundial. Culpa da globalização? Parece que sim. Percebo que nos países em desenvolvimento ainda há uma forte produção literária rural, ambientada no campo ou em pequenas cidades, enquanto nos desenvolvidos predomina a literatura metropolitana.

Em breve análise das últimas gerações de escritores brasileiros, diz Nelson: “Temos a Geração 90, a Geração Zero Zero e a atual. Se na Geração 90 havia muita melancolia, havia também muita esperança, porque então começávamos a curtir o Brasil democrático, pós-ditadura. A literatura da Geração Zero Zero é mais desiludida e angustiada, pessimista e apocalíptica – tanto aqui como em Portugal. Como se o mundo não tivesse mesmo conserto. Na primeira década do século 21 o Brasil democrático decepcionou demais. Muitos conchavos, muitas fraudes, trocas de favores e alianças espúrias. A situação mundial também não foi das melhores: falcatruas no mercado financeiro, terrorismo, guerras”.

Quanto à literatura lusófona africana, o moçambicano Mia Couto (António Emílio Leite Couto) é o escritor de maior repercussão internacional. Seu romance Terra Sonâmbula, de 1992, é considerado um dos dez melhores livros produzidos na África no século 20. Autor muito fecundo, com produção regular e estilo original, em 1999 recebeu em Portugal o Prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra. Esta revista publicou, em seu número 397 (janeiro/fevereiro de 2010), extenso artigo de Mauricio Monteiro Filho, com minuciosa análise de sua produção, da verdadeira “subversão” que realiza da língua portuguesa – sob a influência principalmente de Guimarães Rosa – e de sua atividade também como jornalista e participante do movimento pela independência de seu país.

Na opinião de Anita Moraes, doutora em teoria literária pela Unicamp, com pós-doutorado em literaturas africanas de língua portuguesa, “a maneira de escrever de Mia Couto recorre à invenção lexical, tendo em Luandino Vieira (escritor angolano), Guimarães Rosa e Manoel de Barros suas principais referências”. A professora lembra também como escritor altamente significativo o angolano José Eduardo Agualusa, muito conhecido internacionalmente – em 2009 tanto ele como Mia Couto receberam a Ordem do Mérito Cultural do governo brasileiro.

É muito grande a listagem dos escritores de relevo nos cinco países africanos que têm o português como língua oficial. Comenta Anita Moraes: “Em Moçambique posso ainda destacar, como escritores contemporâneos, Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Nelson Saúte, Filimone Meigos. Da literatura angolana, Luandino Vieira, Arlindo Barbeitos, Pepetela, Manuel Rui, Boaventura Cardoso têm publicações recentes, mesmo sendo já escritores veteranos. Chamo a atenção também para Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho (que faleceu em 2010), por sua contribuição no tratamento da diversidade e pluralidade cultural angolana. Como escritor jovem, destaca-se Ondjaki. Da Guiné-Bissau saliento Abdulai Sila e Odete Semedo e de São Tomé e Príncipe, Conceição Lima. Da literatura cabo-verdiana conheço menos, mas considero como escritores contemporâneos importantes Corsino Fortes (também veterano), Filinto Elísio e Germano Almeida”.

Como essas literaturas emergem sincronizadas com a luta, em cada país, pela independência, algumas de suas características são comuns. Diz ainda a professora da Unicamp: “As gerações que foram, como no caso de Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, assoladas por guerras civis, se veem demandadas a lidar com seus escombros. A denúncia da desigualdade social e da corrupção dos governos tem se tornado muito presente nessas produções africanas, desde os finais dos anos 1980”.


Autores e livros que comoveram

O escritor, diplomata e africanólogo Alberto da Costa e Silva – que presidiu a Academia Brasileira de Letras no biênio 2002/2003 – é uma das pessoas mais abalizadas para falar de literatura em língua portuguesa. Ele organizou em 1999, com Alexei Bueno, uma antologia de poesia portuguesa contemporânea. Apesar de se dizer afastado há dez anos do meio literário de ultramar, lembra nomes da maior importância: “Aqui no Brasil (e também, de certa forma, em Portugal), nossa admiração por Fernando Pessoa e por José Saramago nos fez quase esquecer ou pelo menos descuidar de outros poetas de grande qualidade, como António Nobre, Antero de Quental, o altíssimo Cesário Verde, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Alexandre O’Neill, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade”. Ele lembra também uma série de ficcionistas e prosadores pouco conhecidos entre nós, mas de grande valor: “Por exemplo, Raul Brandão, pois Húmus entra em qualquer lista que eu faça dos dez livros que mais me comoveram. Ferreira de Castro (de Eternidade e A Lã e a Neve), Aquilino Ribeiro (quem, tendo lido O Malhadinhas, que está na raiz de Guimarães Rosa, o esquecerá?), Miguel Torga (de Bichos, Rua, A Criação do Mundo e Diários), Vergílio Ferreira, para mim o maior romancista de língua portuguesa da segunda metade do século 20, Cardoso Pires, não só pelo admirável O Delfim, mas pelo pungentemente terrível relato que é De Profundis”.

Costa e Silva destaca ainda, na África, os autores Baltazar Lopes (de Chiquinho), Luandino Vieira, Pepetela, Mia Couto, Germano Almeida, Ruy Duarte de Carvalho e Manuel Rui.