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As maravilhas de mestre Herivelto
por Herbert Carvalho
Em 2012 a música popular brasileira registra uma tríplice efeméride em relação a um de seus mais destacados expoentes no século passado: o centenário de nascimento do compositor Herivelto Martins, os 20 anos decorridos desde sua morte e as sete décadas que nos separam de 1942, quando criou duas obras-primas que o imortalizaram, Praça Onze e Ave Maria no Morro, esta última executada até hoje em igrejas católicas de países europeus.
A vida desse autor de uma obra que engloba mais de 700 canções – na maioria ritmos brasileiros, sem excluir valsas, foxes, tangos e boleros – é também a crônica de um tempo em que a música de qualidade chegava ao público pelo rádio, sem o filtro da indústria cultural que hoje monopoliza os meios eletrônicos de comunicação. Durante a chamada época de ouro, entre 1929 e 1945, compositores intuitivos da geração de Pixinguinha e Noel Rosa, sem formação musical ou literária, originários das camadas pobres da população, despertavam comentários como este, de Heitor Villa-Lobos: “Herivelto, como é possível, você não sabendo uma nota musical, tocando mal esse violão, ser autor de uma maravilha como Ave Maria no Morro? Enquanto eu, formado, erudito, não consegui ainda fazer algo assim?”
Nas vozes dos cantores e cantoras que atraíam multidões aos programas de auditório irradiados ao vivo, os versos e melodias que ajudaram a criar a identidade do povo brasileiro contavam com uma poderosa estrutura que pode ser avaliada pelos números da Rádio Nacional, símbolo do período: com cinco orquestras sob o comando de maestros como Radamés Gnattali, centenas de locutores, radioatores e artistas contratados, era ouvida em todo o país e transmitia ainda, por ondas curtas, programas diários em quatro idiomas para o mundo todo.
O retrato do Brasil de Herivelto Martins inclui o desaparecido glamour de cassinos como o da Urca – onde ele se apresentava com seu Trio de Ouro ao lado de atrações internacionais – e as transformações urbanas de um Rio de Janeiro que outrora permitia ouvir “sinfonia de pardais”. Mostra também sua amizade com os presidentes da República Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek; a relação que manteve com o cineasta americano Orson Welles, como encarregado de introduzi-lo no universo do samba carioca, e a insólita disputa musical desencadeada pelo fim de seu casamento com a cantora Dalva de Oliveira, episódio condensado por Maria Adelaide Amaral na minissérie Dalva e Herivelto – Uma Canção de Amor, exibida em 2010 pela Rede Globo.
Feijão à Camões
Na cidade de Engenheiro Paulo de Frontin (RJ) – antiga Rodeio, na porção fluminense da serra do Mar –, o ferroviário Félix Bueno Martins tinha a mania de inventar para os filhos nomes estranhos começados pela letra H. O de Herivelto popularizou-se com sua ascensão artística, o que não aconteceu com os irmãos Hedelacy, Heclenira, Hednar, Hedenir e Holdira, constrangidos a adotar apelidos. Mas o funcionário da extinta Estrada de Ferro Central do Brasil possuía também uma paixão que transmitiu aos filhos, por teatro e pelo carnaval, que na segunda década do século 20 já se transformara em uma festa nacional.
Fundador de sociedades dramáticas e carnavalescas, cuja manutenção chegou a lhe causar a perda da casa da família, Félix ensinou Herivelto a recitar versos e tocar instrumentos, o que permitiu ao filho arriscar o primeiro samba aos 9 anos. “Era uma compilação de tudo o que eu ouvia. Não tive coragem de mostrar pra ninguém”, revelou o compositor em depoimento ao Museu da Imagem e do Som em 1968, no qual resumiu também a herança paterna: “Hoje estranho muito que um artista chegue ao palco e fale de forma desairosa. Aprendi com meu pai que o público é o rei e nós somos seus empregados”.
Com a arte correndo no sangue, aos 12 anos o menino louro de olhos azuis já mambembava em circos pelo interior fluminense desempenhando diferentes papéis, inclusive o de palhaço, que lhe garantiriam a sobrevivência nos tempos de vacas magras que enfrentou até firmar-se profissionalmente. Aos 18 anos chega ao Rio de Janeiro, sem estudo e sem dinheiro, mas com a determinação de ser artista. Instala-se na Rua Riachuelo, no centro da cidade, onde o irmão Hedelacy morava com mais seis rapazes. “Éramos oito no quartinho de 4 metros quadrados. Havia revezamento: quem dormia uma noite na cama, na seguinte dormia no chão. Só melhorou quando quatro foram lutar na Revolução de 32 e não voltaram...”, recordaria anos depois.
O Brasil da década de 1930 ainda era predominantemente rural, mas se urbanizava rapidamente, desenvolvendo um mercado cultural de massas a partir da chegada ao país da gravação eletromagnética dos discos e do cinema falado. Quando o governo provisório de Getúlio Vargas autoriza a veiculação de propaganda pelo rádio, o número de emissoras, que não passavam de 20, explode em centenas, consagrando por suas ondas curtas e médias cantores como Vicente Celestino, Francisco Alves, Orlando Silva e Carmen Miranda.
Na tentativa de abrir caminho para chegar a esse Olimpo, Herivelto Martins fazia testes e cantava de graça em rádios. Após passar fome e até desmaiar na rua, muda de tática: começa a trabalhar como barbeiro, o que lhe permitia comer no restaurante de um português o “feijão à Camões”, um prato fundo de feijão com uma colher de arroz, evocando o único olho do poeta lusitano. O convite para gerenciar uma barbearia no morro de São Carlos, em pleno bairro do Estácio – onde em 1929 Ismael Silva, Bide, Marçal e Brancura haviam criado a pioneira escola de samba Deixa Falar –, o aproxima dos sambistas negros que lhe ensinariam tudo sobre batucada.
Trio de Ouro
O ingresso no mundo artístico ocorre pelas mãos de José Luís da Costa, nome real do compositor Príncipe Pretinho, que o apresenta a J. B. de Carvalho, líder do Conjunto Tupi, especializado em cantar e gravar pontos de macumba. Herivelto impressiona tocando caixeta e por suas ideias para enriquecer o padrão musical do grupo, ao qual se incorpora cantando em coro e duetos. Ali forma a primeira dupla, Preto e Branco, com Francisco Sena, que morre prematuramente e será substituído por Nilo Chagas até 1936, quando o duo se transforma em trio com a participação de Dalva de Oliveira.
A primeira gravação de uma música composta por Herivelto, a marchinha Da Cor do Meu Violão, também é feita pelo Conjunto Tupi, mediante ligeira chantagem, comum na época. “J. B. de Carvalho ouviu e me propôs, na maior cara de pau: ‘Se me der parceria a gente grava para o carnaval’. E o nome dele ainda saiu na frente”, contou o verdadeiro e único autor.
Ao contrário do que ocorreu a partir da Bossa Nova, não era comum nos primórdios do disco no Brasil compositores gravarem suas próprias músicas, e cantores famosos, como Francisco Alves, figuram como parceiros em obras que apenas gravavam e jamais compuseram. Como o direito autoral inexistia na época, para viver de música Herivelto tinha também que interpretar suas canções, o que escolheu fazer inicialmente em dueto, uma novidade na época. “Chico Alves e Mário Reis cantavam juntos como dupla de perguntas e respostas, com a voz pequenina do Mário repetindo o vozeirão do Chico. Não faziam dueto. Na dupla Preto e Branco o Sena fazia a melodia e eu as vozes chamadas de terças, inaugurando um estilo que teve seguidores”, explicava Herivelto. Cantando em circos e nos intervalos entre sessões de cinema, a dupla enfeitava seus números com rasteiras e batidas no chapéu de palha, eletrizando o público.
Em 1935 a vida e a carreira de Herivelto sofrem dois impactos: a morte de Sena, vítima de bócio, e a separação de sua primeira mulher, com quem teve dois filhos. Em vez de recuar, porém, ele avança: após voltar a trabalhar em circo como palhaço durante um ano, refaz a dupla Preto e Branco com Nilo Chagas, irmão de um jogador de futebol do clube América, conhecido seu de Barra do Piraí. Quando atuavam no Teatro Pátria, no bairro de São Cristóvão (zona norte do Rio), encontram uma cantora iniciante de poderosa extensão vocal: Vicentina de Paula Oliveira, paulista de Rio Claro, que adotara o nome artístico de Dalva de Oliveira.
Herivelto – que graças a seus breques inovadores ganhara o cargo de diretor do coro da gravadora RCA Victor e tivera sob seu comando cantores como Cyro Monteiro, Aracy de Almeida e Orlando Silva – logo percebe a vantagem de somar às duas vozes masculinas um contracanto feminino que alcançava trinados próprios de cantoras líricas. Passam a se apresentar como Dalva de Oliveira e Dupla Preto e Branco, até que o comunicador César Ladeira, ao recebê-los na Rádio Mayrink Veiga, acrescenta: “Um Trio de Ouro”.
O primeiro disco do trio, ainda antes do batismo, tinha de um lado Itaquari e do outro Ceci e Peri, composições de Príncipe Pretinho, esta última uma versão popular dos personagens centrais da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. Já morando juntos, Herivelto e Dalva escolhem batizar com o nome indígena masculino aquele que se tornaria o cantor Pery Ribeiro (recentemente falecido), o primeiro a gravar a mundialmente famosa Garota de Ipanema. O segundo filho de ambos, confirmando a ligação de Herivelto com o espiritismo e a umbanda, seria o diretor de TV Ubiratan Martins.
Palco com elevadores
Os primeiros endereços do casal foram pardieiros nas imediações da Praça Tiradentes, um dos locais badalados do então Distrito Federal, que concentrava os teatros de revista e suas vedetes, como Virgínia Lane. Num dos quartinhos em que viveram, um pedaço de lona de circo dividia o espaço para que a outra metade fosse ocupada por Nilo Chagas, que morava longe. Era a solução para que os três estivessem a postos quando surgissem oportunidades de trabalho. E estas foram se sucedendo: gravações, contratos com emissoras de rádio, até a consagração na maior casa de espetáculos do país na época: o Cassino da Urca.
Durante dez anos, entre 1936 e 1946, quando foram proibidos os cassinos no Brasil, a elite brasileira e os visitantes estrangeiros ansiosos por se distanciar da Segunda Guerra Mundial desfilaram pelos salões à beira-mar no bairro hoje tombado da zona sul carioca. Ali, carteado e roleta eram apenas parte da diversão. O melhor acontecia em um palco servido por três elevadores, onde se revezavam duas orquestras e atrações nacionais e internacionais, como os americanos Bing Crosby e Josephine Baker, a portuguesa Amália Rodrigues ou a peruana Yma Sumac, incluindo ainda Carmen Miranda, que se tornara estrela em Hollywood.
Convidado para uma temporada de três meses, o Trio de Ouro se apresenta no Cassino da Urca durante cinco anos, até seu fechamento. Também diretor da parte nacional, Herivelto monta o espetáculo Vem, a Bahia Te Espera, com a participação de outro artista que seria seu fiel companheiro daí em diante: Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, admitido apenas por seu extraordinário talento, a contragosto do proprietário racista, Joaquim Rolla.
Foi de Grande Otelo a ideia de fazer a primeira música contra a destruição dos espaços da cultura popular pela expansão urbana. A vítima em questão, chamada na época colonial de Rossio Pequeno (em oposição ao Rossio Grande, depois Praça Tiradentes), tinha como nome completo Praça Onze de Junho, data da Batalha do Riachuelo. Mas, para o povo, aquela que desapareceria para dar lugar à atual Avenida Getúlio Vargas e que desde 1932 abrigava os desfiles de carnaval tinha um nome simplificado, imortalizado pelos versos de Grande Otelo e Herivelto Martins, que protestavam: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba, não vai...”
Na gravação pelo Trio de Ouro para o carnaval de 1942, Praça Onze traz outra descoberta de Herivelto: o apito, até então usado nas escolas de samba apenas para orientar o desfile, adquire função rítmica, sibilando no compasso do surdo e do tamborim. O resultado foi um sucesso estrondoso, que desbancou Ai, que Saudade da Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, na preferência dos foliões. Atraiu também a atenção de um jovem cineasta que, após vencer o Oscar de melhor roteiro com Cidadão Kane, fora mandado ao Brasil para filmar cenas com jangadeiros cearenses e sambistas cariocas para o filme It’s All True (É Tudo Verdade, jamais concluído). No Rio, Orson Welles adotou Herivelto e Grande Otelo como consultores em suas incursões ao mundo do samba.
Dirigente sindical
Desde o início da década de 1940 Dalva e Herivelto tinham estabilidade financeira, mas não emocional. Pery Ribeiro relata no livro Minhas Duas Estrelas: Uma Vida com Meus Pais brigas homéricas e violentas, causadas por ciúmes mútuos, que culminaram no mais rumoroso desquite da época. A disputa entre ambos ultrapassou muito os tribunais: além de insultos públicos pelos jornais, começaram a se atacar por meio de canções gravadas entre 1950 e 1952. Em Caminho Certo, parceria com o jornalista David Nasser, Dalva era acusada de transformar “o lar na minha ausência, em qualquer coisa abaixo da decência”. Ela revidou com a classe de Nelson Cavaquinho em Palhaço e de Ataulfo Alves em Errei, Sim.
Respaldada por outros compositores e pela maioria do público, que a vê como vítima do machismo dominante, a partir dessa polêmica a carreira solo de Dalva, eleita Rainha do Rádio em 1951, dispara. A do ex-companheiro, ao contrário, declina. Desfalcado de sua estrela principal, o Trio de Ouro passa por diversas formações, sem jamais recuperar o brilho original.
Concentrado na composição como atividade principal, Herivelto lança-se à luta pela regulamentação do direito autoral. Torna-se presidente da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música. Preside ainda, por dois mandatos consecutivos, o Sindicato dos Compositores, conquistando o direito de aposentadoria para a categoria.
Para assumir na segunda gestão, entre 1967 e 1971, precisa peregrinar pelos órgãos de segurança para obter autorização, em razão de seu nome ter figurado em um dos muitos inquéritos abertos após o golpe de 1964 para apurar “subversão” na Rádio Nacional. Era natural que recaíssem suspeitas sobre ele: tinha sido frequentador do Palácio do Catete e amigo dos presidentes adversários dos militares, como Getúlio e Juscelino, para os quais compôs músicas com teor político. No governo de João Goulart chegara a ser nomeado fiscal do Ministério do Trabalho, mas a mais curiosa recompensa recebida por serviços prestados a um candidato viera de Adhemar de Barros, que havia retribuído com um avião Junker de três motores (logo vendido) a marcha A Caixinha do Adhemar. Gravada por Nelson Gonçalves com o pseudônimo de Quincas Gonçalves, a letra dizia: “Quem não conhece/ Quem não ouviu falar/ Na famosa caixinha do Adhemar/ Que deu livro/ Deu remédio/ Deu estrada/ Caixinha abençoada”.
Ao completar 80 anos, Herivelto foi saudado com uma alvorada de tamborins na frente de sua casa, na Urca, pela bateria mirim da Mangueira, escola a que dedicou vários de seus melhores sambas. Em 1986 já havia sido homenageado pela Unidos da Ponte com o enredo Tá na Hora do Samba, Que Fala mais Alto, Que Fala Primeiro, referência ao grito de guerra de Herivelto à frente de sua escola de samba de salão, outra inovação muito copiada depois, que consistia em levar para os palcos passistas e ritmistas das escolas, no que hoje se chamaria de pocket show.
Amargurado no final da vida pela morte de sua terceira mulher – a aeromoça Lurdes Torelly, com quem teve mais três filhos – e por causa da invasão do rock nos meios eletrônicos de comunicação, dizia: “Quando a má qualidade quase matar nossa cultura e o lixo estrangeiro estiver dominando, há de sempre surgir um samba-canção para salvar nossa dignidade”. Gravados antes por Francisco Alves, Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves, os sambas-canção de Herivelto ressurgiram nas primorosas gravações de Isaura e Segredo, respectivamente por João Gilberto e Ney Matogrosso. E os jovens podem ouvir, na voz de Baby do Brasil, os versos e a melodia que um dia autoridades eclesiásticas consideraram uma heresia e tentaram proibir: “Quando o morro escurece/ eleva a Deus uma prece/ Ave Maria!”