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Incompreensão e reconhecimento
por Herbert Carvalho
Belota – milho – expresso – xiquexique – voto – povo – sapato – chibanca – salina – goleiro – tigela – cozinha – jarra – fogão – bilro – almofada – feira. São exatas 17 palavras. A primeira delas, “belota”, que nem sequer aparecia nos dicionários, significa o mesmo que bolota; “xiquexique” é um arbusto típico da caatinga nordestina e “chibanca”, uma espécie de picareta com que se arrancam tocos de árvore. “Bilro”, por sua vez, é a peça de madeira usada para fazer renda com almofadas e “salina”, o lugar onde se produz sal mediante a evaporação da água do mar. São, todos, vocábulos do universo rural que nos remetem a Angicos, uma pequena cidade do Rio Grande do Norte. Foi ali, no sertão potiguar, que, em janeiro de 1963, uma equipe de psicolinguistas, sociólogos e pedagogos do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, liderados pelo filósofo e educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997), selecionou as palavras-chave, também conhecidas como “geradoras”, que, associadas à projeção de imagens ilustrativas do significado de cada uma delas, deram início a dois processos: juntamente com uma nova forma de alfabetizar adultos – que dispensava as cartilhas nas quais Ivo “viu a uva”, mas não motivava ninguém a aprender –, nascia uma revolucionária concepção de educação. De acordo com ela, o educando, em vez de ser tratado como ignorante diante de um professor sábio, é reconhecido como um ser humano portador de conhecimentos e merecedor de respeito, por meio de um diálogo que leve em conta seus interesses e pressupostos.
Agora, com a sanção da presidente Dilma Rousseff à lei que declara Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira, e quando suas ideias são discutidas, estudadas e aplicadas no mundo todo, é quase consensual o entendimento do ensino como ato coletivo, solidário e de amor, que, em vez de ser imposto, deve representar uma troca entre pessoas autônomas. Estava longe de ser assim, porém, no auge da Guerra Fria – protagonizada por americanos e soviéticos nos anos 1960 –, quando o então governador do Rio Grande do Norte, Aluizio Alves, decidiu empregar no combate ao analfabetismo parte das verbas que recebera da Aliança para o Progresso (programa de ajuda criado pelos Estados Unidos para afastar a América Latina do comunismo).
A experiência pioneira de Angicos foi um sucesso estrondoso. As 17 palavras geradoras, escolhidas dentre cerca de outras 400 anotadas nos diálogos preparatórios como as mais representativas da vida e da cultura locais, eram decompostas foneticamente pelos analfabetos em seus cadernos, como exemplificava o próprio Freire: “ ‘Belota’ resultava em ba-be-bi-bo-bu, la-le-li-lo-lu e ta-te-ti-to-tu. Da combinação entre as famílias fonéticas surgiam outras palavras, como ‘lata’, ‘lobo’, ‘tolo’. Porque se apropria desse mecanismo, o analfabeto se alfabetiza com rapidez”.
A velocidade, de fato, foi assombrosa e, por questões óbvias, logo se transformou em notícia: 300 analfabetos tinham aprendido a ler e a escrever em pouco mais de 45 dias? O efeito só podia ser bombástico num país em que os iletrados eram proibidos de votar, razão pela qual em uma população de 34,5 milhões de habitantes com mais de 18 anos somavam apenas 15,5 milhões os eleitores. Assim, quando o governo federal decidiu encampar a experiência e estendê-la a todo o país, as oligarquias entraram em pânico: entre junho de 1963 e o fatídico mês de março de 1964, milhares de coordenadores estavam sendo formados para o Plano Nacional de Alfabetização, que previa a instalação de 20 mil círculos de cultura (como eram chamados os grupos alfabetizadores), capazes de formar 2 milhões de alunos-eleitores até o fim daquele ano. Em especial no nordeste, com 15 milhões de analfabetos entre 25 milhões de habitantes, a iniciativa mesclava-se com a criação de sindicatos rurais e urbanos e com a luta pela reforma agrária.
A capacidade de conhecimento ampliada pela leitura despertava a consciência secularmente adormecida dos trabalhadores em relação a seus direitos, ao mesmo tempo em que levava à ira latifundiários e reacionários de todas as latitudes. Não é de se estranhar, portanto, que, após desbancar do poder o presidente João Goulart, o golpe civil-militar tenha desmantelado, logo nos primeiros dias da ditadura, a construção de Paulo Freire. Durante os 70 dias em que esteve preso no Recife, o educador foi interrogado pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina, responsável também pela prisão do líder comunista Gregório Bezerra, barbaramente torturado. Embora tivesse garantido a seu inquisidor que não era e que jamais fora marxista, mas, sim, “um cristão católico inconciliável com a redução do homem à condição de coisa” e que pretendera apenas “oferecer alguma solução ao problema do analfabetismo”, o educador não impediu que o militar tirasse conclusões opostas: “É um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”, escreveu o tenente-coronel. “Sua atuação nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista. A experiência de Angicos foi de alta rentabilidade para o movimento comunista: a percentagem maior foi de politização, não de alfabetização. Essa subversão, executada com recursos do governo federal e da Aliança para o Progresso, torna mais grave a traição que fazia à pátria.”
“Compreendi a fome”
Diante desse nível de perseguição e intolerância, não restou a Paulo Freire outro caminho senão o do exílio, para onde seguiu em setembro de 1964, após um período de asilo na embaixada da Bolívia. Durante os 15 anos seguintes, sua pessoa, seu nome e seu trabalho estiveram banidos do país, mas seus feitos no campo da educação ressoaram pelo planeta. No Chile, até 1968, ele aplicou seu método nos programas de alfabetização de adultos vinculados à reforma agrária e escreveu Pedagogia do Oprimido, síntese teórica de seu pensamento. Traduzida para 18 línguas, a obra está presente, ainda hoje, na lista dos dez livros mais consultados da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a maior do mundo. Após uma estadia na Universidade de Harvard, “andarilhou” – como costumava dizer – pela África, Ásia e Oceania, ajudando países recém-independentes, como Guiné-Bissau e Cabo Verde, a articular seus planos educacionais. O que começara na aldeia de Angicos ia se tornando irreversivelmente universal.
Paulo Reglus Neves Freire nasceu no bairro da Casa Amarela, no Recife, em 19 de setembro de 1921, quarto e último filho de Joaquim Themístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire. Aos 13 anos, perdeu o pai, oficial da Polícia Militar. No contexto de pobreza do nordeste urbano da primeira metade do século passado, a mãe “pernambucana, católica, doce, bondosa e justa” – como ele a descreveu – tornou-se responsável pela sólida formação cristã que o caracterizaria. Após superar grandes dificuldades (“experimentei a fome e compreendi a fome dos demais”), Paulo Freire ingressou, aos 22 anos, na tradicional Faculdade de Direito do Recife, onde se graduou advogado, profissão que jamais exerceria. Antes mesmo de ser diplomado, casou-se com a professora primária (e depois diretora de escola) Elza Maia Costa Oliveira, com quem teria cinco filhos e que o despertaria para os problemas educacionais.
Como não se interessou pelo direito, foi dar aulas. Iniciou sua carreira como professor de português no Colégio Oswaldo Cruz, o mesmo em que fizera os estudos secundários; todavia, foi no setor de educação e cultura do recém-criado Serviço Social da Indústria (Sesi) que ele enfrentou, entre 1946 e 1954, o desafio de encarar a educação sob um prisma diverso do que era então corrente. “O Sesi foi para mim um tempo fundante”, dizia, ao recordar-se das medidas educacionais adotadas pela instituição, tais como a abolição dos castigos físicos e a instituição dos Círculos de Pais e Professores, com o propósito de mudar uma situação cujo diagnóstico, feito por ele na década de 1950, continua válido: “As condições materiais e intelectuais das famílias proletárias quase sempre são desfavoráveis ao estudo. Elas exigem a transformação antecipada do menino em homem, lançando-o a trabalhos pesados, cansativos física e mentalmente. O menino precisa de condições e motivação para estudar”. O Sistema S estaria presente também no final da vida de Paulo Freire: seu último livro, Pedagogia da Autonomia, foi lançado no Sesc Pompeia, em São Paulo, em abril de 1997, poucos dias antes de sua morte. Vale lembrar que o Sistema S é integrado, além do já citado Sesi, pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Serviço Social do Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
A eleição de Miguel Arraes prefeito do Recife, em dezembro de 1959, representou o divisor de águas na carreira do educador, que no ano seguinte fundou, com outros intelectuais, artistas e universitários, o Movimento de Cultura Popular (MCP), cujo modelo se propagou rapidamente por todo o país. Sob a influência de ideias socialistas e cristãs, o MPC tinha como objetivo principal “encontrar uma prática educacional brasileira ligada às artes e à cultura do povo”. Em suas atividades, dava-se ênfase à conscientização das massas através de programas de alfabetização de adultos e educação de base. “Acredita-se, geralmente, que sou autor desse estranho vocábulo, ‘conscientização’, por ser esse o conceito central de minhas ideias sobre educação”, explicava Paulo Freire. E acrescentava que essa palavra fora difundida por dom Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e, posteriormente, arcebispo de Olinda e Recife, mas criada pelos integrantes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). “Para mim ela significava que educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.” Principal catalisador da ideologia nacionalista nas décadas de 1950 e 1960, o Iseb teve forte influência na formação de suas ideias, como ele próprio reconhecia: “Antes do Iseb o intelectual brasileiro adotava uma visão europeia do Brasil, vivia num mundo imaginário, o qual não era capaz de transformar”.
Mudar a cara da escola
Durante seu longo degredo, Paulo Freire cogitou voltar, em 1968, quando o único processo existente contra ele fora arquivado pelo Superior Tribunal Militar. A edição do AI-5, porém, adiou o retorno por mais de uma década. Ele não assistiria ao enterro da mãe, em 1977, nem usaria passaporte brasileiro até a Lei da Anistia, em 1979: em janeiro desse ano seu nome ainda constava de uma lista de brasileiros proibidos de obter o documento, ao lado de Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra.
Um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) – único ao qual se vinculou durante toda a vida –, após sua volta ao Brasil, em 1980, Paulo Freire assumiu a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 1989, na gestão de Luiza Erundina, lançando mão de quatro diretrizes para “mudar a cara da escola”: direito de acesso, gestão democrática, qualidade de ensino e alfabetização de jovens e adultos. Embora ele não tenha chegado a ver a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, em 2002, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, considera que esse pleito não teria sido possível “sem a pedagogia de Paulo Freire, com mais peso no movimento social articulado brasileiro do que as teorias de Marx”.
Em uma elegia a Paulo Freire, um integrante do governo de Lula, no primeiro mandato, escreveu: “Suas ideias permitiram a um metalúrgico chegar ao governo. Elas tornaram os pobres sujeitos políticos. Fizeram entender que ninguém é mais culto do que outro por ter frequentado a universidade. O que existe são culturas paralelas, distintas e socialmente complementares, pois os doutores em filosofia ou matemática ignoram como assentar a laje de uma casa, tecer um cesto de vime ou semear o trigo na época certa. Convencidos de que são igualmente capazes, seus ‘alunos’ emergiram da passividade à militância, da dor à esperança, da resignação à utopia. Por este novo Brasil, muito obrigado, professor Paulo Freire”. Quatro décadas antes, o poeta Thiago de Mello já antecipara esse momento em sua “Canção para os Fonemas da Alegria”: “Peço licença para terminar/ soletrando a canção de rebeldia/ que existe nos fonemas da alegria:// canção de amor geral que eu vi crescer/ nos olhos do homem que aprendeu a ler”.
A extensa obra teórica de Paulo Freire compreende 15 livros editados em vida e três póstumos publicados por sua segunda esposa, Ana Maria Araújo Freire, a Nita Freire. Além dos citados, como Pedagogia da Autonomia, que frequentou a lista dos mais vendidos no país, alguns, como Cartas à Guiné-Bissau, Cartas a Cristina e Professora Sim, Tia Não, adotavam a forma epistolar como alternativa mais comunicativa que o tradicional ensaio. Como buscava sempre praticar o que pregava, além desses de autoria individual deixou 16 “livros falados”, fruto de diálogos com outros autores.
O que já se escreveu sobre Paulo Freire no Brasil e no mundo, entretanto, é muito mais difícil de contabilizar. Um levantamento feito por dois professores americanos apontou mais de 5 mil obras marcadas por seu pensamento em áreas como pedagogia, filosofia, teologia, serviço social, medicina, psicologia, comunicação, artes, teatro, sociologia e ciência política.
O sociólogo Venício Artur de Lima, da Universidade de Brasília (UnB), autor de Comunicação e Cultura: As Ideias de Paulo Freire, tese de doutorado transformada em livro, afirma: “Ele tem sido comparado a nomes como John Dewey, Carl Rogers, Ivan Illich e Lev Vigotski, além de ter seu pensamento associado ao aparecimento da Teologia da Libertação na Igreja da América Latina”.
Honoris causa
Na alentada biografia que escreveu sobre o marido (Paulo Freire – Uma História de Vida), Nita Freire diz que ele “via o rosto de Cristo em cada espoliado, que chamava de Seres Menos, e lutava para transformá-los em Seres Mais, o que explica sua influência na Teologia da Libertação”. O principal teórico do movimento, Frei Leonardo Boff, acrescenta: “O processo de libertação implica fundamentalmente numa pedagogia, pois se dá na extrojeção do opressor que carregamos dentro e na constituição da pessoa libertada, capaz de relações geradoras de participação e solidariedade. Por isso Paulo Freire, desde o início, foi e é considerado um dos pais fundadores da Teologia da Libertação”.
Em outra vertente, Venício de Lima considera que o legado de Freire constitui “a base teórica para a positivação da comunicação como direito humano fundamental”. “Ele fala da nossa herança colonial de ‘mutismo’ e da ‘cultura do silêncio’ dos oprimidos, impedidos de ter voz, mergulhados na submissão pelo silêncio. Principal representante contemporâneo da tradição teórica da comunicação como diálogo, teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, da internet e de suas redes sociais, defendendo a necessidade de ‘desocultar’ as verdades escondidas na mídia”.
Apesar de ter recebido inúmeros prêmios internacionais, como o da Educação para a Paz, outorgado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e mais de 40 títulos de doutor honoris causa concedidos por afamadas universidades – como Harvard, Cambridge e Oxford –, Paulo Freire não chega a ser unanimidade nos países mais desenvolvidos, a exemplo dos Estados Unidos, onde também despertou a intolerância de setores conservadores. No início deste ano, o livro Pedagogia do Oprimido foi banido das escolas públicas de Tucson, no mesmo estado do Arizona que, sob administração do Partido Republicano, editou leis de caráter xenófobo contra os imigrantes latinos. A obra fazia parte do Programa de Estudos Mexicano-Americanos, que ajudava os alunos chicanos a se conscientizarem de suas raízes culturais e do fato histórico de que parte daquela região pertencia ao México, antes de ser anexada.
No Brasil, Paulo Freire hoje é nome de mais de três dezenas de praças, avenidas, ruas e conjuntos habitacionais em 12 estados. Batiza também centenas de escolas privadas e públicas, estaduais e municipais, em todas as unidades da federação. Além de reconhecê-lo como Patrono da Educação, o governo federal declarou de interesse público e social seu acervo documental privado. Criou ainda o Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã para “apoiar e promover processos formativos de lideranças e educadores populares voltados para o acesso a políticas públicas, com prioridade para as populações vulneráveis”.
A cultura popular não poderia, igualmente, deixar de homenagear Paulo Freire, o que fez em folhetos de cordel, enredos como o da paulistana Escola de Samba Leandro de Itaquera para o carnaval de 1999 (“Educação, um Salto para a Liberdade”) e na música Béradêro, de Chico César, que contém estes versos: “Os sem amor e os sem-teto,/ os sem paixão, sem alqueire,/ no peito dos sem peito uma seta/ e a cigana analfabeta/ lendo a mão de Paulo Freire”.