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Ajuda por telefone
por Paulo Hebmüller
Não havia muitos brasileiros na região atingida pelo terremoto seguido de tsunami que abalou o nordeste do Japão há um ano, em março de 2011. Aqueles que moravam na área foram resgatados pela equipe da embaixada no país, sediada em Tóquio. Para muitos, porém, o medo em relação às consequências da radiação nuclear – por conta do acidente na usina de Fukushima – e ao risco de eventuais novos tremores levou a procurar orientações por telefone. Foi então que, mais uma vez, o Programa Disque-Saúde mostrou sua importância, como vem fazendo desde sua criação, em 1996. O Disque-Saúde é uma central telefônica que recebe as chamadas de brasileiros residentes em qualquer cidade japonesa e faz a triagem e o encaminhamento para os serviços médicos do país. Nestes pouco mais de 15 anos, já foram prestados mais de 52 mil atendimentos.
A origem do programa está ligada a outro terremoto – o que atingiu a cidade de Kobe em 1995. Na época, o médico Sérgio Branco, que trabalhava em neurocirurgia em Osaka, e a psicóloga Neusa Emiko Miyata, então pesquisadora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Kyoto, percorreram várias regiões do Japão ao lado de bolsistas brasileiros da área da saúde convidados para fazer palestras a grupos de conterrâneos que residiam no país. O projeto, que contava com o patrocínio de uma companhia telefônica que arcava com as despesas de viagem, acabou sendo batizado de Caravanas da Saúde.
“As Caravanas foram uma maneira que eu e o doutor Sérgio encontramos de levar informações sobre saúde aos brasileiros. Visitamos inúmeras cidades e tivemos a oportunidade de ver de perto que havia muita carência dessas orientações em português”, conta Neusa. Uma realidade constatada pela psicóloga na época continua existindo hoje: em geral, os brasileiros que residem no país, mesmo os nikkeis – ou seja, aqueles com ascendência nipônica –, não dominam a língua japonesa e têm bastante dificuldade para se comunicar com os médicos. “Estávamos muito preocupados com o fato de que os brasileiros não têm condições de expressar de forma precisa o que estão sentindo para que seja feito um bom diagnóstico”, diz o advogado Ricardo Sasaki, vice-cônsul do Brasil em Nagoya entre 1994 e 99 e um dos idealizadores do programa. “Essa intermediação é fundamental”, completa.
Profissionais bilíngues
A dificuldade de comunicação foi um dos motivos para a mudança de formato do trabalho. Numa reunião do Conselho de Cidadãos do Consulado Geral do Brasil em Nagoya – uma assembleia informal que reúne representantes da comunidade brasileira para identificar problemas e propor soluções –, surgiu a ideia da criação do atendimento por telefone, que permitiria ligações de pessoas de todo o Japão para esclarecer suas dúvidas. Assim, as Caravanas deram lugar ao Disque-Saúde. As ligações para a central telefônica são atendidas pela secretária Helena Kakuda. Ela providencia um cadastro e, após triagem, encaminha o caso a um dos seis profissionais de saúde ligados ao programa. Além da psicóloga Neusa, trabalham os médicos Taro Nagai, Elza Nakahagi, Sonia Tsushima, George Ito e Helena Yamada. Todos são bilíngues (Nagai é o único nascido no Japão; os demais são brasileiros) e conhecem o sistema de atendimento japonês. O país, aliás, tem dois seguros-saúde: o shakai hoken, descontado do salário do trabalhador, e o kokumin kenkou hoken, para autônomos. Tanto um quanto o outro cobrem 70% dos gastos médicos, explica Neusa.
Durante a orientação por telefone, os profissionais esclarecem dúvidas e, dependendo do caso, ensinam como explicar os sintomas em japonês. Na central de atendimento existe uma lista de hospitais que contam com intérpretes japonês-português. Se houver possibilidade, o paciente é encaminhado a um deles. “O programa serve de ponte entre o paciente e o hospital japonês, para que o brasileiro possa cuidar de sua saúde, mesmo tão longe de sua terra natal”, define o site do Disque-Saúde na internet (www.disquesaude.jp).
Essa ponte tem dado suporte a um grande tráfego e tem também obtido reconhecimento em forma de prêmios. Em 2008, o Disque-Saúde foi condecorado pelo Ministério das Relações Exteriores do Japão como um dos programas que mais auxiliam a comunidade brasileira no país. Em 2010, recebeu um diploma do governo brasileiro em reconhecimento aos serviços prestados e, no ano passado, foi distinguido com o Brazilian Press Award Japan.
Língua difícil e estresse
Nascida em Brasília há 44 anos, Neusa Emiko Miyata recebeu uma bolsa de estudos do governo japonês e chegou ao país em 1992 para fazer pesquisa na área de psicologia clínica. Após passar um ano na Universidade de Tsukuba, transferiu-se para a Universidade de Kyoto. Lá, foi contratada como intérprete do departamento internacional da polícia da vizinha província de Osaka. Na época, acompanhou casos de brasileiros envolvidos em furtos, assaltos e problemas com drogas. Terminado o período da bolsa, foi contratada pelo Consulado Geral do Brasil em Nagoya, onde trabalhou por quatro anos e meio como secretária. Em 2001, casou-se com o médico japonês Akira Miyata, da Cruz Vermelha japonesa, que já atuou em operações de socorro a vítimas de grandes tragédias naturais, como os tsunamis da Indonésia, em 2004, e o do Japão no ano passado. O casal vive em Kumamoto, no sul do país.
A princípio, Neusa e Sérgio Branco exerciam em conjunto a administração do Disque-Saúde. O médico retornou ao Brasil em 2000, e desde então a psicóloga é a diretora executiva do programa. Em sua opinião, a complexidade da língua é o principal motivo para que os brasileiros acabem não aprendendo a falar japonês. Somam-se a isso a falta de tempo – em geral os imigrantes trabalham todas as horas extras possíveis – e a comodidade de contar com os intérpretes oferecidos no local de trabalho pelas empreiteiras e por muitas prefeituras e associações internacionais. No início do chamado fenômeno dekassegui – palavra japonesa que se refere a “trabalho fora de casa” –, entre o final da década de 1980 e o início dos anos 1990, a maioria dos brasileiros que se mudavam para o Japão em busca de melhores oportunidades iam sozinhos. Com o tempo, acabaram se casando no país ou conseguiram levar a família. De acordo com a psicóloga, são raros os que perdem contato definitivamente com os familiares por aqui. Entretanto, revela, há casos em que os imigrantes cometem crimes em território japonês e não querem que as autoridades diplomáticas avisem seus parentes no Brasil.
De acordo com Neusa, o número de encaminhamentos nas áreas de psicologia e psiquiatria pelo Disque-Saúde tem crescido nos últimos anos. A razão é o grande estresse provocado pelas condições de trabalho no Japão, além das preocupações com a educação dos filhos. Os relatos de depressão e síndrome do pânico têm sido mais frequentes. “Nesses casos, o apoio da família é muito importante. Estar sozinho pode dificultar o processo de tratamento”, diz ela.
Os principais atendimentos feitos pelo programa acontecem nas áreas de clínica-geral, ginecologia e pediatria, mas o Disque-Saúde também encaminha os pacientes para muitas outras especialidades, como neurologia, ginecologia, ortopedia e obstetrícia. Os casos demonstram a importância do programa. J. M. M., por exemplo, procurou o serviço assim que chegou ao Japão, pois se deparou com dificuldades de adaptação. Ela recorreu ao Disque-Saúde em várias outras ocasiões: quando engravidou, quando a filha nasceu e também quando enfrentou problemas no casamento. Chegou a pensar em suicídio, mas com o apoio da equipe conseguiu superar os momentos mais difíceis.
C. K. P. é auxiliada pelo programa desde 1998. Seu problema mais sério foi quando seu filho nasceu prematuro e, mais tarde, descobriu-se que a criança era portadora de deficiência. O acompanhamento do Disque-Saúde foi de grande importância para obter tratamento e mover um processo por erro médico contra o hospital. Outro caso em que a intervenção da equipe foi decisiva foi o de P. H. A. Ele foi internado com problemas intestinais, mas o tratamento não teve bons resultados. Quando os sintomas foram relatados aos profissionais do Disque-Saúde, constatou-se que o diagnóstico era de doença de Chagas, que o médico do Japão desconhecia. Graças às informações e ao material enviados pela equipe do serviço, o paciente foi operado com sucesso.
Sem dinheiro público
O Disque-Saúde é mantido por patrocínio de empresas privadas. A verba é utilizada para pagar o pró-labore mensal dos profissionais de saúde e o salário da secretária, além de custos com transporte, seguros e despesas telefônicas, entre outros. No momento, são três as empresas patrocinadoras. Havia uma quarta, que encerrou sua participação. Com isso, no ano passado os pagamentos aos membros da equipe tiveram de ser reduzidos. O programa está à procura de um novo patrocinador. As autoridades diplomáticas brasileiras têm buscado apresentar aos membros da equipe empresários, tanto brasileiros quanto japoneses, que possam contribuir com sua manutenção. Cada patrocinador entra com 170 mil ienes mensais (cerca de R$ 3.900, pelo câmbio do final de janeiro).
Depois de atuar como vice-cônsul brasileiro em Nagoya, Ricardo Sasaki voltou ao Brasil e, entre outras atividades, trabalha atualmente como advogado do Consulado do Japão em São Paulo. Sasaki defende a participação do governo brasileiro no programa não só com apoio formal, mas também com destinação de verbas. De acordo com o advogado, o Disque-Saúde não pode ser financiado apenas por empresas privadas, porque a questão da saúde é um problema público. “Além disso, as condições que levaram à criação do programa continuam existindo”, afirma. Atender a comunidade de brasileiros no exterior é um dos papéis do governo, ressalta o advogado.
As autoridades brasileiras reconhecem a importância do programa como “um serviço de utilidade pública extremamente relevante” e inclusive o apontam como um modelo a ser replicado em outros países. Entretanto, de acordo com a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores (MRE), em Brasília, o governo não pode contribuir com recursos financeiros. “O Executivo seria questionado pelo Tribunal de Contas da União e pelo próprio Congresso Nacional se direcionasse verbas da saúde para outro país, mesmo que elas se destinassem ao atendimento de brasileiros. Temos imensas deficiências em saúde no Brasil. Como justificar o envio de dinheiro para brasileiros que estão fora por vontade própria?”, questiona a assessoria. Ainda de acordo com o ministério, essa situação é diferente dos casos de auxílio humanitário em que o Brasil contribui com envio de verbas, pessoal e equipamentos, porque em geral essa é uma ajuda destinada a países pobres. Já o Japão até recentemente era a segunda economia mundial – está agora em terceiro lugar, ultrapassado pela China.
Ao lado do crescimento da potência chinesa, a crise econômica ajudou a fazer o Japão descer um degrau – e teve também influência na diminuição do número de brasileiros no país. Em agosto de 2008 a comunidade reunia 317 mil brasileiros, de acordo com dados do Ministério da Justiça japonês. Com a crise, mais de 90 mil voltaram até dezembro de 2010. Após o terremoto/tsunami do ano passado, outros 10 mil retornaram ao Brasil. Pelos dados oficiais japoneses, 230 mil brasileiros residiam na terra do sol nascente em novembro de 2011. Desse total, 87% são descendentes de japoneses de segunda ou terceira geração e têm visto para trabalhar. De acordo com a assessoria de imprensa do MRE, o Japão é o único país do mundo em que o governo do Brasil tem controle absoluto do número de nacionais residentes, porque “não há cidadão brasileiro indocumentado” (leia-se ilegal) em seu território.