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Estragos na frente contra a Aids
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Desde que se formou em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e decidiu prestar atendimento às populações do interior da Amazônia, Pedro Chequer dedica sua vida profissional à saúde pública. Hoje, prestes a completar 63 anos no próximo dia 15 de abril, ele é uma das mais respeitadas autoridades quando o assunto é Aids – doença que acomete cerca de 657 mil brasileiros, segundo o Ministério da Saúde (apuração de junho de 2012). Chequer já esteve na linha de frente do programa do governo federal de resposta à epidemia no país. Em 2000, foi trabalhar na Unaids (Programa conjunto da Organização das Nações Unidas [ONU] sobre HIV/Aids) focado na prevenção da doença e no atendimento aos portadores do vírus HIV. Pela Unaids, além de coordenar programas no Brasil, já passou por Argentina, Rússia, Moçambique e Panamá.
Nesta entrevista exclusiva concedida à revista Problemas Brasileiros, Chequer faz uma análise sobre as políticas públicas do país de prevenção e tratamento à Aids. Para 2014, sabe-se, o orçamento do governo federal para a área da saúde deverá atingir R$ 106 bilhões. Pós-graduado em epidemiologia pela Universidade de Berkeley (Califórnia, Estados Unidos), Chequer defende a quebra de patentes de mais fármacos para ampliar o acesso ao coquetel utilizado no combate à doença. “Hoje, o tratamento é uma verdadeira vacina para evitar a transmissão da Aids porque o indivíduo que segue a rigor a prescrição terapêutica reduz em até 96% a chance de transmitir a moléstia”, afirma o médico.
Outra preocupação de Chequer é a ascensão de fundamentalistas cristãos no Congresso Nacional, que, em sua avaliação, atrapalham as políticas públicas de prevenção da doença, sobretudo entre as populações mais vulneráveis à Aids, como homossexuais e profissionais do sexo.
Problemas Brasileiros – O programa de resposta à Aids no Brasil é respeitado internacionalmente. Estima-se que em torno de 657 mil pessoas sejam portadoras de HIV no país, mas apenas 313 mil têm acesso a tratamento médico. Como mudar esse quadro?
Pedro Chequer – Em 1996, o Brasil foi pioneiro na discussão dos países em desenvolvimento para prover acesso a antirretrovirais. A partir dali, estabeleceu-se uma política pública que deixou de ser de governo e passou a ser de Estado porque ela nunca foi interrompida, sendo mantida mesmo nos períodos de dificuldade financeira. O primeiro ponto a considerar é a questão das iniquidades regionais. O país tem grandes diferenças de cobertura e de acesso ao tratamento e ao diagnóstico. Com base nos dados do Ministério da Saúde, sabemos que a adversidade se faz mais presente nas regiões Norte e Nordeste. Na região Norte há uma carência muito grande de diagnóstico, principalmente na zona rural. O tratamento acontece nas grandes cidades e a população do interior fica desguarnecida. A dificuldade de acesso ao serviço de saúde se deve ao fato de que o tratamento da Aids depende do Sistema Único de Saúde [SUS]. E o SUS está cambaleante, sofrendo um revés com a privatização e com a terceirização dos serviços, deixando pouco a pouco de ser um mecanismo de Estado. Sem um SUS forte, não é possível expandir o diagnóstico e nem reduzir as iniquidades regionais. Outro aspecto é a mobilização social. Não se conseguirá nunca a ampliação do tratamento sem uma ampla mobilização social através do envolvimento dos movimentos sociais, das Organizações Não Governamentais [ONGs] e da mídia. O processo que está em curso para diagnóstico e tratamento foi relançado em dezembro de 2013, mas nós não vemos divulgação na televisão. Os meios de comunicação não estão mobilizados e envolvidos no processo. Não há pronunciamentos de grandes líderes, de governadores, da presidente ou de outros ministérios que não o da Saúde. Tenho a impressão de que [a comunicação] é uma proposta essencial para ampliar o diagnóstico. Todavia, ela acontece em 1º de dezembro [Dia Mundial de Combate à Aids] e no carnaval, mas depois desaparece da mídia. É necessário um processo bastante intenso de mobilização social, utilizando os meios de comunicação. E uma mobilização da classe política de alto nível, a partir do posicionamento, por exemplo, da presidente. Fernando Henrique Cardoso se manifestava sobre a Aids, assim como Luiz Inácio Lula da Silva, mas a presidente Dilma, pelo menos que eu saiba, nunca se posicionou sobre o tema de maneira pública. Isso diminui a importância política do problema e faz com que os governos estaduais e municipais, que são executores do SUS e implementadores de políticas públicas, releguem o tema a um segundo plano.
PB – Há falta de recursos?
Chequer – Não, não há. Para o tratamento não falta. Uma estratégia importante é garantir alternativas de diagnóstico. Tradicionalmente, o Brasil fazia o exame de detecção Elisa [sigla em inglês para Enzyme Linked Immunosorbent Assay] como o mundo todo faz, em laboratório com bioquímica. Nos anos 1990, foi introduzido o teste rápido. Em 2005, chegou o teste rápido resolutivo, com diagnóstico em 20 minutos. No momento, está sendo ampliada essa estratégia. Em algumas regiões, como o Nordeste e a Amazônia, é importante utilizar o teste rápido porque dificilmente vamos ter laboratórios públicos ou privados disponíveis para fazer o teste tradicional. No final de 2013, o Ministério da Saúde decidiu utilizar o teste oral, que em breve deverá ser implementado. Isso é mais uma alternativa.
PB – Quanto custa por mês o tratamento individual da doença?
Chequer – O preço vem caindo ao longo dos anos. No início, nos anos 1990, ele custava US$ 7 mil por ano. Hoje está em torno de US$ 1,6 mil. Mas eu diria que ainda está caro no Brasil. Na África, utilizando os genéricos indianos, por exemplo, o tratamento está na casa das centenas de dólares. Comparativamente, o custo no Brasil ainda está caro. Por quê? Porque o Brasil privilegiou a produção nacional e estatal, que precisa ser turbinada do ponto de vista da eficiência, porém é uma estratégia política importante. É preferível realmente pagar um pouco mais caro para que a indústria nacional produza porque isso evita que o país dependa da importação de medicamentos de multinacionais ou de outros produtores de genéricos.
PB – O senhor é um grande defensor do licenciamento compulsório de antirretrovirais produzidos fora do país. Como está essa política?
Chequer – O Brasil tomou a decisão errada em 1995, quando adotou precocemente o Trips, [sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio]. Poderia ter aguardado, como a Índia, que esperou até 2005. É por isso que a nação asiática tem hoje uma indústria nacional de produção de genéricos que exporta para o mundo inteiro, a baixo custo, e com eficiência. Só que, por pressão do governo americano, o Brasil se precipitou e passou a reconhecer a patente de medicamentos, antecipada em dez anos. A lei brasileira, de acordo com a lei internacional, permite que se emita a licença compulsória [quebra de patente para produção local]. Entre 2004 e 2005, o país tentou emitir licença compulsória para o medicamento Kaletra, da companhia farmacêutica Abbott, e mais dois medicamentos. Mas, infelizmente, não avançou. Esse processo amadureceu e, em 2007, foi a vez da licença compulsória do medicamento Efavirenz. Mas é essencial que o país passe a utilizar mais efetivamente o mecanismo do Trips, emitindo licença compulsória para a produção de medicamentos sem o caráter de patente.
PB – Como fazer a indústria brasileira avançar na produção de medicamentos e antirretrovirais?
Chequer – Ampliar o parque nacional estatal e não apenas o privado – que é importante que se fortaleça. Mas é fundamental que o Estado, com base na Constituição, que encara a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, promova o fortalecimento e a ampliação da produção de medicamentos genéricos. Aí entra a necessidade de licença compulsória para que o genérico possa ser produzido. O que está sendo feito até aqui é importante, mas não é suficiente. Há necessidade, talvez, de dobrar ou triplicar investimentos em laboratório estatal para que se possa competir com mais eficiência.
PB – A produção brasileira de antirretrovirais consegue atender a demanda interna?
Chequer – Não. O Brasil produz uma variedade que não é suficiente. São 20 princípios ativos e o Brasil produz apenas dez. E esses medicamentos vêm sendo menos utilizados porque estão surgindo novos. Mas os novos estão sob patente e aí se cria a necessidade de ampliar o elenco de licenças compulsórias. Na prática, a quantidade de medicamentos produzidos no Brasil permanece a mesma desde o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Os únicos acréscimos foram a produção do Efavirenz e do Tenofovir. A médio prazo, corremos o risco de ter tudo sob patente porque os medicamentos antigos vão perdendo terreno. E vai chegar um momento em que seremos totalmente dependentes da importação.
PB – Quebrar a patente de um medicamento é um processo muito complexo?
Chequer – Não é complicado. A legislação é bastante clara, os passos estão bem definidos. É uma decisão política de priorizar a área de saúde. Eu me lembro que, em 2005, quando estava sendo negociado a quebra de patente do Kaletra, da Abbott, o processo estava sob o comando do Ministério da Saúde, à época conduzido pelo ministro José Saraiva Felipe. De repente, passou para o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan. Felipe levou um susto, considerando que o Planalto decidira que quem passaria a negociar não era mais o seu ministério. Eu participei dessa reunião. Ou seja, deixou de ser uma questão de saúde e passou a ser uma questão de indústria e comércio, que envolve outros interesses. E esse argumento de que o Brasil perderia no cenário mundial investimentos da indústria farmacêutica é bobagem. Foi emitida a licença compulsória para o Efavirenz e nada aconteceu. Por quê? Porque o Brasil é um mercado grande para a indústria multinacional. Acho que tem que haver decisão política no sentido de implementar as licenças compulsórias previstas pelo Trips, pois não se estará violando a legislação internacional. Pelo contrário, estaria cumprindo a legislação e atendendo a necessidade brasileira. E ampliar não só antirretrovirais, mas outros medicamentos, focando, por exemplo, os remédios para câncer, que são muito caros e o Brasil tem que importar a um preço extorsivo. Mas também é preciso investir na capacidade nacional de produção e não só declarar a licença compulsória.
PB – O perfil dos brasileiros portadores de HIV tem mudado ao longo do tempo?
Chequer – Vem mudando, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. No início da epidemia, prevaleciam no Brasil usuários de drogas, hemofílicos e transfundidos de um modo geral, homossexuais e, logo em seguida, trabalhadores sexuais. Sim, o perfil tem mudado ao longo do tempo. Felizmente, o Brasil nos anos 1990 adotou a testagem do sangue com bastante sucesso. E hoje é cada vez mais raro ter uma infecção por transfusão sanguínea. Se acontece, é mais por janela imunológica [intervalo de tempo entre a infecção pelo vírus da Aids e a produção de anticorpos anti-HIV no sangue] do que por falta de testagem. Mudou o perfil na medida em que cada vez mais a população feminina vem se infectando. Entre adolescentes e jovens, o número de casos notificados de mulheres é cada vez maior – inclusive houve um período em que era um pouco maior o número de mulheres do que de homens. Também chegou a haver uma queda de casos entre a população masculina homossexual. Mas vem mudando esse perfil novamente: gays jovens estão sendo cada vez mais atingidos pela epidemia. É uma dinâmica muito complexa. Do ponto de vista de risco de infecção, não há dúvidas de que a população de homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas injetáveis e trabalhadores sexuais são as populações mais atingidas e que correm maior risco de infecção.
PB – Desde que teve início a epidemia de Aids, homossexuais e profissionais do sexo, por exemplo, sofrem com o estigma do chamado “grupo de risco”. O que tem sido feito para combater esse preconceito?
Chequer – A prevalência da Aids entre a população de homens que fazem sexo com homens é em torno de 10,5% e de 4,9% entre trabalhadores sexuais. Já entre usuários de drogas o índice é um pouco maior: 5,9%. Ou seja, bem distante da prevalência na população em geral, que é menor de 0,6%. Efetivamente, essas são as populações que estão sob maior risco de se infectar. Logo, devem ser objeto de maior preocupação, investimento e mobilização, com políticas claras, sem o preconceito e sem o dogma religioso. É preciso utilizar verdadeiramente a fundamentação científica.
PB – Nos últimos anos, tem crescido a influência da bancada de fundamentalistas cristãos sobre o Congresso Nacional e sobre o governo federal. De que maneira isso pode prejudicar o combate à Aids no país?
Chequer – Tem prejudicado e muito. O país poderá sofrer as consequências a médio e a longo prazo. O Brasil continua avançando na área de tratamento, apesar dos problemas que o SUS vem enfrentando, mas houve um retrocesso imenso na área de prevenção. Campanhas foram vetadas. Inclusive, participei do lançamento de uma campanha de televisão no Rio de Janeiro durante o carnaval, cerca de dois anos atrás, e uma semana depois ela estava suspensa por ordem do Palácio do Planalto, porque houve pressão da bancada conservadora, principalmente evangélica. Há também grupos católicos conservadores pressionando, mas a força política maior, com certeza, está com os evangélicos neopentecostais. Já os evangélicos metodistas, luteranos, presbiterianos, episcopais são aliados. Eles fazem parte inclusive da Comissão Nacional de Aids, com posições muito claras com relação a preservativos, sem qualquer preconceito. Infelizmente, para surpresa de todos, o Brasil, que era vanguarda na área de campanhas de prevenção, está retrocedendo cada vez mais. Duvido que mude em 2014 porque é ano de eleição e aí a negociação eleitoral supera qualquer princípio do interesse coletivo. Essa é a realidade.
PB – Segundo o Programa das Nações Unidas de Combate à Aids [Unaids], desde 2001, o número de novas infecções caiu 33% em todo o mundo. Porém, na Europa Oriental, na Ásia Central e na África, esse índice tem crescido. Como impedir o avanço da Aids nesses lugares?
Chequer – Tem crescido, principalmente, no norte da África, no Oriente Médio, no Leste Europeu e na Ásia Central. No restante do mundo, inclusive na África Subsaariana, os índices vêm caindo de forma importante. Isso graças a quê? Primeiro, em razão da utilização do preservativo, e, segundo, à expansão do tratamento. Atualmente, o tratamento não só preserva a saúde do indivíduo, como também evita a transmissão. Se o paciente segue a rigor a prescrição terapêutica reduz em até 96% a chance de transmitir a doença, ficando com a virologia negativada do ponto de vista de detecção laboratorial. Numa situação como essa, somada ao uso do preservativo, a transmissão praticamente não acontece. Ou seja, o tratamento tem sido um dos fundamentos da redução da transmissão em todo o mundo.
PB – Nos lugares em que cresce o número de novas infecções o problema é mais de prevenção ou de ampliação do tratamento?
Chequer – Eu diria que as duas coisas. Onde cresce a Aids no Brasil hoje? No Norte e no Nordeste. Continua aumentando não só a incidência de casos novos, mas também a mortalidade. E o que está falhando? A prevenção, o acesso a preservativos, as políticas públicas implementadas nas escolas – que é outro problema que os conservadores têm criado. Havia, no Ministério da Educação [MEC], em parceria com o Ministério da Saúde, desde os anos 1990, políticas de educação sexual, inclusive o kit [anti-homofobia, apelidado de kit gay] que foi suspenso em maio de 2011, mesmo avalizado pela Unaids e pela Unesco. E essa suspensão se deu por pressão da bancada evangélica na época em que Fernando Haddad [atual prefeito de São Paulo] estava à frente do Ministério da Educação. A fundamentação pseudorreligiosa está prevalecendo em detrimento do princípio científico. Então, se nós quisermos efetivamente um futuro sem Aids, além de expandir o tratamento o mais rápido possível, temos de implementar a educação sexual nas escolas de modo absolutamente claro, objetivo, sem preconceito. Não por intermédio de uma palestra ou outra, mas por meio de um programa efetivo e continuado de educação para que possamos ter a próxima geração preparada para exercer sua sexualidade e respeitar a diversidade.
PB – Em março de 2013, cientistas dos Estados Unidos submeteram um bebê de dois anos a um tratamento que teria reduzido a presença do vírus HIV em seu organismo a níveis não detectáveis – o que foi chamado de “cura funcional”. Estamos perto de uma cura para a Aids?
Chequer – Eu não diria que estamos perto de uma cura, mas já alcançamos uma situação de controle clínico da doença. Houve também casos de transplante de medula. Infelizmente, depois de um dos transplantes, o vírus reapareceu. É uma iniciativa interessante, mas não podemos imaginar o tratamento de Aids com transplante de medula – e medula de um indivíduo que tenha resistência natural. Isso é inviável do ponto de vista operacional de saúde pública. Eu diria que a prevenção ainda é um instrumento fundamental, além da expansão do tratamento para que possamos atingir um controle a médio prazo.