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O passado na tela do computador

PAULO HEBMÜLLER

Visto de fora, o prédio por onde transitaram os sonhos, angústias, expectativas, planos e esperanças de cerca de 3,5 milhões de pessoas ao longo de 90 anos parece, agora, repousar em silêncio. Por dentro, parte da antiga Hospedaria de Imigrantes de São Paulo, no bairro do Brás, passa, desde 2010, por uma grande reforma que vai transformá-la no novo Museu da Imigração, com previsão de abertura no segundo semestre de 2013. Além de retratar a história dos estrangeiros e brasileiros de outros estados que ajudaram a catapultar a economia paulista a partir da cafeicultura e, mais tarde, da indústria, a proposta do novo museu é refletir sobre os fenômenos que levam o ser humano a deixar seu lugar de origem e se transferir para outras latitudes.

Os movimentos migratórios, todavia, estão longe de ser capítulos de uma história de outros tempos. Os bairros do entorno da hospedaria (o próprio Brás, além de Mooca e Belenzinho, por exemplo) dão testemunho disso: se, no final do século 19 e início do 20, abrigaram principalmente italianos e outros imigrantes europeus, em décadas posteriores se tornaram redutos de migrantes nordestinos. Hoje, em suas ruas vivem e circulam, também, levas de estrangeiros de outras partes que continuam chegando à cidade, como bolivianos, chineses e africanos.

“Nosso investimento está centralizado na consolidação da vocação mais ampliada do museu, especialmente no tocante à construção das identidades, não apenas na perspectiva histórica, mas também na contemporânea”, diz a historiadora Marília Bonas Conte, presidente do Conselho de Administração da Associação dos Amigos do Museu do Café (AAMC) de Santos, organização social (OS) responsável pela gestão da antiga Hospedaria do Brás. O novo Museu da Imigração incluirá uma série de módulos conceituais, tendo em vista esse caráter abrangente do projeto. “Queremos aliar um coração tradicional ‘museologicamente’ a uma vocação social, o que implica refletir sobre o que é a imigração na contemporaneidade, além de servir como ferramenta de articulação com diferentes comunidades.”

Desde que foram desativados, em 1978, os serviços de recepção, triagem e encaminhamento dos trabalhadores e suas famílias, o prédio da hospedaria abrigou outras iniciativas de cunho social. Uma delas, que mantém relação com as funções históricas da instituição, é o acolhimento de homens sem moradia, migrantes carentes e eventualmente refugiados políticos. O serviço, que ocupa cerca de 70% das dependências da construção, é mantido, desde 1996, pela associação Arsenal da Esperança, ligada à Igreja Católica.

As demais dependências receberam, em 1998, o Memorial do Imigrante, destinado a exposições, pesquisa e conservação. Ali era possível, por exemplo, tirar cópias de documentos e certidões, busca que se intensificou com o crescimento do interesse de brasileiros pela obtenção da cidadania de outros países e por fazer o caminho inverso daquele percorrido por seus antepassados. Nos últimos anos, o Memorial passou para a alçada da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e sofreu diversas mudanças. Os contratos com as organizações que faziam a gestão do espaço não foram renovados e, em 2010, coube a uma outra OS atuar ali, já com a proposta de reformulação do conceito. A parceria, porém, se desfez, e nova chamada pública foi aberta. Desde julho de 2011, a AAMC é responsável pelo projeto, com investimento da Secretaria da Cultura na reforma que chega a R$ 8,5 milhões.

Um dos desafios do novo Museu da Imigração é se contrapor à imagem deixada pela exibição do acervo permanente na época do Memorial, muito criticada por dar ênfase demasiada aos imigrantes estrangeiros e pouca atenção aos brasileiros. Era uma representação desproporcional em relação aos números: dos 3,5 milhões de pessoas que passaram pela hospedaria, aproximadamente 1,9 milhão eram estrangeiros (de 75 nacionalidades e etnias) e 1,6 milhão eram brasileiros, oriundos, principalmente, dos estados nordestinos.

Milhares de objetos

Essa, digamos, “ocultação” dos migrantes nacionais tem a ver com a necessidade da criação de uma identidade imigrante por parte da elite paulista, defende o historiador Odair da Cruz Paiva, professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos principais pesquisadores do tema no país. A chegada dos retirantes estrangeiros deu-se num contexto de restrição da mão de obra escrava – com marcos como a proibição do tráfico negreiro em 1850 e a Lei do Ventre Livre, que a partir de 1871 concedeu a liberdade aos filhos dos cativos nascidos no Brasil.

“A inclusão dos ex-escravos numa sociedade que, do ponto de vista de suas elites, se considerava branca e europeizada, criava o fantasma da miscigenação. Através dela, corríamos o risco de nos tornar um país em que mestiços e negros predominariam sobre os brancos – sociedade que, segundo as teorias eugênicas, seria inferior”, explica Paiva no livro Hospedaria de Imigrantes de São Paulo (Editora Paz e Terra, 2008), escrito em coautoria com a historiadora Soraya Moura. De acordo com os autores, esse quadro ajudou a ocultar a contribuição dos brasileiros de outras regiões e a criar representações negativas dessa população – preconceito que sobrevive em nossos dias.

Odair Paiva participou das discussões sobre a requalificação do espaço e defendeu a adoção de duas propostas conceituais que, de acordo com Marília Bonas, serão contempladas: não esquecer a história da chamada grande imigração, mas também atualizar o discurso museográfico para entender a problemática contemporânea. “Todo museu de história diz muito mais pelo presente que o cria do que pelo passado que quer trazer à memória. Se apenas repisar as representações pretéritas sobre imigração, já nasce desatualizado”, disse o professor a Problemas Brasileiros.

Ele sustenta que, como já temos, por exemplo, “filhos de bolivianos estudando nas escolas de São Paulo, será muito mais interessante para eles visitarem um museu que faz a abordagem da imigração contemporânea”. Afinal, enfatiza, essas crianças e seus pais estão refazendo em nosso tempo os passos e a história que milhões de outras pessoas fizeram em nosso país desde o século 19. O professor acredita que a condição do imigrante atualmente é mais complexa porque não existe política de imigração nem uma estrutura de suporte como nos velhos tempos.

As trajetórias dos egressos deixaram também uma enorme quantidade de registros produzidos pela antiga hospedaria ao longo de nove décadas. Esses documentos são, basicamente, de quatro ordens: as listas de bordo dos navios que traziam os trabalhadores e suas famílias; os livros de registro e matrícula da própria hospedaria; as cartas de chamada (rubrica sob a qual estão arquivados não só documentos oficiais como simples cartas privadas, escritas para dar notícias aos parentes distantes); e os processos administrativos de assuntos como trâmites de passagens e encaminhamento para os locais de trabalho.

Há ainda, é claro, muito mais: fotografias; mapas e plantas das fazendas e núcleos coloniais; coletâneas de jornais editados nas mais diversas línguas para as comunidades de imigrantes; e uma impressionante e diversificadíssima coleção de cerca de 12 mil objetos que vão de moedas a discos e de malas a ferramentas ou utensílios de cozinha. São itens em boa parte doados pelos descendentes de migrantes e imigrantes. “Uma história muito divertida de nosso acervo diz respeito a uma bicicleta Caloi, da década de 1970. Não é uma bicicleta de origem nipônica, já que se trata de uma empresa brasileira, mas a pessoa que fez a doação informou que seu avô, japonês de nascimento, só andava nela”, conta Marília Bonas. “A identidade, muitas vezes, diz respeito a uma questão bastante pessoal, e no museu temos de questionar como elevar isso a um nível de representatividade.”

Cuidados especiais

A coleção de objetos vai permanecer nas dependências da antiga hospedaria, mas quando o prédio foi fechado para a reforma, em 2010, a Secretaria da Cultura entrou em acordo com o Arquivo Público do Estado de São Paulo para a transferência do acervo de textos e de documentos. Todo o material está – e ficará permanentemente – sob a guarda do Arquivo Público, cuja nova sede, inaugurada em junho deste ano, conta com as instalações mais indicadas para preservá-lo. À medida que as equipes começaram a lidar com aquela riqueza de informações, surgiu a ideia de digitalizar parte da documentação e colocá-la na internet. O órgão já tinha uma página temática sobre a memória da imigração em São Paulo em seu site (www.arquivoestado.sp.gov.br), mas a chegada do material da hospedaria ampliou os recursos à disposição.

Ainda no final do ano passado, a parceria do Arquivo Público com a Secretaria da Cultura permitiu que o site do Museu da Imigração criasse um acervo digital na internet com cerca de 200 mil imagens digitalizadas. Desse total, aproximadamente 110 mil são de listas de bordo dos navios, e o restante é composto de fotos, postais, plantas, processos, cartas de chamada, registros de matrícula, exemplares de jornais e outros documentos. “O critério de seleção do que inicialmente foi para o mundo virtual teve em conta dar visibilidade ao conjunto geral e fazer uma espécie de panorâmica do material”, explica Lauro Ávila Pereira, diretor de Preservação e Difusão de Acervo do órgão. O endereço desse acervo na internet é: www.museudaimigracao.org.br/acervodigital, havendo também espaço para interação no Facebook.

“Só vai para o ar aquilo que já foi devidamente diagnosticado, restaurado – havia livros e registros deteriorados e que precisavam de cuidados especiais –, classificado e tratado de acordo com as normas arquivísticas”, explica Ana Cândida Silva Martins de Carvalho, coordenadora desse trabalho de tratamento no Núcleo de Acervo Textual Público do Arquivo. Assim, o material digitalizado disponível oferece as descrições básicas a fim de que a pessoa que está fazendo a consulta saiba com o que está lidando. É um trabalho meticuloso e de um volume impressionante: apenas as listas de bordo dos navios – uma via das quais ficava na Hospedaria de Imigrantes – somam 378 caixas. Cerca de 10 mil novas imagens são digitalizadas todos os meses e com o tempo todo o material estará na internet.

Lauro Pereira explica que o acervo digital tem pelo menos três dimensões importantes. A primeira é ampliar o acesso dos cidadãos aos documentos públicos – para quem tem antepassados que estiveram na hospedaria, por exemplo, ficou mais fácil, de qualquer lugar do mundo, encontrar informações sobre a história da família. A segunda é seguir atendendo ao trabalho de pesquisa acadêmica. E a terceira é trazer, cada vez mais para perto, os professores de ensino fundamental e médio, ministrando oficinas e fornecendo recursos para utilização do material do acervo em sala de aula. O site do órgão conta inclusive com uma seção de exposições virtuais em que são sugeridas atividades pedagógicas.

O professor Odair Paiva considera que, colocada à disposição em formato digital, a documentação vai abrir possibilidades aos pesquisadores e, assim, permitir novos caminhos para o estudo das questões migratórias. “Os processos administrativos da Secretaria da Agricultura – a qual por décadas geriu a Hospedaria de Imigrantes – são um mundo. Eles abordam desde a fundação dos núcleos coloniais até a política de colonização de terras, ou seja, tudo o que se refere às questões agrárias”, diz.

Outra vertente para os pesquisadores é refazer o caminho dos imigrantes e migrantes que eram eventualmente rejeitados na triagem ou deixavam o Brasil por conta própria. Entre 1908 e 1926, por exemplo, foram registradas 829 mil entradas em Santos e 464 mil saídas. Há várias possíveis explicações para esse vaivém: o trabalhador pode ter alcançado boas condições de vida e decidido voltar para seu país de origem – ou pode não ter se adaptado e resolvido procurar melhor sorte em outros lugares. “Há toda uma fronteira ainda a ser explorada nessa documentação”, observa o historiador.