Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Tales Ab'Sáber

Formado em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e Psicologia pelo Instituto de Psicologia da mesma universidade, Tales Ab’Sáber tem ainda os títulos de mestre em Artes e doutor em Psicologia Clínica Contemporânea pela USP.

Ensaísta interessado na ligação estreita da cultura com a psicanálise, é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor do Curso de Psicopatologia e Saúde Pública, da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Em 2005, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Psicologia, Psicanálise e Educação com o livro O Sonhar  Restaurado – Formas do Sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Editora 34, 2005). É autor também de A Imagem Fria (Ateliê Editorial, 2003) e Lulismo: Carisma Pop e Cultura Anticrítica (Hedra, 2011).

Nesta entrevista à Revista E, Ab’Sáber fala sobre a indústria cultural e a longa tradição do Brasil de estar “inserido num fluxo de mercadorias modernas, e um país escravista que era um avesso da modernidade”.

Qual o impacto gerado pelos modelos formatados da cultura de massa no cotidiano dos cidadãos?

Essa é uma questão do pensamento crítico do século 20 e isso já é uma questão clássica. Theodor Adorno (1903-1969 – filósofo alemão), nos anos de 1940 e 1950, pesquisava sobre esse assunto nos Estados Unidos. Como é que se configura o sujeito da experiência cultural? No Brasil, o atraso em relação ao processo geral de modernização faz com que haja uma entrada tardia na cultura de massa.

O que nos Estados Unidos e na Europa tem raízes no século 19 e no começo do século 20 já está mais ou menos estabelecido com grandes ciclos de renovação para a indústria cultural e para a sua massa de sujeitos industriais. O fato de o Brasil ser longamente atrasado na estruturação desse campo faz com que tenha uma espécie de desmobilização.

Embora essa questão seja crucial no pensamento crítico central, no pensamento periférico ela é de segunda ordem. Os brasileiros têm que primeiro conquistar esse espaço, como um espaço de modernização democrática. Grande parte dos governos democráticos produziram um certo sucesso social, mas esse é um sucesso também ideológico.

O Brasil ainda está num regime de formatação, o que é um signo de atraso grande. Primeiro é preciso localizar a nossa singularidade no processo geral do andamento do mundo capitalista. Segundo, lamento muito como recentemente o processo de sedução para uma cultura de consumo de massa e de cultura de massa tem desmobilizado a percepção verdadeira da vida ruim.

O que é essa vida ruim, o próprio cotidiano?

Consiste no problemático mundo do trabalho, na falta de direitos efetivos em termos modernos, como ter educação e saúde decentes. As grandes cidades, como São Paulo, são pesadíssimas sobre a existência das pessoas, e não há uma dinâmica política suficiente para melhorar.

Existe uma verdadeira vida ruim, que é recoberta pela dinâmica fetichista de uma indústria cultural geral. Isso faz com que a vida seja ruim, e mesmo assim é naturalmente aceita. Essa situação pós-moderna é angustiante.

Essa tolerância está de acordo com o caráter brasileiro de contemporizar os contrários?

Há uma longa tradição de má conciliação brasileira que vem da contradição original do país muito radical entre ser simultaneamente um país antigo, por ser ligado a um iberismo tradicionalista, um país moderno, porque é inserido num fluxo de mercadorias modernas, e um país escravista, que era um avesso da modernidade. Essa situação meio impossível do Brasil gerou respostas culturais conciliadoras.

Já no século 19 a gente tinha um discurso como: “O Brasil é um país escravista, isso é inaceitável, mas o fato de o Brasil ser escravista está gerando uma nova civilização. Então, vamos olhar para a nova civilização tropical que está emergindo e deixar o fato de sermos escravistas para lá”. No Brasil, é profunda essa cisão entre a vida ruim e a construção de um ideário um pouco maníaco para dar conta dessa vida ruim. Acho que isso está presente até hoje.

Essa contradição de o sujeito ser liberal e senhor de escravos ainda marca a contemporaneidade brasileira?

Pode se resumir nisso, um liberal senhor de escravo que o Roberto Schwarz (crítico literário, poeta e dramaturgo) estudou muito no Machado de Assis, que dá a famosa volubilidade. O nosso atraso faz com que a gente sempre tenha que se atualizar num outro lugar que custa a insolidez de uma estrutura de direitos que nós nunca conseguimos atualizar.

Tem a ver com progresso. O progresso costuma levar um resto de manutenção do arcaico. E isso é tipicamente brasileiro. A matriz disso está no fato de que o Brasil se transformou em nação com grande parte da população trabalhadora sendo escrava.

Isto é, uma nação que estava no regime de progresso das nações modernas levando um passivo da não cidadania. Nunca se resgatou inteiramente a massa dessa população trabalhadora. Agora que está construindo o significante geral, a ideia de que finalmente essa massa de não inseridos está inserida.

Mas essa falsa sensação de inserção se dá na compra de um celular e/ou no crédito bancário. O grande direito garantido é de você consumir como consumidor universal, e isso, dado o nosso atraso cidadão, passa como suficiente. Mas não é o suficiente, e vamos pagar altos preços por essa insuficiência.

O que você vislumbra dessa indústria cultural para chegar nessa nomeada classe C? Isso terá uma repercussão na produção?

Isso já está acontecendo, por exemplo, com a televisão brasileira. É possível ver como um aparelho ideológico comprometido com a lógica de mercado tentando compreender, responder e formatar a identidade dessa grande pobreza brasileira que está inserida no consumo.

E acho ideológico chamar isso de classe média. Grande parte disso continua sendo uma grande pobreza. É pobreza inserida na lógica de consumo. E o pobre inserido na lógica virou classe média. Não é bem verdade. A vida e a luta da vida são pessoas que ganham 700 reais, mil reais por mês, elas estão numa luta feroz. Isso não é classe média. Mas no jogo geral de pacificação isso virou classe média.

E na realização dessa luta feroz mínima do fetiche da mercadoria, um celular, um computador, um carro em 60 vezes, você está inserido. A realização da mercadoria nesse momento é muito mais poderosa que qualquer discurso crítico na horizontal, inclusive das artes, não é por acaso que nos últimos 10 anos a nossa cultura é viva numa espécie de superfície das coisas, mas ela é fraca no sentido de radicalizar o entendimento da própria vida.

Essa cultura seria também um reflexo do mercado?

Em grande parte da MPB, que é o ponto central da relação do pensamento da arte e da vida popular no Brasil, a cultura responde ao mercado. Temos uma MPB acontecendo, cotidiana, que passa a se relacionar mais com a internet do que com as velhas estruturas que ruíram.

As grandes gravadoras que controlavam o processo acabaram. No geral é uma música de fundo, como diria Adorno: “Não faz cócegas a ninguém”, é uma musiquinha para propor um bem-estar geral que exatamente perde o ponto da vida ruim, como se não existisse, mas ela existe. Essa é a loucura contemporânea brasileira.

Há reflexo na arte brasileira, cinema, artes plásticas, literatura de uma maneira geral?

Para conseguir fazer alguma coisa é preciso um grande rebaixamento geral dos horizontes. É curioso que alguns artistas do passado é que resgatam isso. O único disco da Gal Costa com o Caetano é uma grandeza; ele fala dessas coisas que estou falando.

Mas é o Caetano Veloso, um artista de quase 50 anos atrás que olha agora e vê certa vulgaridade produtiva do presente, que é ao mesmo tempo a sua eficácia e a sua fraqueza. Esse é o paradoxo do presente.

Para um artista potente, jovem e contemporâneo, no cinema brasileiro, como Beto Brant, continuar filmando, ele teve que simplificar, é claro que ele poderia fazer coisas mais fortes, mas se ele tivesse que montar uma estrutura de produção mais forte iria perder o controle, e não conseguiria realizar um discurso minimamente decente, então ele rebaixa para ter a coisa na mão dele, e aí são pequenas estocadas. Está longe de ser um artista ignorante do presente, muito pelo contrário.

Um filme como Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, diante do Invasor, teria uma temática adocicada, mais simplista para atingir um público muito maior?

Eu gosto de ambos. Acho que é o contrário, o Beto está dando uma abertura um pouco mais ampla dos movimentos dentro do país, ele está tentando tecer o ponto de vista. Invasor, O Cão Sem Dono, Crime Delicado são filmes legais, mas que vão ao mínimo, quase como se a gente não tivesse força para olhar para o todo.

O todo vai nos dissolver. A mesma coisa acontece com o cinema importantíssimo do Eduardo Coutinho e com o inteligentíssimo do João Moreira Sales: todos falam coisas importantes, significativas, mas tudo numa escala menor. Isso mostra como a cultura inteligente e crítica recua em relação à massa da indústria cultural.

Como você vê essas tragédias públicas, como o Michael Jackson num processo de branqueamento e a Amy Winehouse numa viagem sem volta, e o público assistindo a isso como se fosse um Big Brother Brasil?

Isso é uma coisa um pouco antiga, porque essas duas histórias da cultura dizem respeito ao clima envenenado da cultura pré-crise do capitalismo de 2008. O Michael Jackson evidentemente era uma espécie de objeto perverso da indústria cultural dos Estados Unidos, em que se exercitava toda a onipotência técnica daquela figura, como mudar de cor.

O dinheiro se configurava onipotente. Isso é a ponta de lança da cultura neoliberal, o dinheiro pode tudo. Pode inclusive o que não pode. Era uma tragédia anunciada e todos olhando isso. A relação era perversa. A presença anti-humanista da técnica e do dinheiro para falar de uma autoperversão que não tinha mais centro.

Ele não tinha mais compromisso com nada e as pessoas gozando dessa metamorfose ambulante industrial. A Amy Winehouse é outra coisa, é o desespero da contracultura perdida que não tem mais força crítica e que de algum modo essa outra identidade cultural da artista precisou negociar com a nova cultura de consumo de mercado.

Ela vai para o radical e comete suicídio. Vai se despedaçando em público. Celebridade significa que você produziu uma imagem, numa cultura de imagens, que você entrou num circuito de imagens e que você tem algum valor de troca, você produziu uma imagem mercadoria, e muitas pessoas que não têm a formação moderna, o que dá muito trabalho, já querem pular direto esse processo. É a ideia do Andy Warhol [1928-1987 – artista visual e cineasta norte-americano] de 15 minutos de fama.

Tudo é mercado?

Qualquer diferença ou negatividade, se ela importar e fizer uma marca, rapidamente vai ser ou catalogada, numa administração geral da indústria cultural rebaixada, ou transformada em mercadoria, o que é um deslocamento forte das qualidades para as quantidades. A contracultura respondeu à aceleração do consumo como cultura, fazendo uma espécie de contracultura de consumo.

O que é o mundo da música eletrônica, senão uma contracultura de excesso correlata ao excesso de consumo das próprias elites? Você tem os jovens fazendo a mesma prática. Que só no excesso algo tem sentido. O gozo de consumo. Esse é o mundo neoliberal. A morte da cantora Amy Winehouse foi o fim desse tempo, desde então as coisas estão diferentes.

A cultura tem se beneficiado com as novas tecnologias?

As novas tecnologias têm um potencial imenso, até de abalar estruturas políticas. É possível até pensar em uma democracia direta e não necessitar mais de um modelo político do século 18. Mas isso não vai acontecer, porque estão controladas pela lógica da mercadoria.

É uma contradição, o potencial revolucionário da tecnologia, que o próprio capitalismo desperta, precisa ser reduzido de novo à mesma ordem da sociedade de classes e do uso fetichista desse material, para vender e comprar mercadorias. Se for isso que se estabelece da cultura hegemônica, há pouca transformação.

Os sites de relacionamento são as novas práticas com cultura da mercadoria e cultura de mercado. O que dá para observar é que, mesmo a internet tendo potencial de oferta de objetos culturais de imensa importância, eu apostaria, entre 80% e 90% da população usa para saber a fofoca do dia.

O que você pensa de a indústria cultural trabalhar com formas para o corpo, tópicos como anorexia, adiamento do envelhecimento e inúmeros tipos de plásticas? Que problemas isso causa?

Você gera uma contrapartida de comprometimento dessa forma de mercado e de indústria de como deve ser um ser humano, que é a depressão por não corresponder a esse mundo. Por um lado você tem a excitação de dar a resposta ao mundo, de outro você tem a falência de quem não consegue, e a maioria das pessoas não consegue.

Essa pressão aprisiona o sujeito e o submete imensamente. A pessoa cai numa armadilha mortífera por não ser aquela modelo magra e não ter aquele corpo. Esse é outro campo da crítica ao capitalismo que deve ser feita. É uma nova ordem de violências. Isso é uma coisa nova para os psicanalistas. Não dá mais para trabalhar com os velhos padrões de subjetivações da modernidade freudiana.

Como fica a experiência histórica da psicanálise diante disso?

É algo bastante complexo que a psicanálise se pergunta todos os dias. Houve certa formatação da psicanálise original do consultório que recebe o indivíduo; essa coisa está em crise permanente, porque no nosso mundo só o que é de massa tem validade, e o trabalho do psicanalista é algo artesanal. Há uma crise entre a estrutura da profissão e a estrutura do mundo. Como teórico da psicanálise, acho que é preciso pensar mais profundamente essas transformações históricas sobre o seu próprio modelo.


“As novas tecnologias têm um potencial imenso, até de abalar estruturas políticas. É possível até pensar em uma democracia direta e não necessitar mais de um modelo político do século 18. Mas isso não vai acontecer, porque estão controladas pela lógica da mercadoria”


“Houve certa formatação da psicanálise original do consultório que recebe o indivíduo; essa coisa está em crise permanente, porque no nosso mundo só o que é de massa tem validade, e o trabalho do psicanalista é algo artesanal”


“Celebridade significa que você produziu uma imagem, numa cultura de imagens, que você entrou num circuito de imagens e que você tem algum valor de troca”


“O Brasil está inserido num fluxo de mercadorias modernas, e um país escravista, que era um avesso da modernidade”


::