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A um passo da extinção

Profissional dos ponteiros: o relojoeiro vai saindo de cena / Foto: Leonardo Wen/Folhapress
Profissional dos ponteiros: o relojoeiro vai saindo de cena / Foto: Leonardo Wen/Folhapress

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Uma espécie de “bíblia” para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e para a Receita Federal, a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego, trouxe algumas novidades em sua última atualização, divulgada em janeiro de 2013. Na lista de 2.619 atividades reconhecidas oficialmente pelo Ministério, duas novas famílias ocupacionais foram incluídas: a dos profissionais e a dos técnicos da inteligência – representando, obviamente, trabalhadores ligados à informática. Outras profissões também tiveram suas definições alteradas, especialmente nas áreas do Direito e da Educação, igualmente devido às novas habilidades técnicas e comportamentais exigidas pela computação. De resto, nenhuma novidade: continuam constando do catálogo aquelas ocupações de sempre, casos, por exemplo, de publicitários, bombeiros, torneiros, eletricistas, médicos etc., embora em algumas delas tenham sido também agregados itens elucidativos sobre possíveis ligações com a eletrônica, principalmente na área de serviços.

Esta listagem, fria e impessoal, espécie de “raio x” do mercado de trabalho no tocante às profissões existentes, atestam o avanço das novas tecnologias sobre a estrutura da mão de obra brasileira. Mas, por sua própria natureza, a CBO não retrata os efeitos que essa economia de caráter high-tech – e os comportamentos sociais que lhe são imanentes – vêm provocando no mundo do trabalho. Nem os danos irreparáveis que um dos subprodutos desta economia – a cultura do prêt-à-porter e do descartável elevada à enésima potência – está causando, por exemplo, há várias profissões a ponto de parecer condenadas à morte.

Ocupações ainda constantes do catálogo do Ministério do Trabalho estão, senão em extinção, em tal situação de esqualidez que não deverão mais existir nas próximas décadas, pelo menos do jeito que a carruagem caminha. Seja por não conseguirem acompanhar as novas tecnologias baseadas na eletrônica ou os modernos modos de produção por ela facilitados – ou por serem desenvolvidas muito à margem deles –, seja por terem se tornado obsoletas ou supérfluas para o mercado. A lista é grande, reunindo profissões quase todas com forte componente artesanal ou manual, em que despontam, para citar apenas algumas, o alfaiate, o amolador de faca, o contador individual (o popular guarda-livros), a costureira, o datilógrafo, o engraxate, o fotógrafo (com estabelecimento comercial próprio), o reparador de caneta-tinteiro e de guarda-chuva, o operador de mimeógrafo, o relojoeiro, o sapateiro, o tintureiro e o tipógrafo.

Na prática, algumas delas já nem existem mais como individualidades, caso dos reparadores de caneta-tinteiro e de guarda-chuva, apetrechos antes comuns no cotidiano das pessoas, mas tornados hoje como quase artigos de luxo (ou de colecionadores) pela enxurrada de canetas esferográficas e de guarda-chuvas descartáveis que inundou o mercado. Há ainda, claro, quem os conserte, mas no geral são cavalheiros já em idade avançada e aposentados, donos ou funcionários de lojinhas de generalidades, que fazem o serviço nas horas vagas e quase na clandestinamente.

Já os datilógrafos sobrevivem apenas em setores que, de uma maneira ou de outra, ainda dependem da máquina de escrever para executar determinados tipos de trabalho, como os escritórios de advocacia, os despachantes, os cartórios e as autoescolas. O hoje onipresente computador (naturalmente, também “pilotado” pelos renitentes datilógrafos), que empurrou a máquina de escrever para o limbo – juntamente com as indústrias que as fabricavam – ainda não é capaz de preencher todos os tipos de formulários. Trata-se, enfim, do uso residual de um equipamento que já sustentou toda uma cadeia produtiva, de datilógrafos a cursos de datilografia, de fabricantes a revendedores e lojas de conserto, e do qual dependiam milhões de pessoas ao redor do planeta.

Cultura vintage

Alguns poucos reparadores de máquinas de escrever operam no interior de lojas de artigos para escritórios, e o trabalho é executado, em geral, por pessoas que sabem fazer o serviço, mas, não raro, estão lotados em outras atividades ou departamentos. Há também os comerciantes de antiguidades, desejosos de revender exemplares raros ou valiosos para colecionadores ou decoradores, que não se furtam de pagar os valores cobrados pelas peças. Enfim, o mercado sobrevivente de máquinas de escrever depende, substancialmente, da cultura vintage – uma moda que, como todas as outras, pode passar a qualquer momento.

Em São Paulo, uma das poucas empresas que ainda dão atenção às máquinas de escrever é a Benetron, que fica no bairro do Planalto Paulista, na zona sul. “Consertamos ou vistoriamos por semana de 30 a 50 máquinas, entre elétricas e manuais”, revela Guilherme Lopes Rodrigues, assistente técnico da companhia – ele dispõe de um espaço reservado no estabelecimento exclusivamente para a execução daquele trabalho. Para suportar esta demanda – surpreendentemente alta, aliás (a Benetron é uma das maiores desse segmento na capital paulista), a loja conta com cinco técnicos, além de mais duas pessoas para o atendimento. Os técnicos – todos com idades superiores a 50 anos – vieram de antigas fábricas ou oficinas do ramo e são, na prática, verdadeiros restauradores (às vezes as máquinas têm de ser reformadas quase integralmente). Elas saem da Benetron com aparência de novas, mas o preço cobrado pelo reparo, em alguns casos, daria para comprar um bom notebook.

A tecnologia também reduziu drasticamente o volume – e a importância – do trabalho dos relojoeiros. Sérgio Massotomi Sakugawa, dono da Ótica e Relojoaria Tremembé, fundada por seu pai na zona norte de São Paulo no distante ano de 1964, começou a trabalhar no setor aos 10 anos de idade (hoje tem 57), como aprendiz. Atualmente, admite sem mágoa, a atividade está a caminho do fim e não lembra nada do que foi no passado. “O relojoeiro existe principalmente para consertar engrenagens de relógios mecânicos, mas o que predomina no mercado são os modelos eletrônicos, que não precisam de conserto”, lastima-se Sérgio. “Basta trocar a bateria ou o conjunto do mecanismo. É muito mais um serviço de manutenção do que de reparação.”

O que tem mantido a loja de Sérgio é a parte de ótica – diversificação, por sinal, bastante comum no Brasil nos comércios do gênero – e a curiosa afeição de muitos usuários pelos seus relógios eletrônicos, reforçando o entendimento que o fato de um produto ser barato e semidescartável não significa que não possa despertar paixões. “Muitos clientes trazem seus relógios eletrônicos avariados e levam um susto quando ficam sabendo que a troca de peças pode custar, em certas situações, quase o preço de um novo – há versões chinesas vendidas no mercado por apenas R$ 30. Mesmo assim, pedem para trocar, pois não querem se desfazer de um objeto de estimação”, explana Sérgio.

Os sapateiros são outros profissionais que o tempo está desalojando do mercado – sem falar da implacável e crescente concorrência do tênis e assemelhados. Uma infinidade de modelos de sapatos estraga por completo à medida que envelhece. E quando é preciso trocar apenas a sola, por exemplo, o custo é quase proibitivo: o serviço pode sair por cerca de R$ 40 quando realizado pelas mãos de um bom profissional. Só que, atualmente, é possível comprar um par de sapatos por R$ 50.

Processo doloroso

A explicação é única, segundo diz Nélson Marques Ricardo, 72 anos, que continua a manter com brios a velha sapataria fundada pelo pai em 1947 no Jardins, rico bairro paulistano. “Os calçados de hoje têm um tempo de vida limitado.” Ele conta que apenas pessoas de posse, que calçam modelos importados, caros e de qualidade diferenciada, mandam consertar os sapatos. Saudoso, Ricardo se recorda da época em que a sapataria tinha quatro funcionários (hoje tem apenas um que trabalha em regime freelancer) e mesmo assim era difícil atender à demanda. Lembra-se também dos clientes cativos da “nobreza”, como os familiares do ex-governador Adhemar Pereira de Barros. “Tempos passados, que não voltam mais”, pontifica.

Alfaiates e costureiras também vêm perdendo a olhos vistos o seu público de consumo. Aliás, são poucos os indivíduos dispostos a encomendar roupas femininas e ternos personalizados e de padrão mais elevado. A profusão de modelos prêts à porter (roupas prontas para vestir) disponível nas lojas – reforçada ultimamente pelas importações da China – circunscreveu esse segmento também às pessoas de maior poder aquisitivo, que podem sustentar um gosto mais exigente. Hoje, o mercado dos profissionais de corte e costura, principalmente as costureiras, é constituído por oficinas de pequenas reformas e acertos de peças de loja. Mesmo assim, não é fácil conseguir clientes. Maria de Lourdes Soares Beça, 70 anos, teve sorte. Moradora do centro de São Paulo, ela conseguiu montar uma fiel clientela entre as funcionárias da Câmara Municipal, na Rua Maria Paula, no bairro Bela Vista, perto de sua residência. É ela mesmo que traz e leva as confecções, quase que dia sim dia não, em um cansativo atendimento a domicílio. “Hoje as pessoas estão sem tempo até para ir à costureira”, diz. “Se eu ficasse esperando em casa, não teria nem metade das encomendas e mal conseguiria complementar minha magra aposentadoria.” Outra vantagem vista por Lourdes em seu trabalho é que, pelo fato de não ter uma loja, “o risco de ser assaltada é menor”.

Esta não é a primeira vez ao longo da história que a tecnologia e a mudança de hábitos decretaram o fim de algumas profissões. Apenas no transcorrer do século 20, já sumiram, por exemplo, as figuras do cocheiro, do acendedor de lampiões, do pianista de cinema, do leiteiro, do levantador de pinos de boliche, do linotipista, do ferreiro e até do telegrafista – cuja romântica função é desempenhada hoje por máquinas computadorizadas. Algumas desapareceram em alguns locais, em outros não. A profissão de calceteiro não existe mais no Brasil, pois o país deixou há tempos de utilizar pedras no calçamento de ruas. Mas em Portugal trata-se de uma profissão bastante presente. Da mesma forma, o Brasil abriu mão dos motorneiros e bilheteiros quando renunciou ao uso dos bondes como meio de transporte. Países que ainda adotam o bonde continuam contando com os préstimos daqueles profissionais.

A crueldade nisso tudo é que, quando as profissões se extinguem, vão saindo de cena sob os olhares de poucos – pois, na prática, ninguém mais precisava delas. É um processo doloroso, mas apenas para seus praticantes e familiares. Com raras exceções – como dentro da cadeia produtiva de máquinas de escrever – não chega sequer a ser um fator de desemprego. “Quando uma profissão parece estar se esvaindo – um processo geralmente longo, que vai se arrastando – ela deixa de atrair os jovens. Só os mais velhos continuam nela”, destaca Luis Testa, head marketing da Catho, um dos maiores e tradicionais portais de carreiras e empregos do país. “E muitos praticantes também começam a migrar para outras áreas, como no exemplo dos datilógrafos, que se transformaram em digitadores, e as manicures, que viraram esteticistas. A tendência é o deslocamento para uma função mais nova ou abrangente com mercado mais amplo”, esclarece Testa.

Justiça seja feita, porém, não são poucos os barbeiros que também trataram de subir um novo degrau na profissão, não todos, é claro, mas os mais jovens e ativos. O especialista da Catho realça que muitos desses são hoje também cabeleireiros. Na realidade, a atividade de barbeiro começou a perder espaços com a chegada dos aparelhos de barbear descartáveis; todavia, curiosamente, reluta em desaparecer como tantas outras. Um pouco porque se trata de uma das categorias mais unidas e que, ao contrário de outras ocupações, tem sabido compartilhar o salão com o concorrente sem a menor cerimônia. Há na Grande São Paulo algumas avenidas e galerias onde convivem, harmoniosamente, um grande número de barbearias e cabeleireiros, rigorosamente um ao lado do outro. São verdadeiros clusters, e os mais conhecidos podem ser encontrados na Baixada do Glicério, região central da capital paulista, e na Vila Galvão, em Guarulhos, cidade da região metropolitana de São Paulo.

“E viram fregueses”

Outro famoso cluster do tipo ocupa toda uma quadra da Coronel Sezefredo Fagundes, uma avenida extensa da zona norte a meio caminho do Jaçanã, o bairro de Adoniran Barbosa, o compositor de Trem das Onze, Samba do Arnesto, Saudosa Maloca e Tiro ao Álvaro. O cliente que vai até lá pode escolher entre mais de dez salões (barbeiros ou cabeleireiros – unissex ou só para mulheres), todos com placas chamativas na entrada, e cobrando mais ou menos os mesmos preços. “É claro que a concorrência é maior”, argumenta Jorge Luis, veterano dublê de barbeiro e cabeleireiro que trabalha na Janete Cabeleireiros. “Mas, em compensação, ficamos mais visíveis. Pela avenida trafegam mais de 20 linhas de ônibus. Portanto, somos vistos, de forma que quando as pessoas que circulam pelo ‘Adoniran Barbosa’ precisam dar um trato no cabelo, na barba e no bigode, acabam vindo aqui. E viram fregueses.”

Seguindo: há duas profissões que entraram literalmente em crise terminal com as transformações experimentadas pelo mundo, contudo, é preciso dizer, estão resistindo: os requintados ofícios de afinador de piano e do ensino da caligrafia. O afinador esteve em evidência quando as famílias de classe média, especialmente as mais afortunadas, tinham o hábito de acomodar um piano na sala de estar, ocupação que perdeu terreno quando esse costume desapareceu (devido ao surgimento de novos gostos, mas, também, por exigir salas maiores que as dos imóveis construídos atualmente).

Os pianos continuam a ser fabricados e utilizados profissionalmente, mesmo tendo perdido mercado para os teclados eletrônicos. O resultado é que não sobraram muitos afinadores na praça, e os que restaram só atendem gente do próprio ramo: fabricantes e oficinas, orquestras e conjuntos, estúdios e casas de espetáculo. Um deles é o carioca Francisco José dos Santos, 53 anos, que afina o instrumento musical há 30, tendo militado nos estados do Rio de Janeiro, Paraíba e Goiás antes de vir a São Paulo para trabalhar no fabricante e reconstrutor de pianos Zimmermann, onde é um dos principais técnicos da área. “Já não é compensador atuar por conta própria porque o mercado não tem o tamanho de antes”, assinala Santos, que, entretanto, ouviu dizer que há 8 mil afinadores no mundo e uma média de 15 mil pianos para cada um. Ele também dedilha o instrumento na noite paulistana “para complementar a renda”, diz. E quanto o cliente desembolsa para ter seu piano afinado? “A afinação a domicílio custa, em média, R$ 250 por três horas de trabalho”, revela.

Uma outra ocupação em baixa, mas que pode durar ainda algum tempo até sumir definitivamente é o ensino da caligrafia. Em plena era do computador, continua grande a demanda especialmente por cursos de caligrafia artística, que tem a seu dispor o eterno mercado de diplomas e documentos comemorativos ou especiais. A Associação de Calígrafos de Belo Horizonte estima que 2 mil pessoas exerçam o ofício só na capital mineira. Entre eles destaca-se Silvio Antônio de Sousa, 73 anos, que há mais de duas décadas ensina a técnica da boa escrita em seu escritório no centro da cidade. Autor de dois livros sobre o assunto, ele só dá aulas particulares. “E não pretendo parar. Estou até pensando em abrir um escritório em São Paulo”, confidencia.

Não seria justo dizer que a sociedade brasileira nada reteve das profissões que já morreram. O país de fato cultiva mal o seu passado, mas alguns ofícios permanecem tão vivos na memória popular que inspiraram até temas de filmes e poemas, como o de acendedor de lampiões, apenas para citar um único exemplo. Há profissões que viraram acervo de museus, como o telegrafista, que desapareceu do horizonte com as modernas tecnologias de comunicação (mas não os telegramas, na sua versão computadorizada: anualmente, cerca de 20 milhões deles são transmitidos no país). Como a telegrafia tem a sua história umbilicalmente ligada à da ferrovia, vários museus ferroviários espalhados pelo Brasil exibem peças que um dia ajudaram a dar vida à atividade. O maior acervo, contudo, está reunido no Museu Nacional dos Correios, em Brasília, em uma ala reservada exclusivamente para o segmento.

Ali estão expostos desde velhos aparelhos de telégrafos até álbuns de fotos do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, um dos heróis da telegrafia brasileira, enfim, um vasto acervo documental que inclui até boletins telegráficos de interesse histórico e cultural. O museu também lembra de passagem a ligação que existia entre a telegrafia e a música popular. “Muitos telegrafistas eram músicos simplesmente porque a grande maioria tinha um ouvido extraordinário”, explica o historiador Romulo Valle Salvino, chefe do Departamento de Gestão Cultural dos Correios. “A primeira geração de músicos de chorinho, por exemplo, foi constituída por telegrafistas”, ele conta.

Os fotógrafos lambe-lambe e os que operavam em estúdios primitivos também são frequentemente homenageados porque representaram duas atividades que também ficaram apenas na lembrança. No final do no passado, o fotógrafo Assis Horta, hoje com 95 anos, foi tema de uma exposição no Palácio do Planalto, em Brasília, em comemoração aos 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Quando na ativa, décadas atrás, Horta fotografou milhares de trabalhadores de Diamantina, cidade de Minas Gerais, em cumprimento às exigências da lei trabalhista, que determina a afixação de uma foto, tamanho 3x4, na Carteira de Trabalho dos brasileiros. O detalhe é que a esmagadora maioria nunca tinha sido antes fotografada, pois até então este era um luxo disponível apenas para a burguesia.