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Uma nova vida longe de casa
por Milu Leite
As razões que levam o homem a se deslocar e as implicações desses movimentos envolvem aspectos muito distintos, e a ciência se esforça por desvendá-los. Do ponto de vista antropológico, os estudos buscam esclarecer a origem das raças e aprofundar as descobertas de ossos e outros vestígios que indicam os primeiros passos do homem sobre a Terra. No que tange à geografia humana, os fluxos migratórios indicam regiões de maior ou menor interesse, seja por motivos econômicos, geográficos ou culturais, e revelam facetas inesperadas do comportamento humano. Na base de todos os deslocamentos, contudo, há fatores em comum: a coragem, a necessidade, a curiosidade e, por que não dizer, o desejo de liberdade. Falar de migração é, portanto, ter em conta essas distinções e similaridades, interpretando fluxos.
A história das nações se confunde com a dos movimentos de migração. Há 50 mil anos, o que levou o ser humano a atravessar oceanos e continentes provavelmente foi a busca da sobrevivência. No Ocidente, o fluxo migratório está na origem do ameríndio e se perpetua desde aquela época, fazendo hoje parte do cotidiano do mais simplório cidadão que opta por mudar de cidade.
De acordo com relatório divulgado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), atualmente há um migrante para cada 33 pessoas no mundo. Os números têm crescido nos últimos anos, em termos internacionais, saltando de 150 milhões de migrantes em 2000 para 214 milhões em 2011. Os países que apresentam maior número de estrangeiros são Qatar (87%), Emirados Árabes Unidos (70%), Jordânia (46%), Cingapura (41%) e Arábia Saudita (28%). As nações que abrigam menos estrangeiros são África do Sul (3,7%), Eslováquia (2,4%), Turquia (1,9%), Japão (1,7%), Nigéria (0,7%), Romênia (0,6%), Índia (0,4%) e Indonésia (0,1%).
Capital e trabalho
O Brasil, embora não seja mencionado no relatório como um caso expressivo, apresentou um aumento estrondoso de imigrantes entre dezembro de 2010 e junho de 2011. Segundo anúncio do Ministério da Justiça, a entrada de imigrantes no país cresceu cerca de 50% (de 960 mil aproximadamente para 1,5 milhão) no período.
As razões que levam as pessoas a trocar de país são várias, mas a busca por trabalho é ainda a maior responsável por essas mudanças. “A circulação de pessoas no espaço internacional, ainda que não seja uma regra, acompanha a lógica da circulação do capital”, afirma Gislene Aparecida dos Santos, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná. Segundo ela, no caso do Brasil, o que chama a atenção é que o número dos que deixam o país equivale ao de imigrantes. Neste último caso, o fluxo destina-se às capitais de estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba, em função da demanda por certo tipo de trabalho qualificado (suprido em grande parte por mão de obra estrangeira), como também das necessidades dos setores produtivos que não requerem alta qualificação técnica e intelectual. É o caso dos segmentos de alimentação (lanchonetes), trabalho doméstico e costura. Registram-se assim dois tipos de imigrantes: os regulares, devidamente documentados, e os não regulares.
Os números do ministério, no entanto, são muito superiores aos do último censo demográfico (2010), que registra aproximadamente 500 mil imigrantes. A diferença tem explicação: os dados dos ministérios do Trabalho ou da Justiça levam em consideração os estrangeiros no país, mas não necessariamente com residência fixa. Assim, podem ser pessoas em curta permanência (de três meses), por um ano ou até mais, mas que não têm o Brasil como seu primeiro domicílio. Além disso, “como é recorrentemente comentado”, esclarece Gislene, “os migrantes irregulares (sem documentação) não informam aos órgãos censitários sua condição no país”.
As cidades mais procuradas estão no sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte). Em seguida, aparece o sul, que desde os anos 1990 tem apresentado um aumento na entrada de estrangeiros, segundo informa a professora. “Nessa região prevalecem os migrantes provindos dos vizinhos Argentina, Paraguai e Uruguai”, diz.
Uma forte característica dos fluxos migratórios atuais é a ligação com um conteúdo histórico, um fio condutor alimentado ao longo dos anos e cada vez mais facilitado pelo uso das redes sociais. Os bolivianos, por exemplo, vêm ao Brasil desde os anos 1960 e concentram-se na cidade de São Paulo (são 200 mil aproximadamente). Se antes eram em sua maioria profissionais liberais, hoje seu contingente maior é formado por pessoas com baixa qualificação ou com capacitação específica para trabalhar em pequenas fábricas domésticas pertencentes em grande parte a coreanos.
Gislene conta que o que distingue o fluxo migratório internacional contemporâneo é a possibilidade de manter vínculos com os lugares de origem. Ou seja, a ruptura espacial, que caracterizou os processos migratórios do começo do século 20, hoje é menos radical. Os migrantes, através dos meios de comunicação e das redes de conterrâneos, mantêm contato com a terra natal e articulam-se entre dois lugares. As remessas de dinheiro, de acordo com ela, também são indicadores da manutenção dos vínculos. “Essa experiência tem levado alguns pesquisadores a denominar o fluxo migratório internacional como transnacional”, revela.
Gislene fala com conhecimento de causa, pois desenvolve um projeto de pesquisa referente à migração estrangeira no estado do Paraná, a partir dos anos 1980. Estado com significativa contribuição da migração europeia, o Paraná apresenta desde os anos 1990 uma alteração quanto à nacionalidade dos estrangeiros que ali chegam: destacam-se atualmente os provindos da Bolívia e do Paraguai. Chamam a atenção os fluxos dirigidos para as cidades fronteiriças entre o Brasil e o Paraguai, especialmente Foz do Iguaçu, onde se concentra o maior número dos paraguaios no estado.
Da Europa
A tendência de crescimento do número de imigrantes no país, contudo, não é tão recente. Nos anos 1990 já era apontada por especialistas que indicavam a presença de representantes de várias nacionalidades, além dos sul-americanos. Em um artigo publicado no início de 2003 no “Jornal da Unicamp”, Rosana Baeninger, professora no Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo), também da Unicamp, já mostrava o incremento de mão de obra estrangeira especializada. Àquela época, o Ministério do Trabalho registrava a entrada, por tempo determinado, de especialistas, gerentes e administradores oriundos dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França. Seis anos depois, em novo artigo, Rosana alertava para um fenômeno interessante: “O deslocamento da mão de obra tornou-se muito mais rápido para acompanhar a mobilidade do capital em esfera global”, implicando a pulverização da produção e consequente barateamento de custos.
Se no início do século 21 o Brasil já era um porto acolhedor para muitos estrangeiros, sua crescente visibilidade em âmbito mundial o coloca agora como grande promessa para muitos povos. O país é falado, ou melhor, é bem falado. O resultado é que, em consequência da crise em algumas nações da Comunidade Europeia, somam-se agora aos imigrantes de outrora levas de espanhóis e portugueses.
A imigração foi um forte componente na formação da nação brasileira, o que facilita o recebimento de estrangeiros no país, embora, do ponto de vista jurídico, a Lei de Imigração esteja ultrapassada. E como a legislação poderia melhorar as condições de vida dessas pessoas e facilitar sua permanência no Brasil? O primeiro obstáculo é a burocracia. Há uma série de exigências e ordenamentos diversos, que se aliam ao despreparo dos agentes da Polícia Federal para lidar com o assunto. “O migrante leva muito tempo para regularizar sua situação. Há acordos migratórios para os países do Mercosul que facilitam o trânsito, mas são pouco divulgados. Para o migrante mais empobrecido a falta de informação pública gera custos econômicos e sociais enormes”, avalia Gislene.
Em 2009, o ex-presidente Lula deu um passo importante para reduzir a papelada, ao assinar uma lei que anistiava estrangeiros residentes que regularizassem sua situação. Com a situação legalizada, o migrante passa a ter os mesmos direitos e deveres dos brasileiros, à exceção daqueles privativos de quem nasceu no país, como o exercício do voto. Também fica garantida a liberdade de circulação no território nacional, acesso a trabalho remunerado, à educação, à saúde pública e à Justiça. Antes de Lula, em 1998, 39 mil estrangeiros em situação irregular já haviam sido anistiados. Essas, porém, foram medidas paliativas e, segundo Gislene, a legislação precisa de alterações profundas.
No exterior
O fluxo migratório, entretanto, tem mão dupla. Não é só o estrangeiro que chega, o brasileiro também atravessa a fronteira. O censo de 2010 contabilizou pela primeira vez o número e a situação dos brasileiros no exterior. O levantamento estima que haja 491,6 mil brasileiros residindo em 193 países, sendo 264,7 mil mulheres (53,8%) e 226,7 mil homens (46,1%). Na maioria, são relativamente jovens, entre 20 e 34 anos de idade (60%), e esses fluxos se dirigiram para os Estados Unidos (23,8%), Portugal (13,4%), Espanha (9,4%), Japão (7,4%), Itália (7%) e Inglaterra (6,2%). Esses seis países receberam, portanto, aproximadamente 70% dos emigrantes brasileiros, que, ainda de acordo com o censo, saíram do país em busca de trabalho. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a principal origem desses fluxos foi o sudeste (49%), sendo 21,6% de São Paulo, 16,8% de Minas Gerais e 7,1% do Rio de Janeiro.
A intensa mobilidade não é privilégio dos fluxos internacionais. Os resultados do último censo revelam que, em 2010, 37,3% da população brasileira morava fora do município onde nasceu, enquanto 14,5% tinham mudado também de estado. Os dados não são muito diferentes dos do ano 2000 e mostram que os movimentos ocorreram em distâncias relativamente pequenas. De acordo com as estatísticas do IBGE, a região centro-oeste tem a maior proporção de não naturais do município em que vivem (51,9%) e do próprio estado (32,9%). No nordeste, a tendência é inversa: a região apresenta os menores percentuais de não naturais do município (29,4%) e não naturais dos estado (7%), o que confirma sua baixa capacidade de atração populacional, segundo análise dos pesquisadores do instituto.
O estado de Rondônia conta com a maior proporção (58,6%) de migrantes nascidos em cidade diferente daquela em que moram, seguido de Mato Grosso (57,4%). O menor percentual está no Amazonas (25,4%), onde as características geográficas dificultam deslocamentos. Rondônia, com cerca de 1,5 milhão de habitantes, é uma região de urbanização irregular e recente, iniciada nas décadas de 1960 com a exploração de cassiterita, entre outros minérios, e que se intensificou com os incentivos fiscais a empreendimentos privados no setor agropecuário e madeireiro. Mato Grosso, cuja população é de cerca de 3 milhões de habitantes, recebeu milhares de pessoas por causa de outro minério, o ouro, o que explica de certa forma o predomínio na população de pessoas adultas, com aumento do número de idosos e o declínio de jovens. Em ambos os casos, foi a busca de riqueza que influenciou a ocupação das regiões, com consequências que ainda hoje determinam seu perfil econômico e social.
Há estudos que indicam, entretanto, que as correntes migratórias no país estão perdendo intensidade. Uma pesquisa divulgada no ano passado pelo Grupo Transversal de Estudos do Território e Mobilidade Espacial da População (Gemob/IBGE), relativa ao período de 2004 a 2009, avaliou que o volume da migração inter-regional envolveu 2 milhões de pessoas. E, no intervalo de 1995 a 2000, as estatísticas mostram que esse número era maior: 3,3 milhões.
A região sudeste, antes um centro de boas promessas aos brasileiros que buscam trabalho e vida cultural intensa, já não tem o mesmo poder de atração: apresentou saldo negativo de migrantes tanto em 2004 quanto em 2009. O nordeste, por sua vez, de acordo com o estudo, continua perdendo população, mas em escala menor que no passado.
Outro aspecto relevante é o incremento do retorno às regiões de origem. Os estados que mais pessoas receberam de volta em 2009 foram Rio Grande do Sul (23,98% dos que migraram), Paraná (23,44%), Minas Gerais (21,62%), Sergipe (21,52%), Pernambuco (23,61%), Paraíba (20,95%) e Rio Grande do Norte (21,14%).
Na região norte, os fluxos de retorno no Amazonas, Roraima e Pará demonstram uma tendência ao declínio, o que não ocorre nos estados do Piauí, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba. Na região sul, Santa Catarina ainda se comportou como uma região de pequena absorção e, na região centro-oeste, a mudança mais significativa ocorreu em Goiás, que passou a receber um grande contingente de migrantes de vários estados. Vale lembrar que, embora esses índices não contabilizem as estatísticas do censo de 2010, possibilitam uma análise dos fluxos de modo a apontar tendências num futuro próximo. De acordo com o último levantamento, as cidades que mais têm crescido são as que possuem menos de 500 mil habitantes, comprovando a influência da migração sobre elas.