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Contestado, a guerra invisível

Cemitério simbólico no município catarinense de Joaçaba / Foto: Guto Kuerten/DC/Folhapress
Cemitério simbólico no município catarinense de Joaçaba / Foto: Guto Kuerten/DC/Folhapress

Por: CECILIA PRADA

Na espessa tessitura da nacionalidade, a História vai inserindo, através dos séculos, padrões narrativos que se alternam e se entrosam, vestígios, falas e discursos vários, percepções, documentos redescobertos. Alguns temas salientam-se como de interesse potencial que afloram de tempos em tempos, pedindo revisão. Um deles, por pouco compreendido, complexo e, como se sabe hoje, “propositalmente escondido”, é o da Guerra do Contestado (1912-1916) numa extensão territorial de cerca de 48 mil quilômetros quadrados, partilhada hoje entre os estados do Paraná e de Santa Catarina.

Um movimento de origem campesina, reprimido com constância sistemática durante longo tempo por tropas armadas, e que terminou em um verdadeiro genocídio – com 20 mil vítimas fatais de parte dos rebelados, entre combatentes e civis, e cerca de mil baixas nas forças governamentais, entre mortos, feridos e desertores. Um dos episódios mais sangrentos de nossa história, uma guerra que, como atestam vários pesquisadores e os próprios descendentes da população que a sofreu, permanece ainda hoje “inconclusa e insepulta”. Desencadeada 15 anos após a Guerra de Canudos (1896-1897), reproduziu, no sul do país, as mesmas condições e motivações do massacre que no sertão baiano escapara do abafamento proposital pela denúncia de um grande jornalista e escritor, Euclides da Cunha.

O “Canudos do Sul” – ampliado em extensão espacial e temporal – quase desconhecido durante todo o século 20, ganhou nos últimos anos relevo por trabalhos consistentes realizados quer no campo do jornalismo, como o caderno “Meninos do Contestado”, publicado em 3 de fevereiro de 2012 pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, matéria elaborada durante um ano pelos repórteres Leonencio Nossa e Celso Júnior; quer com algumas publicações no campo acadêmico, entre as quais se destaca, no mesmo ano, o livro Contestado em Guerra – 100 Anos do Massacre Insepulto do Brasil, que reuniu em quase 600 páginas trabalhos de 30 mestrandos e doutorandos da Universidade Estadual de Londrina, somados aos de convidados de outras instituições, organizados e apresentados pelo professor Nilson Cesar Fraga.

A caracterização do território fornece a base geográfica do conflito: uma área de 20 mil quilômetros quadrados que abrangia, na época, os municípios paranaenses de Itaiópolis, Rio Negro, Três Barras e União da Vitória, e os catarinenses de Campos Novos, Canoinhas, Curitibanos, Lages e Porto União. E a população local envolvida no conflito era calculada em aproximadamente 40 mil pessoas.

Na história do território, podem ser distinguidas três fases: uma disputa antiga, que vinha desde o início do século 19, travada pelos governos da região e que favoreceu de modo continuado a indefinição do território, a ideia de que, por disputado, ele seria antes terra de todos, ou melhor, “terra de ninguém”; a entrada dos portenhos nessa disputa, em 1881, com a alegação de que parte da população local falava espanhol e que, já em 1750, o Tratado de Madri, firmado entre Portugal e Espanha, reconhecera o domínio territorial da coroa espanhola, herdado pela República Argentina; e finalmente, o período da Guerra do Contestado propriamente dita, com a luta armada repressiva, de 1912 a 1916, contra a população sublevada.

Contrato escandaloso

A pretensão da Argentina fora vencida por uma hábil ação diplomática brasileira, levada a efeito por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, e conhecida como Questão de Palmas ou das Missões. Foi uma das mais brilhantes vitórias conseguidas por Rio Branco, que provou a falsidade de um mapa datado de 1749, usado pelos argentinos, e exibiu outro mapa e documentos autênticos do Tratado de Madri, que reconhecia na realidade o domínio de Portugal sobre a área disputada. Outro argumento que ele lançou mão dizia respeito à população que ocupava a região e segundo o princípio do uti possidetis (posse de fato e de direito), já que era predominantemente de fala portuguesa, obtendo assim do presidente Grover Cleveland, dos Estados Unidos, um arbitramento favorável à sua proposta. Um tratado assinado em 1895 entre Brasil e Argentina pôs fim à questão.

É evidente que nem Rio Branco, nem sua contrapartida argentina, o diplomata Estanislau Zeballos, jamais haviam colocado os pés na região inóspita cuja posse disputavam, e nem seus governos haviam feito recenseamento algum para se certificarem da predominância linguística real de seus habitantes. O recurso ao uti possidetis, à distância de um século – no dizer de Bruno César Deschamps Meirinho, um dos articulistas de Contestado em Guerra – 100 Anos do Massacre Insepulto do Brasil – é visto como “um raciocínio que pode gerar violência, como de fato gerou, pois a incerteza inaugurou uma sequência de disputas políticas, invasões de território e discussões judiciais que produziram ainda mais confusão sobre o real domínio do local”.

Na verdade a população estabelecida naquela terra abandonada, da qual ninguém cuidava, pouco ou nada estava interessada em saber a que país ou estado caberia o domínio oficial da terra. Era uma população cabocla, analfabeta ou semialfabetizada, constituída de migrantes vindos de várias outras regiões do país e de índios – tanto os nativos caingangues e xoclengues, como de outras tribos, perseguidos em outras regiões – e que vivia sem amparo político ou institucional algum, entregue à própria sorte, com raríssimas escolas primárias, nenhum hospital, nenhuma assistência médica. A ela foram se juntando, no decorrer de todo o século 19, elementos perseguidos pela justiça ou pelo poder de alguns “coronéis” latifundiários, e também ex-combatentes e refugiados das revoluções gaúchas.

Aquela era uma grande extensão territorial que, embora povoada, fora negociada com grandes capitais estrangeiros pelo governo brasileiro, desde o tempo do Império, para exploração da erva-mate, mas de maneira mais agressiva e presente pelos primeiros governos republicanos – culminando em 1908 com a concessão feita ao megaempresário norte-americano Percival Farquhar para construir ali a ferrovia Brazil Railway Company.

O que se escondia debaixo do pretexto da “modernização” foi logo visto pelos termos abusivos do contrato escandaloso entre governo e capital estrangeiro: Farquhar ganhara o direito a uma faixa de terras com extensão de 15 a 18 km de largura, de ambos os lados da ferrovia, para extração ilimitada de madeira, operação que viria a ser realizada por outra grande empresa de sua propriedade, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Tudo isso com a consequente expulsão de milhares de famílias ali residentes por forças policiais dos estados, reforçadas pela milícia privada mantida pelo próprio investidor. Segundo vários historiadores, o contrato teria sido apenas uma “negociata sórdida” levada adiante por políticos corrompidos. Um exemplo? Segundo Bruno Meirinho colocou no livro, “desempenhava a função de advogado da recém-fundada companhia ferroviária, simplesmente, o próprio vice-presidente do estado do Paraná, Affonso Alves de Camargo”.

“Santo e milagroso”

Com o sistema de contratação e demissão sumária, findo o serviço a empresa de Farquhar reforçava o contingente de homens desocupados, desalojados e revoltados, que continuavam a errar pela região miserável e, sem poderem regressar às suas terras de origem disputavam condições de subsistência com os habitantes locais. Só na construção do trecho final da ferrovia, entre Herval (SC) e Marcelino Ramos (RS), foram despedidos dessa maneira 8 mil trabalhadores.

Nesse cenário que pareceria ideal para a filmagem de um western, o elemento místico, messiânico se encarnava pelos sertões deste Brasil em profetas barbudos, andarilhos de cajado e bíblia na mão, portadores da mercadoria mais preciosa para as populações carentes: a esperança. Porque depois do sofrimento que partilhavam, viria para os fiéis a redenção, novas vindas de salvadores, uma vida eterna de bem-aventurança, afiançavam alguns desses líderes religiosos, porém, sempre prometendo um futuro celeste, empenharam-se na organização da resistência armada às “forças do diabo”, representadas naquele momento pelos que haviam instaurado uma república ateia que cheirava a enxofre. Foi assim em Canudos, com sua principal figura, Antônio Conselheiro. Foi assim, exatamente, no Contestado, só que desta aqui foram várias as figuras carismáticas que participaram do conflito e ajudaram ativamente na fermentação do sentimento de revolta e de insubordinação às autoridades.

A mais antiga dessas figuras, transformada logo em lenda, foi a de um certo frade “santo”, João Maria – na realidade, houve dois do mesmo nome, que parecem ter entrelaçado suas vidas para se tornarem apenas um. O mais antigo seria um italiano, João Maria de Agostini, nascido em 1801 e vindo para o Brasil não se sabe exatamente quando. Sabe-se, porém, que esteve no Pará, depois no Rio de Janeiro e em São Paulo, por volta de 1844, chegando ao Sul na década de 1850. Era piedoso, vivia evangelicamente e fazia milagres, decididamente não tinha perfil de revoltoso e desapareceu sem deixar vestígios por volta de 1870. Sobre essa figura, porém, sobrepôs-se bem mais tarde, surgido na Revolta Federalista do Rio Grande do Sul (1893), outro estrangeiro, possivelmente sírio, Atanás Marcaf, que assumiu logo o nome de seu antecessor e foi o João Maria de Jesus – teve grande influência pastoral na região do Contestado, mas também desapareceu misteriosamente por volta de 1908.

O terceiro “monge santo” surgiria por volta de 1911 com o nome de José Maria de Santo Agostinho e forçava a semelhança, e até parentesco, segundo dizem, com o primeiro João Maria, o “santo”. Seu nome verdadeiro era Miguel Lucena de Boaventura – um caboclo barbudo, de dentes manchados de nicotina, que vestia trajes comuns, de brim ordinário e cobria a cabeça com um boné de pele de jaguatirica adornado de penacho e fitas no estilo do usado por “santo”, meio século antes. Não tinha a disposição mística dos anteriores, contam que era um soldado desertor do Exército ou da força policial do Paraná. Ganhara a devoção de um rico proprietário de terras pelo “milagre” de ter curado sua esposa de insidioso mal. Como recusara uma recompensa régia em ouro e terras, sua fama de “santo” começou a se espalhar.

Em minucioso estudo do fator místico no Contestado, os historiadores Nilson Cesar Fraga, Bruno Augusto Florentino, Marcos Silva Moura e Anderson Gibathe seguem passo a passo a trajetória dessas figuras crísticas pela região e registram seu relacionamento com a população, a incorporação de suas narrativas ao patrimônio cultural até hoje perpetuado nos museus, nos muitos monumentos religiosos erigidos, nas lendas de seus “milagres” e feitos (artigo incluído no livro Contestado em Guerra).

Monarquia celeste

O monge José Maria tinha um projeto político-religioso de tomada do poder. A partir de 1912, ele conseguiu organizar um verdadeiro exército com milhares de fiéis e lançá-los à luta contra o “Mal”, no caso representado pelos poderes republicanos que, além de despojar a população de seus parcos bens, seu pequeno lote de terra e sua casa, impunham à força três reivindicações “do diabo”: o casamento civil, a separação entre Igreja e Estado e, principalmente, uma nova política de cobrança de impostos que empregava inclusive a violência.

À semelhança do que acontecera em Canudos, com Antônio Conselheiro, José Maria formou também uma comunidade “independente”, a Quadro Santo, no município de Taquaruçu, nomeando como “Imperador do Brasil” um fazendeiro analfabeto, para o qual criou uma guarda de honra constituída por 24 cavaleiros (“Doze Pares de França”) – reminiscência das histórias de cavalaria. Era um povoado de vida comunitária, tudo era de todos e o comércio convencional foi abolido com o restabelecimento do sistema de trocas. Outros povoados semelhantes começaram a ser criados no território, pelos próprios habitantes, cada qual modelado segundo esse sistema (monarquia celeste). Alarmados, fazendeiros da região informaram o governo federal – era presidente da República o marechal Hermes da Fonseca, que praticava já uma “Política das Salvações”, caracterizada por intervenções militares destinadas a eliminar seus desafetos.

A Guerra do Contestado foi iniciada oficialmente em outubro de 1912, no confronto de Banhado Grande entre as tropas regulares, bem equipadas, e o “exército” improvisado de homens rudes que portavam armas obsoletas, de fuzis a facões e de paus a espadas da época dos Farrapos (1835-1845), sob as ordens de um beato. Foi elevado o número de baixas de ambos os lados, mas a vitória foi dada aos rebeldes – o monge José Maria morreu combatendo, mas os fanáticos não esmoreceram, pois acreditavam na sua ressurreição. Morreu também o comandante João Gualberto, das tropas governamentais.

Dali por diante, o conflito foi ganhando em intensidade, crueldade e extensão, sendo os anos de 1914 e 1915 tidos como seu auge. Diversas investidas das tropas foram feitas, a partir de 8 de fevereiro de 1914, e, numa ação conjunta dos estados de Santa Catarina e Paraná e o governo federal contra o reduto de Taquaruçu, o local foi tomado e incendiado. Os rebeldes, todavia, haviam fugido para Caraguatá, lugar de difícil acesso e onde já viviam 20 mil pessoas. Já tinham também nova liderança religiosa – sucedera a José Maria uma “Joana d’Arc do sertão”, Maria Rosa, de 15 anos de idade, que dizia receber ordens do monge morto e assumiu o comando de cerca de 6 mil homens. Combatia montada em um cavalo branco com arreios forrados de veludo, vestida de branco, com flores nos cabelos e no fuzil. Foi morta em 1915, em batalha às margens do rio Caçador, em Santa Catarina.

Usando estratégias de guerrilha e cada vez mais numerosos, os fanáticos deflagraram uma espécie de “guerra santa”, com saques e invasões de fazendas e propriedades de coronéis, e de cidades catarinenses como Curitibanos e Calmon, onde o principal alvo eram os cartórios que guardavam os registros das terras que antes eram deles. As instalações da Southern Brazil Lumber e da Brazil Railway também foram atacadas, inclusive com queima de estações, de vagões, de locomotivas e de serrarias. Transformados em brutamontes, os antigos crentes, simples e ordeiros, aterrorizavam a própria população civil, chegando mesmo a arrasar vilas e povoações. Baseados na localidade de Santa Maria, em território gaúcho, estenderam seu domínio territorial a uma área de cerca de 250 quilômetros quadrados e ameaçaram organizar uma marcha até o Rio de Janeiro, para depor o presidente da República.

“Borramento histórico”

O governo federal também endureceu, nomeando o general Fernando Setembrino de Carvalho como comandante das operações. Chegando em Curitiba, em setembro de 1914, com uma força de 7 mil homens, ele conseguiu reverter a situação e “pacificar” a região. Trocou a estratégia anterior, dos encontros diretos, por cercos prolongados aos núcleos resistentes, que dominava inclusive pela fome – os caboclos então começaram a render-se, com predominância dos velhos, mulheres e crianças dos povoados.

O último líder dos revoltosos foi Deodato Manuel Ramos, conhecido como Adeodato, um rude guerreiro que resistiu até agosto de 1916, chefiando ainda um contingente de 50 mil homens. Extremamente frio e autoritário, não aceitava a rendição e aplicava a pena de morte aos que queriam se entregar. Registram-se números altos de mortos e feridos em ambos os lados nos vários embates. Em 1915, outro contingente de tropas, comandado pelo tenente-coronel Estillac, faz um grande assalto a Santa Maria, matando mais de 600 revoltosos. E declara: “Não posso garantir que todos os bandidos que infestam o Contestado tenham desaparecido, mas a missão confiada ao exército está cumprida”. Em dezembro do mesmo ano, outra missão similar é conduzida pelas tropas de Setembrino. A partir dali, o pequeno contingente chefiado por Adeodato passou a vagar pela região, escondendo-se em vários lugares, para escapar à perseguição. Somente em agosto de 1916, com sua rendição e prisão, o conflito foi oficialmente dado por encerrado. Ele foi condenado a 30 anos de prisão, mas sete anos mais tarde, numa tentativa de fuga da penitenciária, foi morto pelo próprio diretor.

Esse não foi o ponto final na história da grande área do Contestado. Nos anos seguintes, porém, num período que se estendeu até março de 1921, numerosas pequenas sublevações de caráter popular, sempre relativas à disputa de terras, foram ainda registradas em vários municípios da região, e logo reprimidas. Até hoje – cem anos mais tarde – o lugar ainda é a parte mais pobre e subdesenvolvida dos dois estados, ocupada por seres humanos que lutam arduamente pela subsistência, e parece sofrer uma política francamente discriminatória, por parte das instituições oficiais. No próprio caderno do “Estadão” (“Meninos do Contestado”) os repórteres chamavam a atenção para o fato da região, que tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado de Santa Catarina, receber somente 10% dos valores concedidos às demais prefeituras.

O cineasta catarinense Sylvio Back, que realizou dois filmes sobre o conflito, A Guerra dos Pelados, em 1971, e O Contestado – Restos Mortais, em 2012, denuncia também o abandono da região e a tentativa sistemática de “borramento histórico” daquele conflito, que continua ainda “como uma espécie de filho enjeitado da historiografia brasileira”. Ele pôde verificar in loco, durante suas últimas filmagens, que o Contestado “está se tornando cada vez mais invisível, e que essa invisibilidade não é apenas nacional, já é regional, e cobre, feito uma enferrujada mortalha, praticamente todo o centro-oeste de Santa Catarina”.