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Mar sonoro
Universo digital permite mergulho na produção do passado e do presente e amplia a maneira como nos relacionamos com a música
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Há cerca de 30 anos, na era pré-internet, geralmente a maneira mais rápida de conseguir um disco estrangeiro recém-lançado era pedir que um conhecido o trouxesse do exterior. Mesmo quando se tratava da produção nacional, muitas vezes a solução para compartilhar novidades eram as cópias de fitas cassete que circulavam entre amigos. Após a chegada das plataformas de conteúdo digital, isso mudou. É como se nas últimas décadas uma imensa biblioteca com álbuns raros, discografias completas e lançamentos de todo o mundo tivesse se tornado disponível.
“A primeira década dos anos 2000 trouxe a abertura para uma experimentação do contato quase irrestrito com o imenso acervo universal de música gravada”, afirma a pesquisadora do Centro de Estudos em Música e Mídia Marcia Tosta Dias. “Antes do digital, havia uma distância muito grande entre o músico, os aparatos e possibilidades de gravação de sua música, assim como não havia quase nenhuma interação entre o ouvinte e a agência que decidia o que ele iria ouvir.” Apesar disso, ela pondera, é difícil analisar se esse acesso tem de fato promovido uma ampliação dos horizontes e referências musicais dos ouvintes ou se acaba por reiterar padrões: “As playlists, que em recortes mais específicos são o produto contemporâneo equivalente à programação das rádios, se por um lado podem despertar curiosidade, por outro, podem incrementar a escuta automática, que apenas reitera o já amplamente conhecido”.
No YouTube – onde mais de 82% dos acessos correspondem à escuta musical –, a maior parte dos usuários ouve músicas que já conhece, e não novidades, segundo pesquisa divulgada pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em inglês) sobre os hábitos de consumo de música digital nos 13 principais mercados do mundo, incluindo o Brasil (décimo colocado no ranking). O que parece é que, a partir do momento em que experimentar novas músicas, estilos e artistas tornou-se muito mais barato, aumentou o desafio de atrair a atenção dos ouvintes. “Hoje, a grande questão para os artistas, as gravadoras e as plataformas digitais é como fazer as pessoas se interessarem pela música, já que a quantidade de artistas no mundo se multiplicou de forma exponencial”, observa o jornalista Alexandre Matias, que acompanha a questão em coberturas e cursos que ministra sobre o tema
TRANSFORMAÇÕES
Se entre a década de 1930 e o princípio dos anos 2000 a indústria da música girou em torno de um modelo de negócios baseado na venda de discos, fitas e CDs, com a expansão da internet a venda deixou de ser o motor que move o mercado. Hoje, segundo a pesquisa do IFPI, nos principais mercados consumidores de música no mundo, 71% dos usuários de internet entre 16 e 64 anos acessam música digitalmente, e um terço deles paga por serviços de streaming – plataformas em que se paga uma mensalidade para acesso ao catálogo musical.
Nesses serviços de streaming, o que importa é o acesso à música, e não a posse – mudança de relação que tem sido emblemática no consumo cultural contemporâneo. “A relação de uso do produto cultural mudou radicalmente. A nova geração não pensa mais em comprar e possuir um disco, um filme, um DVD. Eu mesma, quando era adolescente, tinha uma parede inteira de discos, e hoje sobraram só os que não tenho coragem de jogar fora, porque todo o resto está disponível no streaming no meu celular”, comenta a diretora da Semana Internacional de Música de São Paulo, Fabiana Batistela. “Com isso, o dinheiro que vinha da venda do produto físico diminui drasticamente e o valor que era investido na construção de novas carreiras, marketing e divulgação de novos artistas reduz também. Isso cria uma nova prática no mercado, que é o artista ter que investir na própria carreira, e o dinheiro passa a vir dos shows”, analisa.
A presença cada vez maior da música no cotidiano implica também outras maneiras de encarar o próprio consumo musical. “A música sempre embalou momentos marcantes na nossa vida. O que a acessibilidade está causando é um ritmo mais constante nessa experiência”, observa Henrique Fares, diretor de relações com a indústria musical em um dos serviços de streaming disponíveis no Brasil. “Isso representa, sobretudo para a indústria musical, uma coisa muito além do comércio da canção, mas a leitura dos perfis de consumo, classe, estilo de vida, através do consumo musical.” Henrique Fares lembra ainda que a música é a linguagem mais global que existe no mundo, mais ainda que o alfabeto. “A força dela como conector de grupos de pessoas, experiências e marcas, nesta era pós-internet, é uma força em sua gênese”, completa.
Outro reflexo da facilidade de acesso à música na atualidade é a diluição das fronteiras entre os gêneros musicais. “Antigamente você definia algo como blues, jazz, samba. Hoje, isso é cada vez mais difícil. O mundo digital tem uma importância muito grande nisso, porque as pessoas começaram a ouvir músicas diferentes sem necessariamente ter que comprar um disco”, esclarece Alexandre Matias. “Antes da internet, você ficava à mercê da rádio ou era preciso gastar dinheiro com isso. Hoje, é possível chegar até artistas e músicas que talvez nunca pararia para ouvir, desde que se esteja aberto para isso.”
MANUAL DE BORDO
Com tantas músicas disponíveis, o que ouvir? Conheça algumas ferramentas e dicas para navegar na biblioteca de sons do mundo digital
Foto: Pixabay
APLICATIVOS
Quem nunca ouviu uma canção em um filme, dentro de um táxi ou em um restaurante e ficou se perguntando que música era aquela? Aplicativos como Shazam, MusicID, Soundhound e TrackID possibilitam que você identifique a canção.
RÁDIOS DO MUNDO
Antiga forma de conhecer músicas, a rádio hoje pode ser ouvida também na internet, o que possibilita algo novo: acessar rádios de quase qualquer lugar do planeta. Uma das ferramentas para explorar gratuitamente diversas rádios mundo afora é o Radio Garden (http://radio.garden), um mapa online interativo que sintoniza ao vivo emissoras em centenas de países.
ARTISTAS RELACIONADOS
Seja em serviços de streaming ou players diversos, ficar de olho nos artistas relacionados é uma forma de conhecer músicas que se pareçam com as que você costuma ouvir. Para evitar cair em uma espécie de “bolha”, porém, o ideal é abusar da curiosidade para procurar ouvir gêneros e sons diferentes dos usuais.
BLOGS ESPECIALIZADOS
Para quem busca informação sobre lançamentos, discografias completas e raridades disponíveis na internet, os blogs funcionam como espaços que realizam tanto crítica quanto curadoria.
COMO ESCUTAMOS MÚSICA HOJE
71% dos usuários de internet entre 16 e 64 anos acessam música legalmente, e um terço deles utiliza serviços de streaming.
82% dos acessos do YouTube correspondem a ouvintes de música; desses, 81% escutam músicas que já conhecem.
Dois a cada três brasileiros usuários de internet utilizam o smartphone para ouvir música.
No Brasil, a distribuição de música em formatos digitais respondeu por mais de 70% do total das receitas de 2016, considerando os mercados físico e digital combinados.
Dentro dos formatos digitais, o streaming foi a modalidade que mais influenciou no desempenho do mercado brasileiro, crescendo 121% no primeiro semestre de 2016, em comparação ao verificado no mesmo período do ano anterior.
MUITO ALÉM DAS ONDAS
CATÁLOGO E LANÇAMENTOS DO SELO SESC ESTARÃO DISPONÍVEIS NO MEIO DIGITAL
A partir de maio, o Selo Sesc estará presente nas plataformas de conteúdo digital, como serviços de streaming e lojas de download, com previsão de que até dezembro deste ano todos os discos estejam incluídos nesses serviços. Além disso, a partir de agora, os lançamentos passam também a entrar nessas plataformas.
O Selo Sesc surgiu em 2004 e de lá para cá já lançou CDs e DVDs de artistas como Guinga, Itamar Assumpção, Banda Mantiqueira, Virgínia Rosa, Raul de Souza, João Donato, Letieres Leite, Arthur Verocai, entre outros. Em seu catálogo, o Selo Sesc traz CDs que vão de registros folclóricos a realizações atuais da música de concerto, passando pelas muitas vertentes da música brasileira em projetos especiais.
“O Selo Sesc brotou em meio à profusão de atividades culturais realizadas pelo Sesc, perseguindo o mesmo objetivo: democratizar o acesso aos bens culturais. Assim, nosso catálogo nunca se prendeu a gêneros ou estilos, e agora deixamos também de nos prender ao formato de CD”, afirma o coordenador do Selo Sesc, Wagner Palazzi. “Disponibilizando parte do catálogo para a audição digital, fortalecemos nossa missão principal. Contudo, mantemos nossa produção física, entendendo que em nossa época vários modos de escuta convivem simultaneamente.”
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