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Ilha Fiscal, onde o Império desabou em ritmo de valsa
Por: FRANCISCO LUIZ NOEL
O castelinho verde encravado numa ilhota da Baía de Guanabara de frente à estação das barcas Rio-Niterói, na Praça Quinze, na capital fluminense, seria apenas mais uma excentricidade arquitetônica no centro da cidade se não tivesse sido, um dia, o palco do baile mais famoso da história do Brasil. No palacete, em estilo gótico provençal, a corte imperial dançou em trajes de gala pela última vez, alegre e despreocupada, na noite de 9 de novembro de 1889, sem saber que a Monarquia fazia água. Passados 125 anos da Proclamação da República, a despedida dançante do velho regime é apenas memória, mas restou do Segundo Reinado o cenário da festa para fascínio de milhares de brasileiros.
A Ilha Fiscal, nome do lugar, desponta como a mais admirável relíquia do Complexo Cultural da Marinha. Espalhado nos dois lados da Praça Quinze, o conjunto abrange um Espaço Cultural, o antigo prédio da Ilha das Cobras, o Museu Naval, a Biblioteca e o Arquivo da Marinha. Outras atrações estão no cais – a réplica de uma nau do tempo do Descobrimento; o rebocador Laurindo Pitta, da Primeira Guerra Mundial; o Navio-Museu Bauru, contratorpedeiro da Segunda Guerra Mundial; e o Submarino-Museu Riachuelo, aposentado das missões militares no fim dos anos 1990.
Da terra firme à Ilha Fiscal, a bordo da escuna Nogueira da Gama, de 90 lugares, são três visitas diárias, ciceroneadas por guias da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM). “As pessoas veem o palácio, imaginam o baile e sonham com isso. A ilha exerce uma espécie de encantamento: elas querem ir até lá, querem ver vestígios da festa”, diz o vice-almirante Armando de Senna Bittencourt, diretor da DPHDM, há dez anos no posto. Por conta do sucesso do programa, a Marinha está investindo em melhorias para a recepção dos turistas na ilha, que ganhará bar e cafeteria num prédio anexo ao castelinho.
Esse pedaço de chão incrustado de rochas a menos de 300 metros da margem da baía ostenta a denominação Ilha Fiscal desde a segunda metade dos anos 1880. Antes, tinha o nome de Ilha dos Ratos, creditado pelo folclore carioca à grande população de roedores que vivia no local, fugida de serpentes que reinavam na vizinha Ilha das Cobras. Pela localização privilegiada, perto da área em que fundeavam os navios mercantes procedentes do exterior, o lugar foi escolhido pelo Ministério da Fazenda para a construção de um posto da Alfândega – tarefa entregue ao engenheiro Adolpho José Del Vecchio, diretor de obras da pasta na oportunidade.
Formato de agulha
A beleza natural e a proximidade da ilhota, reza a lenda, chamaram a atenção de dom Pedro II quando o local entrou na mira do Ministério. A ilha, teria comentado o monarca, era “como um delicado estojo, digno de uma joia”. Del Vecchio levou em conta as expectativas do imperador e projetou os 2,3 mil metros quadrados da edificação inspirado nos velhos castelos da região francesa de Provence. De volta à moda no século 19, o estilo gótico provençal se distingue pelas cúpulas em formato de agulha, janelas e portadas ogivais e fachadas encimadas por ameias, à semelhança dos parapeitos recortados das muralhas e torres medievais.
Com duas alas em torno da entrada, somando 68 metros de frente por 28 metros de fundo, o castelinho da Alfândega foi inaugurado por dom Pedro II em abril de 1889, ao fim de sete anos de obras. O transporte dos materiais, incluídos blocos de gnaisse extraídos do Morro do Pasmado, no bairro de Botafogo, havia sido o grande desafio da empreitada, que mobilizou artífices livres e escravos no primoroso trabalho de cantaria e confecção, no torreão, de assoalho em mosaico com 16 espécies de madeiras nacionais. Os vitrais com imagens do imperador e da princesa Isabel foram feitos na Inglaterra e o relógio da torre, na Alemanha, é da afamada marca Krüssmann.
Em 1893, após o advento da República, a condição de raridade arquitetônica não poupou o castelinho de petardos disparados na segunda Revolta da Armada, que conflagrou a Baía de Guanabara. Durante a rebelião, deflagrada contra o presidente marechal Floriano Peixoto, o prédio foi alvo de projéteis que avariaram paredes, vitrais e móveis. Não foi a primeira investida contra a ilha: dias depois da queda da Monarquia, o brasão imperial que até hoje coroa a fachada do prédio quase foi destruído por republicanos que acompanhavam o ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em visita à aduana. O símbolo foi preservado graças a defesa ardorosa do patrimônio feita pelo engenheiro Del Vecchio.
O castelo foi transferido à Marinha em 1913, trocado com o Ministério da Fazenda pelo vapor Andrada, que passou a proporcionar mobilidade à Alfândega. Sede da Superintendência de Navegação desde o ano seguinte, a Ilha Fiscal foi ligada por ponte em 1930 à das Cobras – atual sede do 1º Distrito Naval – e abrigou outras repartições da Marinha até 1988. Dois anos antes, em parceria com o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), a DPHDM havia iniciado a restauração do prédio histórico, aberto à visitação em 2000. Resguardada por muros de pedra e encorpada com aterros, a Ilha Fiscal tem 7 mil metros quadrados – 2,4 mil a mais do que sua área original.
Esposas e parentelas
Enfim, o Baile da Ilha Fiscal tem lugar cativo no imaginário nacional. A curiosidade e o deslumbramento que desperta há mais de um século são renovados cada vez que um brasileiro tem notícia pela primeira vez, na aula de história, da noite de glamour, quando a elite imperial valsava enquanto a Monarquia ia a pique, pouco mais de um ano após o fim da escravidão. Exceção numa corte carente de grandes celebrações festivas, a noitada de gala foi uma deferência do presidente do Conselho de Ministros, visconde de Ouro Preto, do Partido Liberal, à oficialidade do encouraçado chileno Almirante Cochrane, fundeado na baía havia um mês.
Para fazer da festa um acontecimento à altura da pujança de um regime que confiava chegar ao Terceiro Reinado, o governo lançou-se a preparativos que duraram semanas e acabaram por garantir à Monarquia um adeus em grande estilo. Um bosque artificial de palmeiras foi plantado diante do castelinho e, no pátio ao fundo, duas pérgulas foram montadas para proteger as orquestras em caso de tempo chuvoso. Nos seis salões, o mobiliário da Alfândega cedeu lugar a móveis elegantes, em meio à decoração com espelhos, quadros a óleo, porcelanas e arranjos de flores. Na feérica iluminação elétrica, novidade na época, foram usadas mais de 10 mil lâmpadas.
O trajeto desde o continente, nas barcas de Niterói, era iluminado por holofotes de navios como o Almirante Cochrane, que também banhavam de luz o cais Pharoux – atual Praça Quinze, batizada em lembrança do nascimento da República – e o Paço Imperial, sede oficial do governo monárquico. No cais, a multidão assistia a tudo ao som de bandas que tocavam lundus e outros ritmos populares, em contraste com o repertório de salão que se ouvia na ilha. O baile reuniu mais de 3 mil pessoas. Eram ministros, senadores, deputados, presidentes de províncias, diplomatas, barões, viscondes, marqueses, funcionários graduados e militares de altas patentes – todos com esposas e parentelas.
As valsas, polcas, quadrilhas e mazurcas soavam simultaneamente nos três salões da ala direita, executadas por uma orquestra, enquanto outra enchia de música os salões da ala oposta – um deles, transformado em camarote privativo da família imperial. Dom Pedro II marcou presença no baile ao lado da imperatriz Teresa Cristina, da princesa Isabel, do conde d’Eu e do príncipe Pedro Augusto. O menu, farto e variado à francesa, incluiu mais de mil costeletas de carneiro e igual quantidade de frangos, 800 quilos de camarão, 500 perus, 18 mil frutas, 10 mil litros de cerveja, 188 caixas de vinho e 88 de champanhe.
Marco da queda do Império, o Baile da Ilha Fiscal tem capítulo só seu no último livro do jornalista Laurentino Gomes, 1889 (Globo Livros), que narra o ocaso do velho regime e a aurora republicana. Foi “a maior e mais festejada festa promovida pela Monarquia brasileira em todos os seus 67 anos de história, ou seja, desde que o país se tornara independente”, escreveu Gomes. Na mesma noite da festança, que renderia comentários na imprensa por vários dias, os últimos momentos do Império eram contados por oficiais que maquinavam a derrubada do regime reunidos no Clube Militar, no Campo de Santana, mais tarde Praça da República.
Pelo simbolismo do baile e pelo inusitado das circunstâncias, muito já se escreveu sobre ele. No romance Esaú e Jacó, de 1904, o carioca Machado de Assis ambienta a narrativa na queda do Império e despacha os personagens principais à Ilha Fiscal – o banqueiro Santos e a mulher, Natividade; os filhos gêmeos, Pedro e Paulo; o conselheiro Aires; a mocinha Flora e seus pais, Batista e dona Cláudia, empenhada em ver o consorte presidir de novo uma das províncias, os futuros estados. “Para ela”, relatou o grande escritor, “o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência.”
Mais de um século depois, ecos e lampejos da noite memorável pululam nas cabeças dos turistas. Que o digam as baianas Miralva Boaventura, 48 anos, gerente de cooperativa, e Thays Boaventura, 28, farmacêutica – mãe e filha residentes em Conceição do Coité, a 220 quilômetros de Salvador, que visitaram a ilha em outubro de 2013. “Sabíamos do baile pelos livros de escola e viemos conhecer mais sobre o que se passou. Assim nos sentimos mais perto da história. Mas não esperava tanta beleza”, entusiasma-se Thays, expressando o deslumbramento que as imagens difusas da festa exercem entre brasileiros dos quatro cantos do país.
“Eles vêm por causa do baile e ficam apaixonados pela arquitetura”, testemunha a guia Rosa Maria March, que recebe visitantes, incluídos grupos escolares, desde a abertura do lugar ao público, 14 anos atrás. Rosa, que conhece de cor e salteado a história da ilha e do baile, começa a visita guiada pelos salões da antiga Ala do Cerimonial, onde são expostos resquícios da festa, como o convite e o cartão de embarque na barca, e duas outras preciosidades: o memorial descritivo da obra feito para dom Pedro II pelo engenheiro Del Vecchio e uma réplica do quadro Último Baile da Ilha Fiscal, de Francisco Aurélio de Figueiredo. No salão ao fundo, que foi reservado ao imperador, uma mesa posta remete à lembrança daquela noite.
No estilo academicista em voga na entrada do século 20, a pintura retrata os convivas elegantes na frente do castelinho e, ao fundo, os contornos da cidade, com destaque para o Pão de Açúcar. Dom Pedro II e sua família aparecem na parte inferior, à direita, enquanto à esquerda, no alto, paira a imagem diáfana de uma mulher com a bandeira nacional – uma alegoria da República que ganhava forma enquanto a elite imperial divertia-se com fausto na ilha. Apesar de cobrir quase toda a parede do salão, a réplica não se compara em tamanho com o original, de 3 metros de altura por 7 metros de largura, conservado no Museu Histórico Nacional, no centro da cidade.
Da antiga Ala do Cerimonial até o torreão do castelo, onde despacharam as chefias da Alfândega e, depois, das repartições militares, são exatos 38 degraus de uma escadaria de pedra em caracol. O torreão, ornamentado por colunas, arcos e florões, invoca símbolos do Império nos mínimos detalhes, ostentando os coloridos vitrais de dom Pedro II e da sucessora Isabel, a quem caberia o Terceiro Reinado. Na outra ala do prédio, a Marinha exibe uma exposição permanente sobre seu papel na integração nacional e o atendimento a comunidades ribeirinhas na Amazônia e no Pantanal.
Fascínio especial
A Ilha Fiscal recebeu mais de 320 mil pessoas em 2013. As outras atrações do Complexo Cultural da Marinha completam a festa dos frequentadores, proporcionando um panorama da história naval no Brasil. Exemplo é a Nau dos Descobrimentos, modelo em escala natural de uma embarcação quinhentista a vela incorporada ao espaço cultural em 2008. Construída em 2000, para os festejos dos 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral, a nau foi adaptada e ornamentada pela DPHDM com base em fontes iconográficas do século 16, para dar a jovens e adultos uma visão da rotina de bordo no tempo das grandes navegações.
No rebocador Laurindo Pitta, a Marinha, de sua parte, oferece passeios pela Baía de Guanabara duas vezes por dia. Costeando o Aeroporto Santos Dumont e o Parque do Flamengo, a embarcação vai até a entrada da baía, onde estão o Pão de Açúcar e dois baluartes históricos da defesa da cidade pelos portugueses contra invasores – o Forte de São João, do lado carioca, e a Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói. Na volta, o navio passa defronte ao Museu de Arte Contemporânea (MAC), projeto de Oscar Niemeyer erguido em Niterói, vai até a monumental Ponte Rio-Niterói, para circundar depois a Ilha Fiscal e regressar ao cais.
Construído em 1910, na Inglaterra, por encomenda do governo brasileiro, o Laurindo Pitta é o único remanescente da antiga Divisão Naval em Operações de Guerra (DNOG) que atuou em tarefas de apoio no primeiro conflito mundial, travado de 1914 a 1919. Com 39 metros de comprimento, 8 metros de boca, velocidade de 20 Km/h e capacidade para mover até 514 toneladas, o navio prestou serviços de reboque em alto-mar até os anos 1990. Remodelado em 1997, ganhou assentos para 90 pessoas e um compartimento adaptado para exposição permanente sobre a participação da Marinha na guerra.
Bem mais novo, o contratorpedeiro Bauru não se faz ao mar. Desde 1992, está atracado ao cais do Espaço Cultural para mostrar, em seus 93 metros de comprimento por 11 metros de boca, como era a vida dos embarcados durante as ações da Marinha na Segunda Guerra Mundial. O navio foi fabricado nos Estados Unidos e, agregado à frota norte-americana em 1943, passou à brasileira no ano seguinte. No período em que durou o conflito, de 1939 a 1945, o Bauru deu caça a submarinos alemães no Atlântico, escoltou comboios mercantes e apoiou o transporte de tropas. Antes de se tornar navio-museu, fez parte, até 1981, do Esquadrão de Avisos Oceânicos.
A outra embarcação-museu da Marinha exerce fascínio especial sobre visitantes de todas as idades que nunca viram um submarino por dentro, exceto no cinema e na tevê. No Riachuelo, fabricado na Inglaterra e integrado à armada brasileira em 1977, o trajeto da visita inclui as salas dos torpedos e de navegação, com direito à observação do exterior pelo periscópio, o camarote do comandante, os dormitórios da tripulação e a cozinha. Com 90 metros de comprimento e 8 de boca, o Riachuelo funciona como museu desde 1997.
Prédio centenário
Em terra, o Espaço Cultural da Marinha mantém uma preciosidade – a Galeota Imperial, de 1808, construída em Salvador logo após a chegada da corte portuguesa. De madeira nobre folheada a ouro, a embarcação era usada em passeios pela Baía de Guanabara por dom João VI, que a utilizou para levá-lo ao navio que o levou de volta a Portugal, em 1821. A galeota também transportou convidados ao Baile da Ilha Fiscal, quase sete décadas depois, e fez a última viagem em 1920, na visita dos reis da Bélgica ao Rio. Outra atração terrestre é o Helicóptero-Museu Sea King, fabricado nos Estados Unidos e que integrou a frota antissubmarina brasileira até 2005.
O Complexo Cultural da Marinha tem como sala de comando o Museu Naval, sede da DPHDM. Instalado num prédio centenário de três andares e estilo eclético na Rua Dom Manuel, no outro lado da Praça Quinze, o museu exibe seu acervo na mostra permanente O Poder Naval na Formação do Brasil, que ocupa sete salas no térreo. Entre as peças despontam modelos navais de várias épocas, canhões dos séculos 16 e 17, pinturas que retratam navegações e combates, figuras de proa de embarcações de guerra do século 19, mapas e maquetes de combates navais na Guerra do Paraguai.
Os projetos educativos são a grande aposta da Marinha no museu: em 2013, quase 500 turmas de estudantes estiveram no local para diversas atividades lúdicas e educativas. O diretor da DPHDM, Armando de Senna Bittencourt, resume a razão de ser do museu e das demais atrações do Complexo Cultural: “a Marinha procura incentivar a consciência de que o mar é muito importante para o futuro dos brasileiros”.