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Arte nas escolas
Aprender sobre arte significa desenvolver não apenas o pensamento artístico e estético, mas também ético e criativo. Nessa perspectiva, o ensino de arte seria fundamental para a formação dos estudantes. Quais mudanças têm ocorrido nas metodologias para a construção de conhecimento em arte nas escolas brasileiras? Como a cultura digital influencia esse ensino hoje? Discutem o tema a professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais Lucia Gouvêa Pimentel e a professora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás Fernanda Pereira da Cunha.
Ilustração: Marcos Garuti
Ensino e aprendizagem
por Lucia Gouvêa Pimentel
Arte é uma área que possui conhecimentos e sistemas de pensamento próprios. Porém, ainda hoje, há quem considere que arte é dom, recreação ou relaxamento, e que, portanto, não se ensina e nada se pode aprender. Isso é um grande engano, pois várias pesquisas demonstram que, ao estudar arte, são desenvolvidas muitas habilidades essenciais para a vida das pessoas. Com o desenvolvimento da tecnologia, pesquisadores – principalmente neurocientistas e artistas – comprovam que, ao fazer atividades artísticas, todas as áreas do cérebro entram em ação. Ao fazer arte, a pessoa aciona os sistemas de pensamento estético, ético e criativo, pondera sobre o respeito à diversidade individual e cultural e sobre seu perceber o mundo e estar no mundo. Ao construir conhecimentos em arte, ela é autora e agente de sua própria cultura. Ao contextualizar as produções artísticas, incita a realização de várias atividades cerebrais que acionam relações entre o que sabe não só sobre arte, mas sobre todas as áreas de conhecimento.
No envolvimento em atividades artísticas, todo o corpo é acionado e incitado a pensar e produzir algo que seja estético, criativo e sensível, ou seja, humano. Arte exige atenção e atuação do pensamento complexo, em que variadas relações visuais, auditivas e de movimento são feitas de maneira rápida, não sempre na mesma sequência. Os neurocientistas dizem que as áreas visual, auditiva e de movimento do cérebro ficam mais fortes e podem ser usadas em atividades de outras áreas do conhecimento, em tarefas do cotidiano e na solução de problemas que exijam atenção e concentração. Tocar música, por exemplo, combina as áreas de linguagem e de cálculos matemáticos com conteúdos novos e criativos. Isso faz com que sejam criadas rotas mentais diversificadas e rápidas de informação, o que auxilia na busca de soluções mais efetivas e criativas. Também são acionados níveis mais altos de função executiva que envolvem planejamento, estratégia e atenção a detalhes e requerem análise simultânea dos aspectos cognitivos e emocionais. Essa função ajuda, também, no sistema de memorização.
Ir a uma exposição, um concerto, um espetáculo de dança ou de teatro é uma atividade que mobiliza sensações e sentimentos de todos os níveis, proporcionando que lembranças (por vezes adormecidas) voltem a fazer parte da vida. Não se trata de “entender” ou de “interpretar” o que está sendo visto ou ouvido, mas sim de usufruir do que está sendo visto ou ouvido com o corpo todo, sensivelmente, emocionalmente e cognitivamente. Ir a eventos artísticos também é aprender arte.
É preciso fazer distinção entre o que é atividade artística e o que é comunicação de massa. A produção artística tem construção tanto individual quanto social, ou seja, tem por princípio a vontade da pessoa e se expressa na relação com o contexto social em que ela vive. Por exemplo, não era possível fazer arte digital na Idade Média, mas era possível fazer xilogravura (gravura em que a matriz é de madeira e pode ser copiada muitas vezes) antes da invenção da imprensa escrita. Há, portanto, um movimento autoral da pessoa em consonância com o ambiente em que ela vive. Já a comunicação de massa tem autoria externa e influencia muitas pessoas a fazerem o mesmo da mesma forma, sem que haja um pensamento crítico sobre a pertinência ou não desse fazer. Pode-se dizer que ir a eventos de comunicação de massa faz parte do relaxamento, não estando ligado, necessariamente, à aprendizagem em arte.
O ensino-aprendizagem de arte nas escolas, nos últimos anos, tem passado por várias mudanças, algumas por consequência de pesquisas sobre metodologias de ensino-aprendizagem, outras por lutas de arte-educadores que buscam garantir o direito de crianças, jovens e adultos à construção de conhecimento em arte. Esse direito é constantemente ameaçado, principalmente por dois motivos: primeiro porque aprender arte desenvolve o pensamento crítico, o que assusta quem não deseja um grande número de pessoas pensantes; segundo porque há um entendimento equivocado por parte de autoridades e de boa parcela da população de que arte não é importante na formação dos estudantes. É sabido que grande número de autoridades e dessa parcela da população não teve sequer um princípio de formação em arte e, portanto, desconhece sua importância na formação integral do ser humano.
Assim, o ensino-aprendizagem de arte nas escolas tem papel fundamental na formação dos estudantes, tanto para poderem desenvolver seu potencial humano individual no que se refere à criatividade e à criticidade quanto para poderem estar no mundo com mais consciência de seu papel social. Considera-se que as aulas de arte devem ser momentos privilegiados para exercitar o pensamento artístico, sendo preciso que essas aulas sejam diversificadas em relação às atividades, bem como em relação aos conceitos e fundamentações teóricas e técnicas necessárias à construção de conhecimento em arte.
Atualmente, são várias as abordagens de ensino-aprendizagem presentes nas escolas, sendo algumas importadas. A Abordagem Triangular, sistematizada por Ana Mae Barbosa na década de 1980, é considerada a abordagem de ensino-aprendizagem de arte pós-moderna brasileira. Baseada em três ações – fazer, fruir e contextualizar – que devem estar presentes, mas não sempre na mesma sequência, considera que o fazer visa propiciar uma rede de construção de conhecimentos baseados no contato direto com experimentações estéticas; o fruir visa propiciar outras percepções do objeto, ou seja, a fruição pressupõe conhecimento e consequente correlação de elementos contextuais; o contextualizar visa estabelecer relações pela compreensão histórica, social e cultural da arte nas sociedades.
A partir dessas ações, várias são as metodologias que o professor pode criar, de acordo com sua formação e com as turmas de estudantes que estão sob sua tutela. É importante considerar, ainda, a presença de alunos com necessidades especiais, sendo papel preponderante do professor o de produzir materiais didáticos específicos para o perfil dos estudantes. Atualmente, há disponíveis, por exemplo, filmes com audiodescrição e objetos táteis para pessoas com deficiência visual. Essa produção ainda é incipiente, sendo necessário que o professor invista na pesquisa e produção desses materiais, sempre que possível.
Ressalte-se que é predominantemente nas escolas que as pessoas de todas as idades podem aprender arte e vislumbrar possibilidades de atuação profissional nesse campo, uma vez que a formação em arte possibilita atuação em muitos campos profissionais, como, por exemplo, na área gráfica, de games, de entretenimento, de editoração, de relações humanas, de comunicação e de educação.
A partir de um ensino consistente de arte nas escolas será possível vislumbrar um cenário mais humano para a sociedade, hoje tão fragmentada. É um crime tirar o direito à aprendizagem de arte nas escolas. Ao fazer isso, é extraída a possibilidade de melhoria nos índices de aproveitamento escolar, mas pior que isso é extrair do ser humano a essência da humanidade e transformar a sociedade em um campo de liberação de recalques, racismo, preconceitos e subordinação, sem ética e sem estética.
Lucia Gouvêa Pimentel é professora titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG).
Educação crítica
por Fernanda Pereira da Cunha
Refletir sobre como o ensino de arte nas escolas foi tratado na educação brasileira nos últimos anos se torna um desafio instigante ao analisar o contexto da cultura digital e as políticas educacionais que devem balizar ações e-Arte/Educativas e/ou ciberarte/Educativas que privilegiam os códigos ciberculturais da atualidade, com proposições educativas significativas no desenvolvimento da mente digital crítica de nossos alunos e alunas.
A cibervida dos brasileiros e brasileiras está no topo do ranking mundial. De acordo com pesquisa da organização We Are Social, José Borghi, da Mullen Lowe, antiga Borghi Lowe, o Brasil está em primeiro lugar no ranking mundial da população que mais passa tempo na internet e em segundo lugar em acesso às redes sociais. Em média, o brasileiro gasta cinco horas e 12 minutos por dia em computadores e três horas e 55 minutos em dispositivos móveis.
Assim, educar a ciberpopulação brasileira para a criticidade digital é proteger. É preciso desenvolver a consciência crítica desde a mais tenra idade, para que nossos ciberalunos e ciberalunas sejam capazes de navegar com autogovernança sem cair em links que são verdadeiras armadilhas à vida. Há uma estreita diferença entre cibercair e ciberescolher.
O desenvolvimento da mente digital autogovernativa é um ato de intervenção libertária. Paulo Freire nos adverte: somente a educação é capaz de promover o desenvolvimento da consciência crítica quando a educação se estabelece como prática para a liberdade. A educação digital libertária é aquela que privilegia (res)significações de valores e práticas do cibercotidiano em que nossos alunos e alunas estão imersos.
O ensino básico nas escolas brasileiras apresenta alto índice de segregação da tecnocultura e/ou insights pedagógicos tecnofóbicos que, no máximo, avançam para o ensino tecnicista e/ou práticas educativas calcadas no conhecimento por simulação. O ensino tecnicista não privilegia o desenvolvimento da cognição perceptiva digital crítica. A instrumentalização técnica, bem como a pedagogia tecnofóbica, pode reforçar a acriticidade e/ou estimular a tecnomania, além de levar ao e-laissez-faire, ou seja, uma versão eletrônica do laissez-faire.
A segregação da cultura digital juvenil na maioria das escolas vem promovendo restrições no dia a dia estudantil, como proibições de celulares, internet, redes sociais etc. Seria relevante as políticas educacionais que apoiam tais práticas restritivas à cultura digital juvenil, que se caracterizam mais como ações punitivas para esses jovens, refletirem que estar offline é um status, nas sociedades em rede, de quem está temporariamente indisponível de suas relações cibersociais, mas não fora dela.
Vale ressaltar que Manuel Castells conceitua a cultura digital pela integração dos discursos oral, escrito e audiovisual, os quais compõem um sistema integrado de comunicação digital que, pela sua natureza interacionista, cria códigos culturais de características intrínsecas ao meio e viabiliza uma linguagem/expressão peculiar desse universo digital – a metalinguagem. A metalinguagem está intimamente introjetada em nossas sensações e percepções digitais. Assim, como enaltece Castells, se acende um novo estado da mente humana – a mente digital, exigindo políticas educacionais cibereducativas.
A natureza da cultura digital se caracteriza como não linear, balizada nas acepções da modernidade líquida de Zygmunt Bauman, cuja informação fluida em consonância com a teoria da relatividade faz do contexto o elemento estruturador de um sistema concomitantemente mutante, como diz Bohm: “(...) put it, it is the dance not the dancers that are key.” (Apud URRY, 2005, p. 238). Ou seja, a dança é que é fundamental, e não os dançarinos.
Diante disso, como promover e-arte/educação crítica que é não linear, contextual, que perfaz a interconexão entre som, imagem e texto sob a sufocante estrutura educacional brasileira?
Rubem Alves, em uma entrevista a Antônio Abujamra em seu programa Provocações, da TV Cultura, faz crítica a essa estrutura: “Olha a palavra que inventaram nas escolas, eu odeio esta palavra: grade curricular. Eu digo que grade curricular foi uma expressão inventada por carcereiro desempregado. Você pensar que pode pegar os currículos e botar em grade. Tá tudo engradado, mas ninguém protesta. Por isso que as crianças não aprendem. Por que aquelas coisas se ensinam? Por que uma criança tem que saber o que é dígrafo? Não serve pra nada, mas tem que aprender porque está na grade curricular.” (www.youtube.com/watch?v=VASben3f4GM&feature=youtu.be)
Rubem Alves conta, ainda, sobre a Escola da Ponte, em Portugal, revelando que, ao chegar a essa escola para conhecê-la, o diretor colocou uma menininha para mostrar e explicar a escola, quando Rubem Alves expressa: “Eu não pude imaginar nenhum brasileiro, diretor brasileiro, que tivesse a coragem de fazer isso”.
Na escola da Ponte não há aulas, não há professores ministrando aulas, não há notas. Para o aprendizado formam pequenos grupos de seis pessoas em torno de um tema de interesse comum. Os alunos são aqueles que convidam um professor para ser um assessor. Ele dá informações de internet e bibliográficas. Os próprios alunos estabelecem um programa de estudo de duas semanas: realizam suas anotações, consultam a internet, livros e depois se reúnem novamente para avaliar o que aprenderam e o que não aprenderam.
A escola da Ponte era muito perseguida porque não obedecia aos programas oficiais. E não obedecia aos programas porque os programas de fato não têm sentido. A escola começou a ser objeto de campanha para ser fechada quando a universidade de Coimbra foi encarregada de avaliá-la. Assim, os professores de Coimbra passaram uma semana na instituição. Procuraram por ex-alunos da Ponte formados há cinco ou dez anos, descobrindo que esses alunos, que não seguiam os programas, em todas as situações foram os mais brilhantes.
Nas palavras de Rubem Alves: “os nossos programas seguem o modelo da linha de montagem. Todos querem aprender a mesma coisa, no mesmo momento, na mesma velocidade e todos têm que seguir. Na escola da Ponte cada um segue do jeito que pode. [...] As ideias diferentes trazem transformações fantásticas”.
As escolas brasileiras estão estruturadas por delegacia de ensino, grade curricular, disciplinas. Essa estrutura engessada fomenta proibições e castrações, que não impulsionam práticas pedagógicas necessárias à vida. O resultado é a falta de consciência crítica, autogovernativa, em suas escolhas no mundo que os cerca. A liberdade é a voz do desejo. O desejo é o som que o arte-educador tem que ouvir para saber o que ensinar.
As políticas educacionais brasileiras necessitam derrubar as delegacias de ensino, banir as grades curriculares, libertar nossos mestres e jovens das disciplinas impostas por um sistema que necessita aprender a ouvir os desejos com arte, e inclusive por isso não se deve tirar e/ou minimizar o ensino da arte nas escolas.
Fernanda Pereira da Cunha é mestre e doutora em Artes pela Universidade de São Paulo e professora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás.
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