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Jornalismo engajado
Pesquisador analisa formação do Estado brasileiro ¿e critica o consumismo desenfreado da sociedade
Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), coordenador do Cellacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) e membro do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Popular e Alternativo), Dennis Oliveira tem muitas facetas profissionais. Inquieto por natureza, o pesquisador aponta essa característica como determinante na sua escolha de seguir carreira acadêmica na área de comunicação, sem abrir mão da luta social. “Considero que o consumismo da forma que está estabelecido no capitalismo contemporâneo só é sustentável pela exclusão e concentração de riquezas”, afirma. “Assim, falar em sustentabilidade implica necessariamente falar em mudança radical de estrutura de produção e consumo.” A seguir, conheça um pouco do pensamento por trás das ações e do trabalho do professor.
Inquietações precoces
Desde criança quis ser jornalista. Meu pai era produtor gráfico, trabalhou em grandes redações, como do Estadão e da Folha de S.Paulo, Editora Abril, entre outros locais, e também atuava como freelance em produção de revistas em quadrinhos. A observação do trabalho de meu pai, bem como suas conversas, é que me incentivou a ser jornalista. Porém, outra experiência que me marcou bastante foi atuar como professor de educação de adultos no final dos anos 1980, principalmente quando o secretário de educação do município foi o grande educador Paulo Freire (1921-1997). Tive a honra de fazer um curso de capacitação com o Paulo Freire e desde aquela experiência também quis ser professor. As inquietações, o gostar de ler e escrever e a paixão pelo estudo é que me impulsionaram para a carreira acadêmica na área de comunicação.
O meu engajamento em movimentos sociais foi importante para que a formação obtida na universidade dialogasse com outras áreas do conhecimento. Militei no movimento estudantil secundarista e universitário, participei da reconstrução do grêmio estudantil na escola Rui Bloem, fui diretor da União Estadual dos Estudantes de São Paulo em 1984 e representante discente em colegiados da Universidade de São Paulo. Depois disso me engajei no movimento popular e movimento negro.
Essas experiências despertaram em mim o prazer de enxergar o mundo para além das particularidades e funcionalidades da atividade cotidiana. É como dizia a filósofa húngara Agnes Heller: a “superação da alienação do cotidiano”. Primeiro eu tinha uma visão muito romântica do jornalismo, achava que ele iria denunciar as injustiças, garantir a democracia etc. Depois, com o tempo, fui vendo que a coisa não era bem assim, como qualquer outra instituição, o jornalismo estava articulado com os meandros do poder. Daí, caí de forma maniqueísta em um posicionamento contrário, praticamente não deixando nenhuma margem de “salvação” para o jornalismo. Se a militância me possibilitou essa visão crítica, o estudo possibilitou o seu ajuste de contas, superando o simplismo do contra/a favor e me fazendo buscar, antes do julgamento, a compreensão dos fenômenos.
Olhos atentos ao cotidiano
Uma das minhas leituras preferidas é O Cotidiano e a História, da Agnes Heller. Gosto muito da ideia desenvolvida por ela, de que os processos sistêmicos de alienação se reproduzem em atividades cotidianas. A velocidade imposta pelo capitalismo contemporâneo faz com que a gente faça coisas sem pensar. Refletir é pensar o já feito, a nossa sociedade é uma sociedade da não reflexão. E, por não refletir, cai-se em uma visão de mundo marcada pela infantilidade (no conceito freudiano de considerar infantil o comportamento baseado única e exclusivamente no desejo, sem perceber a diferença e a distância entre o desejo e a satisfação dele). Isso impede que a gente veja o nosso cotidiano para além de uma perspectiva meramente funcional, de satisfazer desejos (em geral construídos pelo discurso consumista da mídia), e de forma transcendental, que engloba não só criticidade, mas também um olhar poético e lírico. Em outras palavras, é preciso superar a razão instrumental, incorporar a dimensão ética e poética.
Direitos humanos e racismo
O Estado brasileiro é racista porque foi constituído para consolidar um modelo de acumulação de riquezas baseado na superexploração do outro. Com isso, há uma ideologia forte de transformar a diferença em hierarquia, razão pela qual considero a sociedade brasileira como extremamente violenta, ao contrário do mito do pacifismo brasileiro. Sem enfrentar esses problemas – o que implica reconhecer a sua existência – não será possível construir uma sociedade democrática e igualitária. A minha experiência pessoal foi importante na percepção disso. Considero-me um homem negro, minha família é negra e esta condição trouxe obstáculos e dificuldades que tiveram que ser superados com muito esforço e tenacidade, até mesmo as perspectivas acabam sendo reduzidas para a gente. Por exemplo, enquanto para a minha família a entrada e a conclusão de um curso superior é motivo de comemoração, pois se trata de uma grande conquista, em famílias pertencentes à elite é um fato corriqueiro.
Consumo sustentável
Considero que o consumismo da forma que está estabelecido no capitalismo contemporâneo só é sustentável pela exclusão e concentração de riquezas. Assim, falar em sustentabilidade implica necessariamente falar em mudança radical de estrutura de produção e consumo. O chamado “turbocapitalismo” se assenta sobre uma forma de consumo desenfreado e descartabilidade. Com isso, consolida-se uma ideia de ser humano centrado na posse de bens de consumo, transformando as relações sociais de forma que as pessoas são encaradas como objetos. E, como objetos de consumo, viram descartáveis – por isso, o filósofo polonês Zygmunt Bauman aponta como uma das consequências do consumismo a fragilidade dos laços humanos. Importante não confundir consumismo com a prática do consumo – o consumismo é uma ideologia que interpela os indivíduos a entrarem na roda do consumo desenfreado e na descartabilidade de objetos e pessoas.
A sociedade liberal tem como elemento fundamental a perspectiva contratual – as relações são estabelecidas por contratos e isso pode resvalar para uma perspectiva instrumental de relacionamento. Posso dizer que em minha trajetória estabeleci relações de cumplicidade com pessoas fantásticas que transcenderam as dimensões contratuais que permitiram o nosso contato inicial. Reconhecendo isso, ficamos mais fortalecidos para enfrentar os obstáculos da vida e até mesmo os oportunistas que se aproximam de você quando precisam – em outras palavras, não sou um objeto de consumo.
“O Estado brasileiro é
racista porque foi constituído para
consolidar um modelo de acumulação de
riquezas baseado na superexploração do outro.”