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As veias abertas do Paraguai
por Herbert Carvalho
No bicentenário de sua independência, comemorado em 2011, o Paraguai amarga um ressentimento em relação aos demais sócios do Mercosul, que não consegue alcançar em matéria de superação da pobreza. Apesar de ter batido o recorde de crescimento econômico na região, com a impressionante expansão de 14,5% de seu produto interno bruto em 2010, apresentou no ano passado um PIB per capita de US$ 4,7 mil, muito inferior aos da Argentina (US$ 14,5 mil), do Uruguai (US$ 13,2 mil) e do Brasil (US$ 10,1 mil).
Esses três países, não por acaso, são os mesmos que se aliaram há quase 150 anos para mutilar o território e dizimar a população de uma nação que ousou ser igualitária, coesa e soberana num continente então marcado pelo escravismo, por lutas fratricidas e pela submissão a potências estrangeiras. A Guerra do Paraguai (1864-1870), como a chamam os vencedores, ou da Tríplice Aliança, no dizer dos vencidos – a mais atroz da história americana, considerada por muitos estudiosos como o primeiro genocídio dos tempos modernos (ver “A Tragédia Paraguaia”, Problemas Brasileiros nº 333) –, exterminou um quarto da população antes estimada em 800 mil habitantes. Destruída, principalmente pelas forças brasileiras comandadas pelo conde D’Eu, uma infraestrutura que contava com fundição de aço, ferrovia e telégrafo, restaram pequenos grupos de mulheres, crianças e anciãos espalhados por campos e bosques.
Restaurado o aparelho de Estado para legalizar o despojo do país – cuja dívida de guerra remanescente foi paga até a década de 1940 –, o Paraguai se envolveu 60 anos depois em novo conflito, desta vez com o vizinho do norte, a Bolívia. Ainda que vitorioso na Guerra do Chaco (1932-1935), o país sofreu enormes perdas humanas e econômicas, ingressando em período de golpes e lutas intestinas que desembocou em 1954 na ditadura de Alfredo Stroessner (1912-2006).
Esse militar, filho de pai alemão, faz pender para o Brasil a balança da secular disputa com a Argentina pela hegemonia geopolítica na bacia do Prata. Ao mesmo tempo, a fronteira com nosso país converteu-se na porta de entrada para produtos contrabandeados e falsificados, além de armas e drogas. Deposto em 1989, após 35 anos de torturas e assassinatos de opositores, refugiou-se em Brasília, sede do governo com o qual assinara, em 1973, o Tratado de Itaipu, considerado até hoje pelos paraguaios como altamente lesivo a seus interesses.
Bispo dos pobres
País que inaugurou o ciclo das ditaduras militares da segunda metade do século passado na América do Sul, o Paraguai foi o último a restaurar a democracia, mas sem alternância no poder. Em agosto de 2008, finalmente, o ex-bispo católico Fernando Lugo, apoiado em uma aliança de centro-esquerda, desalojou do governo o Partido Colorado, que respaldara a ditadura e mantivera-se ao longo de seis décadas, desde 1947, no comando férreo e indivisível da política nacional.
Embora sofra com a mesma desconfiança e má vontade da mídia e das elites locais, o presidente Lugo, ao contrário do que ocorre com os demais governantes de esquerda da região, não obteve o controle do Congresso, o que dificulta a tramitação e aprovação de muitos de seus projetos. Com maioria oposicionista, o Senado paraguaio bloqueia, por exemplo, há dois anos, a entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul, autorização já concedida pelos três outros legislativos do bloco. No final do ano passado, por iniciativa do presidente do Uruguai, José Mujica, os três governos passaram a fazer pressão sobre o Parlamento do parceiro recalcitrante para superar o impasse, o que levou o diário conservador ABC Color, o maior do país, a bradar que uma “nova Tríplice Aliança” estava se formando contra o Paraguai.
Como se as dificuldades políticas não bastassem, a popularidade de Fernando Lugo – angariada por suas ações em defesa dos camponeses sem-terra, que lhe valeram o título de “bispo dos pobres”, quando era o titular da diocese de San Pedro, uma das regiões mais carentes do país – despencou em 13 de abril de 2009. Nessa data ele reconheceu a paternidade de um filho, fruto de relacionamento mantido ao tempo em que ainda envergava o báculo e a mitra, fato que inicialmente tentou ocultar.
Um ano depois, médicos detectaram um câncer em sua virilha, tratado com cirurgia e sessões de quimioterapia realizadas no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. É considerado curado sem ter de passar, em nenhum momento de seu tratamento, a presidência ao vice Federico Franco, do Partido Liberal, opositor de várias decisões tomadas pelo governo.
Ainda em 2010, Lugo foi surpreendido pela atuação de um obscuro Exército do Povo Paraguaio (EPP), grupo estimado de 100 guerrilheiros que seriam apoiados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Obteve do Congresso licença para a intervenção do exército nos departamentos (equivalentes a estados) de Presidente Hayes, San Pedro, Concepción, Amambay e Alto Paraguay (os três últimos na fronteira com o Brasil), mas o prazo dado de 30 dias expirou sem que a tarefa de neutralizar a insurgência tivesse êxito.
Soberania energética
Nesse contexto de grandes dificuldades internas e pessoais, o presidente Lugo se debruçou sobre os temas prioritários para tentar estabelecer uma nova etapa nas relações com o Brasil. A questão permanente, de maior segurança na fronteira, foi equacionada em acordo assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, prevendo a construção de onze bases da Polícia Federal brasileira nos pontos mais críticos. Além de inibir a ação das quadrilhas de traficantes de ambos os lados, o objetivo era combater a lavagem de dinheiro: estima-se que o narcotráfico movimente cerca de US$ 50 milhões por ano entre os dois países. Do ponto de vista brasileiro, também é vital controlar o fluxo transfronteiriço de gado, para evitar que a febre aftosa, endêmica no país vizinho, contamine nosso rebanho.
O problema mais urgente e difícil, porém, reside naquilo que Fernando Lugo, ainda quando candidato, reivindicou sob a designação genérica de “soberania energética”. Embaixo desse guarda-chuva abrigam-se as seguintes demandas: reajuste no preço da energia elétrica comprada pelo Brasil, permissão para o Paraguai vender a energia diretamente no mercado brasileiro sem a intermediação da estatal Eletrobras e também ofertá-la a outros países. Essas possibilidades são hoje vetadas pelo Tratado de Itaipu, o que anula a vantagem do Paraguai em ser o maior exportador mundial de energia elétrica.
Maravilha da engenharia à época de sua construção (entre 1974 e 1984) – com um lago de 1,35 mil km² e potência de 14 mil megawatts em vinte unidades geradoras –, a usina binacional de Itaipu fornece 20% da eletricidade consumida no Brasil e 90% da que o Paraguai usa. Essa última parcela representa, porém, apenas 5% do total produzido. Como a metade da energia de Itaipu pertence ao sócio, o Brasil compra o excedente, mas paga muito pouco por isso, de acordo com a voz unânime dos paraguaios.
Em reunião mantida com Lugo, no início de 2009, Lula recusou-se a rever o tratado, mas aceitou triplicar o preço pago, de US$ 120 milhões para US$ 360 milhões anuais – o Paraguai queria, inicialmente, o valor de US$ 800 milhões por ano. O reajuste encontrou, porém, forte resistência da mídia e dos partidos de oposição no Brasil, sendo aprovado apenas no ano passado, poucos dias antes de 14 de maio, data nacional em que os paraguaios celebraram o bicentenário. A sessão do Senado brasileiro que adotou a deliberação foi acompanhada ao vivo na capital Assunção, em clima de Copa do Mundo. As demais reivindicações paraguaias sobre Itaipu, entretanto, ficaram postergadas para 2023, quando vence o tratado assinado em 1973.
Carperos
Outro problema, agravado no final do ano passado e no início deste, tem origem relacionada com Itaipu. Agricultores que tiveram suas propriedades alagadas no extremo oeste do Paraná por causa da construção da usina não conseguiram, com a indenização recebida, comprar outras terras no país. Mas na margem do rio Paraná oposta a Foz do Iguaçu, no departamento do Alto Paraná – onde fica Ciudad del Este, a meca dos sacoleiros brasileiros –, as terras eram oito vezes mais baratas e podiam ser compradas, porque Stroessner anulara a lei que impedia a aquisição de glebas por estrangeiros na faixa de fronteira.
Resultado: ao longo de quatro décadas os brasiguaios, como passaram a ser chamados, ocuparam milhares de hectares dessas terras férteis que integram a mesopotâmia paraguaia – a região densamente habitada entre os rios Paraná e Paraguai. Transformaram o país em grande produtor e exportador mundial de soja, produto que responde por 55% de sua economia. São 250 mil só no Alto Paraná, liderados pelo “rei da soja”, Tranquilo Favero, que cultiva e arrenda para outros brasileiros mais de 400 mil hectares na região do rio Ñacunday, epicentro do conflito com os carperos, sem-terra paraguaios assim chamados por viverem sob cabanas de plástico, as “carpas”.
Inconformados com a lentidão da reforma agrária prometida por Lugo, os carperos vindos de todo o país acamparam nas imediações das valorizadas propriedades dos brasiguaios – hoje com preço de mercado de US$ 10 mil por hectare –, que ameaçam invadir. Alegam que as fazendas estão em áreas do governo ou foram obtidas mediante fraudes.
Para complicar ainda mais a questão, o Paraguai reeditou a lei restritiva da compra de terras por estrangeiros a menos de 50 km das fronteiras, à exceção das áreas adquiridas antes de sua promulgação. O presidente garante que os direitos dos brasiguaios serão respeitados, mas seu governo realiza um pente fino para determinar a legalidade ou não das propriedades. Num país onde terras públicas foram historicamente ocupadas por argentinos e brasileiros desde 1870, a questão fundiária, temperada pelo nacionalismo, adquire forte apelo emocional. O próprio Fernando Lugo chegou à presidência por meio do movimento popular camponês intitulado Tekojoja, expressão que significa “viver em igualdade” na língua guarani, idioma oficial ensinado nas escolas ao lado do espanhol.
Diante das incertezas, muitos brasiguaios estão voltando e se integrando ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST brasileiro. O Mato Grosso do Sul já tem 2 mil deles à beira de rodovias preparando-se para novas ocupações, como as realizadas no município de Itaquiraí. Para Favero, porém, regressar está fora de questão: “Se vamos perder tudo o que fizemos trabalhando em 30 anos, algo licitamente adquirido, preferimos morrer aqui”, diz o agricultor de 74 anos, a maior parte dos quais vividos em território paraguaio.
A hesitação e a ambiguidade das autoridades paraguaias em relação a essa questão se explica, embora não se justifique, pelos interesses econômicos e sobretudo políticos que envolve: por trás dela está o jogo da sucessão do presidente Lugo, que deixará o governo em 2013, pois a Constituição paraguaia veda a reeleição.
Guarânias e tereré
Único país bilíngue da América Latina, o Paraguai não tinha analfabetos na primeira metade do século 19 e ainda hoje seu índice nesse quesito, de 5,2% da população, é a metade do brasileiro (9,6%). Do total de 6,5 milhões de habitantes, 95% são mestiços, resultado da forte miscigenação entre colonizadores espanhóis e índios guaranis, que originalmente ocupavam o território mediterrâneo, hoje reduzido a pouco mais de 400 mil km², desprovido de litoral e totalmente dependente da navegação fluvial para realizar seu comércio exterior. No dizer do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, seu país é “uma ilha rodeada de terras”.
Conscientes de integrar uma nação pobre e pequena – mas que não se apequena diante de ninguém, como diz um slogan oficial –, os paraguaios são em geral receptivos aos brasileiros que em número cada vez maior escolhem Assunção como destino turístico, atraídos pelas compras e pelos cassinos. No Resort Yacht y Golf Club Paraguayo, distante 14 km do centro da cidade, o hóspede nem sequer precisa recorrer ao “portunhol” para ser atendido nas piscinas ou em qualquer um dos cinco luxuosos restaurantes, pois os funcionários compreendem e se expressam sem dificuldade em português.
Fator importante para atrair visitantes são os preços baixos nesta que é considerada uma das dez capitais mais baratas do mundo. Apesar dos muitos zeros na hora do câmbio – 1 real vale cerca de 2,4 mil guaranis, a moeda local –, o Paraguai é o país mais estável monetariamente do Mercosul e apresenta a menor inflação de todos, nos últimos 50 anos. Uma refeição para duas pessoas com bebida custa em torno de 70 mil guaranis: menos que R$ 30.
O brasileiro que percorre as arborizadas ruas de Assunção – as mesmas que foram ocupadas em 1869 pelas tropas comandadas pelo duque de Caxias – logo percebe que os agentes da invasão brasileira agora não são mais soldados, e sim empresas. Postos de gasolina da Petrobras, agências do Banco Itaú e cartazes da cerveja Brahma são onipresentes não apenas na capital, mas em todo o país.
As queixas que se ouvem contra essa espécie de imperialismo brasileiro, porém, não estão relacionadas com produtos ou serviços, e sim com o que se poderia chamar de apropriação indébita de símbolos da cultura paraguaia. Anibal Riveros, dono da loja de discos Blue Caps na Calle Palma – a rua comercial mais tradicional de Assunção –, reclama enquanto sorve um gole de tereré, um chimarrão de água gelada que os paraguaios consomem durante todo o dia para amenizar os rigores do calor: “Não existe nada mais paraguaio que o tereré, mas os brasileiros tiveram a coragem de registrá-lo como se fosse deles”, diz, aludindo a um decreto assinado em 2011 pelo governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli (PMDB). Classificada como tereré de Ponta Porã – cidade no sul do estado, separada apenas por uma avenida da paraguaia Pedro Juan Caballero –, a bebida foi declarada patrimônio imaterial histórico e cultural de Mato Grosso do Sul, sem qualquer referência a sua verdadeira origem.
O pior, entretanto, foi quando o programa “Fantástico”, da Rede Globo, apresentou a música Meu Primeiro Amor como se fosse brasileira, sem mencionar que se trata de uma versão da guarânia Lejanía, composta em 1937 pelo paraguaio Herminio Giménez. A indignação ganhou as páginas dos jornais paraguaios, e o Núcleo Cultural Guarani Paraguay Teete, com sede em São Paulo, mobilizou a comunidade de 70 mil paraguaios residentes no Brasil para exigir a retificação, explicando que o ritmo guarânia nasceu em 1925, no Paraguai, pelas mãos do maestro José Asunción Flores. Na década de 1950, o brasileiro José Fortuna fez a versão livre de canções como Lejanía, de Giménez, e India, de Flores, que se tornaram grandes sucessos no Brasil sem que as origens e os verdadeiros autores fossem mencionados ou reconhecidos. Satisfeitos com a nota lida pelos apresentadores do programa global admitindo o erro e a omissão, os membros do Paraguay Teete (“Paraguai verdadeiro”, em guarani), fundado em 2009, prosseguem com sua proposta de mostrar aos brasileiros que seu país “não se resume a Ciudad del Este”. Defender a dignidade, a imagem e a história do Paraguai e de seus descendentes perante situações discriminatórias, tratos pejorativos, piadas e chacotas que a mídia do Brasil vem produzindo constantemente é o objetivo central do grupo.
Dos guaranis aos brasiguaios
1537 – Em acordo com caciques guaranis, o capitão espanhol Juan de Salazar funda na margem oriental do rio Paraguai o Porto e Casa Forte de Nossa Senhora de Assunção como “amparo e reparo” da conquista do sul do continente, cuja porção espanhola seria conhecida como Província Gigante das Índias.
1758 – Os jesuítas são expulsos após o Tratado de Madri entre Portugal e Espanha. Os guaranis abandonam as missões, onde por mais de um século haviam resistido aos ataques dos bandeirantes paulistas.
1811-1840 – Independência do Paraguai e governo de José Gaspar de Francia, conhecido como El Supremo, que fecha o país para evitar a influência de algumas características de seus vizinhos: o escravismo no Brasil e o extermínio de índios na Argentina.
1864-1870 – Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, orquestrada à sombra do Império Britânico por um quarto aliado, a libra esterlina, de acordo com o historiador e ex-senador paraguaio Domingo Laino.
1932-1935 – Guerra do Chaco, contra a Bolívia, estimulada por interesses petrolíferos dos EUA.
1954-1989 – A ditadura de Alfredo Stroessner deixa um saldo de 420 desaparecidos, segundo o relatório final da Comissão Verdade e Justiça do Paraguai.
2008-2013 – Após se eleger presidente para um mandato de cinco anos, Fernando Lugo, bispo católico vinculado à Teologia da Libertação, obtém do papa Bento XVI a dispensa de seus votos eclesiásticos.