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“O samba em pessoa”

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Por: HERBERT CARVALHO

Nas décadas de 1970 e 1980, os shows de calouros davam a nota na disputa pela audiência da televisão brasileira. Na Buzina do Chacrinha e no Programa Silvio Santos, as atenções se voltavam para a jurada rabugenta que ostentava um visual tanto incomum quanto meticulosamente elaborado para ela por seu amigo, o estilista e costureiro Dener Pamplona de Abreu: calça comprida, bota ortopédica para os pés chatos, camisas estampadas com flores e cores berrantes para associá-la ao imaginário psicodélico então em voga, tudo arrematado pelo cabelo estilo black power e por óculos escuros de armação grossa, que a câmera focalizava em close ao captar seus comentários debochados.

Nas tardes de domingo, após assistir a uma mulata rebolativa e desafinada entoar um samba, ao ser convocada pelo sorridente patrão para dizer quanto valia o número, ela disparava: “Tu não canta nada, minha filha. Mas leva 500 pratas pelo calibre da jaca”. O auditório vinha abaixo, entre risos e vaias. Se o público soubesse que aquela senhora de “bofes azedos”, como ela própria se definia, habituada a empregar gírias em escala industrial, ainda usava como roupa íntima folgadas cuecas samba-canção, certamente se reforçaria a fama de lésbica que indevidamente angariou.

Por trás daquele estereótipo desglamurizado para consumo das massas, especialmente concebido para lhe render uns bons cobres na fase final da vida, estava, porém, uma mulher refinada e culta, ouvinte de Mozart, colecionadora de obras de arte e de amantes, que fora uma das mais famosas cantoras brasileiras entre os anos 1930 e 1960.

Existencialista antes de Sartre, precursora de hippies e de punks, a diva transgressora Aracy Teles de Almeida (1914-1988) era “um paradoxo com duas pernas”, como a definiu a também cantora e admiradora Zélia Duncan. Entre as quase quatrocentas músicas que deixou gravadas, com sua voz de timbre inigualável – “delicioso, profundamente carioca, um nasal bem quente, sensual”, como observado por ninguém menos que Mário de Andrade – está o mais significativo registro da obra de Noel Rosa, chancelado pelo poeta de Vila Isabel, que ainda em sua curta vida afirmou: “Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo”.

Alçada à condição de porta-voz póstuma do amigo que acompanhou por cabarés e bebedeiras, Aracy de Almeida foi, entretanto, muito mais que a herdeira de Noel, papel reducionista que a aprisionou a partir de reportagens e entrevistas que só batiam nessa tecla. Capaz de fazer sombra a Carmen Miranda antes que esta se tornasse estrela em Hollywood, lançou sucessos de Assis Valente e Ary Barroso, tais como Fez Bobagem e Camisa Amarela, respectivamente. E tudo isso, sem abandonar o subúrbio em que nasceu, viveu e morreu exatamente como na letra de X do Problema, que adverte: “Não posso mudar minha massa de sangue/ Você pode ver que palmeira do mangue/ Não vive na areia de Copacabana”.

O Encantado

O bairro da zona norte do Rio de Janeiro que fica depois do Méier e antes de Madureira, pela linha do trem da Central do Brasil, chama-se Encantado por causa de um condutor que teria desaparecido, em priscas eras, com sua charrete puxada a burros, como que “por encanto” nas águas torrenciais então ainda límpidas do rio Faria, que corta as redondezas.

Retratado em 1984 pela novela Partido Alto, da Rede Globo, sua população é, de acordo com o escritor João Antônio Ferreira Filho, composta por “negros, mulataria, mestiçados que, na pobreza, vivem num ambiente de espontaneidade e pouca correria”. Assim, jamais teria despertado o interesse dos meios de comunicação não fosse pela força de duas mulheres ali nascidas. Uma delas, Fernanda Montenegro, baluarte do teatro e do cinema brasileiro, não manteve vínculos posteriores com o lugar. A outra, porém, se tornaria a Dama do Encantado, título do último livro escrito por Ferreira Filho, uma coletânea de crônicas sobre personalidades notáveis do nosso país. Na capa de obra dedicada exclusivamente a ela por Hermínio Bello de Carvalho, de caráter biográfico, seu apelido mais característico é acompanhado por graduação nobiliárquica dela própria e de seu subúrbio: Araca, Arquiduquesa do Encantado.

Única mulher entre os filhos do chefe de trem Baltasar Teles de Almeida e da dona de casa Hermogênea, Aracy teve seu destino marcado pelo protestantismo, a religião da família. Seu irmão Alcides foi, inclusive, pastor da igreja Batista onde ela estreou cantando hinos religiosos no coro, de forma semelhante às mais célebres cantoras norte-americanas negras como ela. Fora da vigilância familiar, porém, cantava, de forma muito brasileira, pontos de candomblé e refrões de blocos carnavalescos. Após os estudos em colégios nos bairros vizinhos do Engenho de Dentro e do Méier, teve a oportunidade de cantar para o pianista e compositor Custódio Mesquita que, impressionado com sua voz, a levou para iniciar carreira na Rádio Educadora, atual Rádio Tamoio, do Rio de Janeiro, em 1933.

Apesar de todo o sucesso que obteve, Aracy jamais se afastou do Encantado, onde morou a maior parte de sua vida em uma casa térrea, com jardins ao fundo e grandes janelas ensolaradas sempre abertas, cercada por azáleas e caramanchões. Dentro, o visitante se deparava com quadros de Di Cavalcanti, Clóvis Graciano e Aldemir Martins, um busto da própria cantora esculpido por Bruno Giorgi, mobília de bom gosto, vasos raros, cristais da Bohemia e tapetes persas nos quais se espreguiçavam seus cachorros como o poodle Feijão.

A bordo de táxis que cruzavam a cidade nas madrugadas, rumava das boates de Copacabana em que cantava na década de 1950 para o refúgio que jamais quis trocar por nada. “Nasci no Encantado, ali fui criada, menina pobre, dormia em cima de esteira. Lá tenho minha casa com minhas flores e meus cachorrinhos de estimação. Eu lá vou me sujeitar a viver dentro de um apartamento? Não, compadre, não é por nada não, mas esse babado de zona sul, apartamento de quarto e sala, a sua tia aqui não embarca nessa canoa”, dizia.

Na época do Natal, radicalizava ainda mais: recusava qualquer contrato e, de calça comprida, camisa amarrada na cintura, pés descalços e braços nus, fechava-se em casa para armar com habilidade o presépio e demais badulaques natalinos, além de preparar a mesa com doces, frutas, nozes, avelãs e rabanadas.

Palpite infeliz

O ano de 1930 representou um divisor de águas no Brasil com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, e isso não apenas na política e na economia. Também em nossa vida cultural: foi quando Carmen Miranda gravou Pra Você Gostar de Mim – mais conhecida por Taí, de Joubert de Carvalho. Para ela Noel Rosa compôs Com que Roupa?, sucessos que projetaram a cantora e o compositor, símbolos da Época de Ouro (1929-1945) da música popular brasileira. Todavia, um não combinava com o outro. Não completavam os dedos de uma só mão as canções de Noel gravadas pela Pequena Notável, enquanto ele costumava perguntar com desdém: “Isto é samba ou aquela outra coisa que a Carmen Miranda canta?”.

Assim, não é de estranhar que aquela mulata miúda, de cabelo encarapinhado e jeito de moleque, que transbordava autenticidade, tenha despertado a atenção de Noel. Após ouvi-la nos estúdios da rádio, dispensou apresentações e foi direto: “Você tem jeito. Canta bem. Mas que tal aprender uns sambas novos e deixar para lá o repertório da Carmen Miranda?” Aracy, até então, gravaria duas marchas para o carnaval de 1934 seguindo à risca o “mirandismo”, que levava dezenas de cantoras a imitar os trejeitos e se limitar à leveza dos temas que celebrizaram Carmen. Teria sido mais uma cópia distante do original, fadada a cair no esquecimento como tantas, se não tivesse agarrado a oportunidade com unhas e dentes. Na mesma noite em que conheceu Noel, foi à Taberna da Glória onde ele a apresenta aos malandros amigos e lhe ensina sambas seus como Riso de Criança, o primeiro que ela gravará. O seguinte, Triste Cuíca, inaugura a galeria de cantoras capazes de expressar a dor feminina, que mais tarde incluirá Maysa e Dolores Duran.

“Nunca vi uma mulher dizer tanto nome feio.” Dona Marta, mãe de Noel, se espanta, mas sequer imagina que esta amiga do filho – além de beber, fumar e jogar sinuca – ainda o acompanha à zona do baixo meretrício. “Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer. Ele pegava a viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram muito engraçados”, contou Aracy, em depoimento a Ferreira Filho. Também foram dias produtivos apesar de poucos, em razão da morte prematura de Noel em 1937, aos 26 anos. Dele, Aracy gravaria 13 músicas durante a década de 1930 e o restante no início dos anos 1950, quando a obra do poeta é redescoberta. Na primeira leva estão X do Problema, Último Desejo, Rapaz Folgado e Palpite Infeliz, estas duas últimas integrantes da famosa polêmica com Wilson Batista.

Grande êxito de 1935, Palpite Infeliz deveria ter integrado a trilha sonora de Alô, Alô Carnaval, musical daquele ano que contou com Carmen e Aurora Miranda, Francisco Alves e Mário Reis e previa também participação de Aracy. Filmes assim batiam recordes de bilheteria por ser a única chance, na época, dos brasileiros de fora dos grandes centros urbanos verem em ação ídolos que só podiam ouvir pelo rádio. Apesar disso, quando soube que iria cantar lavando roupa num tanque, cenário deprimente e diferente daqueles reservados aos demais colegas, Aracy não teve dúvidas. “Com todo o respeito, vão à merda e à berdamerda. Eu me escafedo”, disparou, reagindo contra a discriminação, de acordo com a biografia de Carmen Miranda escrita por Ruy Castro.

Em 1938, o grande sucesso lançado por Aracy, que a tornou realmente popular, não foi de autoria de Noel ou de qualquer compositor famoso, mas de Ciro de Souza e Waldomiro José da Rocha (Babaú), este último um crioulo da Mangueira, criador destes versos pungentes e ainda tão atuais de crítica social: “Ai, ai meu Deus/ tenha pena de mim/ trabalho, não tenho nada/ não saio do miserê/ ai, ai meu Deus/ isso é pra lá de sofrer”. O título original do samba, Ai, Ai Meu Deus teve que ser substituído por Tenha Pena de Mim, porque a censura do Estado Novo vetava a palavra “Deus” em títulos de canções.

Avião dos covardes

Consagrada pelo radialista César Ladeira com o apelido de “O Samba em Pessoa”, Aracy firmou-se como o segundo nome feminino da rádio Mayrink Veiga, atrás apenas de Carmen Miranda, que chegou a se queixar dela para o diretor da emissora, em termos de visível rivalidade: “Ela vive me importunando. Outro dia me deu um esbarrão de propósito na escada que me desequilibrei e quebrei a unha”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, quando Carmen já estava nos Estados Unidos, Aracy dominou o carnaval brasileiro com marchas da dupla Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, como O Passarinho do Relógio (Cuco) e O Passo do Canguru, e sambas, entre os quais Louco (Ela é seu Mundo), obra-prima de Wilson Batista e Henrique Almeida. É também nesse tempo que ela grava Camisa Amarela, de Ary Barroso, e Fez Bobagem, de Assis Valente, êxitos pioneiros da perspectiva feminina em nosso cancioneiro, vertente que se tornaria marca registrada de Chico Buarque de Hollanda.

O ano de 1946 traz uma virada no meio musical do Rio de Janeiro, que a favorece e muda sua vida: o fechamento dos cassinos decretado pelo governo Dutra substitui no panorama da noite carioca as apresentações com orquestras e corpo de baile pela intimidade das pequenas boates que surgem em Copacabana. Desprezada até então nos grandes espetáculos pela falta de atributos físicos, a penumbra e a proximidade do público serão agora o habitat natural para sua voz potente, que dispensava microfones e amplificação.

Entre 1948 e 1952, ela conquista os grã-finos da boate Vogue e leva para a zona sul o repertório de Noel, abandonado durante mais de uma década. Músicas ainda inéditas como Três Apitos chegam também ao grande público em alguns dos primeiros álbuns da fonografia nacional que hoje seriam chamados de “conceituais”, dedicados por uma cantora a um só autor, com direito a arranjos de Radamés Gnattali e capa desenhada por Di Cavalcanti. A partir daí, Noel nunca mais precisou ser “redescoberto” ou “resgatado”.

Nas décadas de 1950 e 1960, Aracy troca os malandros do morro por um círculo de intelectuais e boêmios que inclui os compositores Antônio Maria, Fernando Lobo (pai de Edu Lobo) e Paulo Soledade (também piloto de avião) e os poetas Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes, que falou: “Na madrugada púnhamos Aracy no seu táxi e ela partia para o Encantado. Ninguém podia avaliar bem a riqueza interior dessa menina, que nunca chegou a ficar realmente adulta e que saiu da pobreza mais franciscana para a glória mais inconteste, sem nada perder de sua sensibilidade, timidez e total desambição”.

Quando se muda para São Paulo, onde morou até meados dos anos 1960, esses amigos a visitam viajando no “avião dos covardes”, apelido dado por ela ao trem noturno que então ligava as duas maiores cidades brasileiras. A sisudez paulista não a intimida. Ao passar pelo Viaduto do Chá, ironizava: “Esta é a Ponte dos Suspiros”. Indagada por Hermínio Bello de Carvalho a razão de um dia ter atirado dinheiro para o alto no meio de uma boate paulistana, respondeu, invertendo a ordem dos nomes do amigo: “Nada, Bello Hermínio. Foi apenas um desfrute”. Ainda em São Paulo, Caetano Veloso fez para ela a música A Voz do Morto, gozação sobre um festival que desclassificara um samba defendido por Aracy. A canção foi gravada no CD dedicado a ela, no volume 4, da coleção A Música Brasileira por seus Autores e Intérpretes, organizada pelo Sesc SP.

Vago-simpático

Muito discreta em sua vida pessoal, sem maridos ou filhos, Aracy desmentia os rumores de que tivera casos com Noel ou com políticos da época. Os fofoqueiros se favoreciam do fato de que vivia cercada por homens, intervindo aí o machismo brasileiro a semear dúvidas sobre se eram mesmo apenas amigos, como Antônio Maria, íntimo ao ponto dela lhe ministrar supositórios. Embora não fosse bonita, possuía um trunfo feminino de que se orgulhava: os seios. J. Pettezzoni, membro do famoso grupo de cafajestes cariocas, conta no livro Rio, pra Não Chorar que certa vez, num apartamento, ela ganhou de jovens bronzeadas em concurso para apurar quem tinha a melhor “comissão de frente”.

Dois de seus amores foram mais duradouros e se tornaram conhecidos. O primeiro deles foi um goleiro de seu time de coração, o Vasco (em São Paulo se dizia palmeirense), com quem morou entre 1938 e 1942. Mas José Fontana, mais conhecido por Rei, era um mulherengo que se gabava de ter conquistado a mulher do astro americano Tyrone Power. O compositor Pedro Caetano, em suas memórias, conta que após romper a relação com o atleta, Aracy exigiu a mudança da letra de uma canção em trecho que mencionava “o rei do meu amor”. “Ou muda, ou não gravo mais essa merda. Não quero dar cartaz àquele pilantra.”

A experiência amarga a tornou celibatária. “Solteira, sempre. Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos.” Talvez por isso, decidiu inverter a moeda ao conhecer o coronel-médico reformado Henrique Leopoldo Pfefferkorn, que era casado e assim continuou durante seu longo relacionamento mais ou menos clandestino com Aracy.

Descendente de alemães que serviu como intérprete aos soldados germânicos capturados na costa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial, chamado por ela de Heni e de Capita pelos amigos comuns, era também psiquiatra especialista na cura de angústia por hipnose. Com ele Aracy aprendeu toda uma terminologia médica que lhe permitia o autodiagnóstico: “Sou muito enjoada, sofro de vagotonia, tenho o vago-simpático afetado”, dizia, referindo-se ao nervo craniano responsável pelas percepções sensoriais da orelha, faringe, laringe, tórax e vísceras.

Após sua morte em 1988, aos 73 anos, em consequência de um edema pulmonar, a casa do Encantado ficou para sua afilhada, a portuguesa de nome fidalgo Maria Adelaide Serra Bragança, advogada, que lá morou durante algum tempo e depois a vendeu. Poesia na época do rádio, escracho na fase televisiva, Aracy de Almeida deve ser lembrada no centenário de seu nascimento como “coisa nossa”, assim como o samba, a prontidão e a palhoça da verve de Noel, que sua voz perpetuou.