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O melhor da prosa
Dono de um olhar sensorial que emerge em textos marcados pela escrita fluÍda e precisa, Fernando Sabino ia facilmente da crônica ao romance
Precisão, humor, agilidade narrativa, simplicidade e fluidez. São muitas as características que podem ser atribuídas à escrita do mineiro Fernando Sabino. Entre elas, uma se destaca: o escritor e jornalista não estabelecia grandes distâncias entre vida particular e obra.
De acordo com o escritor e professor de criação literária, Marcelo Maluf, ambas permaneceram entrelaçadas. “Em verdade, são muitas as histórias que ele viveu e das quais foi protagonista. Fernando, segundo seu grande amigo e escritor Paulo Mendes Campos, era um catalisador de mal-entendidos”, afirma. “Ele próprio dizia de seu personagem Geraldo Viramundo, do romance O Grande Mentecapto (1979), ‘Viramundo sou eu’. Uma das influências de Sabino e de muitos autores modernos que são reconhecidos pela escrita precisa também chegou a tomar para si o seu famoso personagem, Gustave Flaubert (1821-1880), ao afirmar ‘Madame Bovary sou eu’”, compara Maluf.
Além da crônica
Aos treze anos, o autor nascido em Belo Horizonte em 12 de outubro de 1923 – e morto em decorrência de um câncer, no ano de 2004 – teve o primeiro conto publicado na revista Argus, editada pela Polícia Mineira.
Daí em diante, não parou de escrever, mesmo depois de aprovado no curso de Direito da Faculdade da Universidade Federal de Minas Gerais. O ano de 1941 marca o lançamento do primeiro livro, a coletânea de contos Os Grilos não Cantam Mais (Edição esgotada). A tradição brasileira no gênero da crônica data do século 19, com Machado de Assis, e explode na segunda metade do século 20, quando surgiram grandes cronistas, com espaço reservado em diversos jornais e revistas. Os autores eram capazes de construir textos sucintos sobre temas do cotidiano, em tom de humor – bem ao gosto do leitor –, mas sem deixar de lado o viés crítico a propósito de questões políticas e sociais.
No caso de Sabino, os títulos dos seus livros de crônicas geralmente correspondem ao nome de uma crônica. “Nisso encontramos a leveza e o humorismo característicos de seu talento”, explica a professora titular aposentada de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Letícia Malard. “Em O Homem Nu (Editora Record, 2010), a crônica deu nome ao livro. A história de um homem que sai nu para pegar algo na parte externa do apartamento e vem um vento que fecha a porta, deixando-o nu a vista de todos, sem poder se esconder. Essas questões ingênuas e humorísticas eram bem trabalhadas em seus textos.”
Porém, além da crônica, o escritor se arriscava com maestria em outros gêneros literários. Livro de 1956, Encontro Marcado (Editora Record, 2006) repercutiu nacionalmente e, por vários motivos, é considerado seu grande romance. “Pela qualidade com que foi concebido, por ter marcado época e influenciado diversas gerações de escritores”, enumera Maluf. “O livro expõe o drama humano pela busca de si mesmo. É uma obra lida e relida com o mesmo encanto, desde que foi publicada.”
Fora o clássico, Letícia menciona o romance-biografia Zélia, uma Paixão (Editora Record, 1991), que narra – com autorização da ex-ministra da Fazenda do governo Fernando Collor de Mello – um caso entre ela, Zélia Cardoso de Mello e o então Ministro da Justiça, Bernardo Cabral. “Sabino foi criticado, mas é um livro que vendeu muito e foi bem-aceito pela crítica do ponto de vista da construção literária”, recorda.
O olhar atento e sensorial do autor também mirou a cidade de Nova York, onde trabalhou no Consulado Brasileiro, durante os anos de 1940 e 1950. Nesse período colaborou com crônicas que seriam publicadas em jornais cariocas, versando sobre sua experiência norte-americana. Em 1950, algumas delas foram compiladas no livro A Cidade Vazia (Edição esgotada – 1992), “mostrando os problemas e não problemas da cidade, que era o sonho de muitos brasileiros na época”, diz Letícia.
Palavra, som e imagem
A força de sua prosa direta serviu de inspiração para cineastas que adaptaram livros do autor para o cinema. É o caso de O Homem Nu (1997), que virou uma elogiada comédia pelas lentes de Hugo Carvana, e O Grande Mentecapto (1989), dirigido por Oswaldo Caldeira.
Sabino também foi o dono da lente ao dirigir dez curtas-metragens sobre cânones brasileiros. O Fazendeiro do Ar (1972), com Carlos Drummond de Andrade (1902-1987); O Habitante de Pasárgada, com Manuel Bandeira (1886-1968), Veredas de Minas, com João Guimarães Rosa (1908-1967), entre eles.
Aliando qualidade literária e sucesso expressivo de vendas, Sabino, que morreu na véspera de seu aniversário, em 2004, tornou-se um dos autores mais populares do século passado. “Sua obra tem como característica a reflexão sobre a condição humana de modo a revelar em situações e ações da vida comum o sublime. Às vezes, com muita leveza e humor e às vezes mais angustiado e melancólico”, analisa Maluf.
BOXE 1 - Os quatro cavaleiros de um apocali pse
Amigos e confidentes, grupo de escritores vivia intensamente e buscava respostas para questões filosóficas
E, sim, “são quatro cavaleiros de um apocalipse e não cavaleiros do apocalipse, como alguns falam”, corrige com delicadeza a professora titular aposentada de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Letícia Malard, referindo-se ao famoso grupo formado pelos amigos Fernando Sabino, Hélio Pellegrino (1924-1988), Otto Lara Resende (1922-1992) e Paulo Mendes Campos (1922-1991).
Parceiros de longa data, compartilhavam o amor pela literatura e filosofia, ao mesmo tempo que se divertiam e dividiam as incertezas da vida pelas ruas da Belo Horizonte dos anos 1950. A relação de cumplicidade que se desenvolveu entre os literatos tem seu registro no livro Cartas na Mesa (Editora Record, 2002), organizado por Sabino, reunindo 134 cartas enviadas por ele aos amigos entre os anos de 1943 e 1992, quando morreu o terceiro companheiro do grupo, Otto Lara Resende.
Nas páginas, o leitor faz uma viagem por conversas saborosas, nas quais o tempo não passava na cadência dos relatos breves que hoje se fazem por e-mail. Há espaço para discussões políticas, além de comentários sobre a obra de cada um deles. Nas cartas, Sabino comenta que está encantado com a leitura de Across the River and Into the Trees, de Ernest Hemingway, sobre as polêmicas que marcavam o fim da ditadura de Getúlio Vargas e até a falta de pagamento por artigos que havia escrito para o Diário Carioca, em 1947: “[...] Está me devendo três contos e trezentos de artigos, daí para mais. Se eu paro de escrever, melhor para eles. E, se continuo, cada vez ficam me devendo mais, acabam não me pagando também. [...] Não é pelo dinheiro não (é sim): a verdade é que minhas crônicas vão caindo de nível por desânimo de escrevê-las inutilmente”.
Sabino foi um dos primeiros a trocar Minas Gerais pelo Rio de Janeiro, onde fez sua vida profissional. Todos foram cronistas e levavam a vida oscilando entre o humor, a irreverência e a angústia. “Por exemplo, no livro O Encontro Marcado (1956) é repetida a expressão ‘puxar angústia’, que possui várias conotações, ora filosóficas, ora freudianas, procurando o sentido da vida, buscando Deus ou uma espiritualidade maior”, observa Letícia. E com sintética citação que abre o livro, feita por Mário de Andrade (1893-1945) em Cartas a um Jovem Escritor, é possível sentir a relevância do laço que se firmou entre todos, até serem separados pelo tempo.
“[...] O Hélio, o Otto, o Paulo, são os únicos amigos que podem salvar você.”
BOXE 2 - Encontro marcado
Vida e obra de Fernando Sabino
foi tema de evento literário no Sesc Belenzinho
Coincidindo com o mês de nascimento do escritor mineiro Fernando Sabino, a unidade do Belenzinho propiciou aos amantes da literatura brasileira um encontro com as crônicas e contos desse excelente prosador.
A atividade A Prosa Certeira de Fernando Sabino foi orientada pelo professor Marcelo Maluf e tomou o espaço da biblioteca, localizada na área de convivência. Apontado como referência no gênero da crônica, o autor era mestre em construir histórias diretas, sem fazer rodeios com o leitor. “Bem cuidada, sua escrita tem rigor e clareza. É direta. Ele escolhia a maneira mais simples – e não simplória – de contar uma história. Dizia que o leitor não poderia tropeçar em palavras. E constatamos tal direcionamento em toda a sua obra: a concisão, a clareza e a simplicidade”, resume Maluf.
A biblioteca está integrada com tudo que acontece na área de convivência, e não há paredes que impeçam o público de se aproximar do acervo. “Este, por sua vez, é formado por 5 mil títulos (aproximadamente), que podem ser consultados no local ou emprestados”, descreve Daniela Momozaki, bibliotecária do Belenzinho. Segundo ela, o visitante tem acesso a obras de áreas como literatura brasileira, estrangeira, infantojuvenil, artes, saúde e alimentação, esporte, biografias e história em quadrinhos. O local também dispõe de equipamentos que permitem a leitura dos livros e revistas por pessoas com deficiência visual (cegos e baixa visão) e mobilidade reduzida.