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A Academia e os 40 imortais

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

No palacete neoclássico de vidraças quase sempre fechadas, o silêncio na biblioteca e nas salas decoradas com obras de arte reverencia a imortalidade dos donos do lugar. A casa só ganha movimento nas tardes de quinta-feira, dia em que um grupo de senhores e de algumas senhoras, envergando roupas bordadas a ouro, se reúne para conversar sobre a mágica da palavra e tomar chá, exercitando uma tradição de mais de um século. Do lado de fora, no alto do prédio, uma inscrição denuncia que o local é a sede da Academia Brasileira de Letras (ABL) – indicação que faz do número 123 da Avenida Presidente Wilson muito mais do que uma relíquia arquitetônica em meio aos arranha-céus do centro do Rio de Janeiro.

A ABL está naquele endereço há 90 anos, mas sua criação remonta a 20 de julho de 1897, quando 16 de seus fundadores realizaram a sessão inaugural, no antigo Museu Pedagogium, na Rua do Passeio. Na abertura dos trabalhos, o escritor carioca Machado de Assis, primeiro presidente da instituição, resumiu a missão da ABL: proteger a língua e a literatura brasileiras. “O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância”, disse, invocando em seguida o exemplo da Academia Francesa, criada no século 17.

Da inspiração vinda da França derivou a expressão “imortal”, distintiva dos integrantes da ABL. O termo remete à divisa do selo oficial da Academia Francesa – “À l’immortalité”. Pelas regras estatutárias da ABL, os imortais são 40 – escolhidos por voto secreto ou por carta no caso de um dos eleitores não poder participar do escrutínio. Das quatro dezenas de integrantes efetivos e vitalícios, 25 devem morar no Rio de Janeiro. Mais 20 membros são correspondentes estrangeiros, sem prerrogativa de voto. Para as sessões, fechadas ao público, o quorum é de cinco participantes; para deliberações, de pelo menos dez.

Antes das sessões, nas quintas-feiras, a Academia se mantém fiel à tradição do chá – antigamente, às 17 horas; nos últimos tempos, às 15. Em meio a amenidades sobre a literatura e as coisas do mundo, o chá é reforçado com sortido cardápio de quitutes, que variam ao sabor das preferências do imortal que estiver presidindo a Casa de Machado de Assis, como a ABL ficou conhecida. “Quando fui presidente, escolhi o bolinho de aipim com coco, servido até hoje”, orgulha-se o escritor e educador carioca Arnaldo Niskier, que ingressou na Academia em 1984 e ocupou sua presidência por dois mandatos, em 1998 e 1999. Sua antecessora, a escritora Nélida Piñon, também carioca, primeira mulher a presidir a ABL, havia incluído no serviço de chá o bolo inglês.

A missão primordial continua em pauta, mas a Academia já não se limita a discursos e papel impresso. Sinal dos tempos: saindo em busca de público e inserção social, a instituição diversificou suas atividades nos anos 1990 e passou a promover conferências, shows de música, recitais, exibição de filmes, exposições, peças teatrais e leituras dramatizadas. “A Academia é um grande e atuante centro cultural”, define a presidente da instituição, a carioca Ana Maria Machado. Dona da cadeira número 1, que foi ocupada pela primeira vez pelo literato fluminense Luís Murat, um dos fundadores da ABL, a escritora é uma das seis mulheres na história daquela casa e a segunda a presidi-la.

Como guardiã da língua e da literatura nacionais, a ABL publica livros desde 1923, quando o escritor e médico baiano Afrânio Peixoto, que presidia a instituição, lançou a coleção Biblioteca de Cultura Nacional. Abrangendo temas como literatura, história e discursos acadêmicos, a série seria batizada, anos depois, com o nome de Afrânio, ocupante imediato da cadeira em que se sentara, até 1909, o escritor Euclides da Cunha, que reportou a Guerra de Canudos em Os Sertões.

Vestido longo

A Coleção Afrânio Peixoto permanece viva e tem, entre seus 32 títulos disponíveis, três com a correspondência de Machado de Assis. Ao longo do tempo, juntaram-se a ela mais três coleções. Em 2001, foi lançada a Austregésilo de Athayde, denominada assim em honra ao mais longevo presidente da casa e voltada à edição de obras dos acadêmicos. Outra, com livros sobre o idioma, leva o nome do filólogo carioca Antônio de Morais Silva, primeiro brasileiro a fazer um dicionário da língua, em 1789. Já a Série Essencial, no 48º volume, enfeixa perfis dos imortais. A Academia participa ainda de coedições, publica anais e anuários e, trimestralmente, leva ao prelo a “Revista Brasileira”, dirigida pelo poeta, romancista e ensaísta carioca Marco Lucchesi.

A ABL também responde pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, com mais de 381 mil verbetes ajustados às normas do novo acordo ortográfico, que unifica a escrita do idioma em todos os países lusófonos. A instituição desempenhou papel de destaque na assinatura do acordo, que foi adotado pelo Brasil em 2008 e teve sua entrada em vigor adiada de 2013 para 2016. A exemplo do vocabulário, vários outros serviços em favor da língua e da literatura, incluídas versões integrais de livros, são oferecidos pela Casa de Machado de Assis em seu site na internet. “A Academia está completamente apetrechada em tecnologia para atender aos novos tempos”, afirma o acadêmico Niskier.

A ABL começou a ser organizada em 1896, um ano antes da fundação, por iniciativa do escritor Lúcio de Mendonça e de outros ficcionistas e poetas. As reuniões preparatórias eram feitas na redação da “Revista Brasileira”, dirigida pelo literato, jornalista e crítico paraense José Veríssimo, na Travessa do Ouvidor, 31, centro carioca. Entre os imortais da primeira hora despontavam o diplomata Joaquim Nabuco, o jurista Ruy Barbosa e os mais notáveis escritores da época – além de Machado de Assis, Aluísio e Artur Azevedo, Graça Aranha, Carlos de Laet, Coelho Neto, José do Patrocínio e Valentim Magalhães –, assim como os poetas Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.

Até 1923, a Academia ocupou vários locais no Rio, como o Pedagogium, o Ginásio Nacional, o salão nobre do Ministério do Interior e o Real Gabinete Português de Leitura. A peregrinação acabou quando o governo da França doou à entidade o prédio que foi ocupado por aquele país na Exposição Universal, em 1922, no Rio de Janeiro. O imóvel, na verdade um palacete, é cópia do famoso Petit Trianon, construído em Versalhes pelo rei Luís XV, em 1768, como um mimo à sua amante.

O prédio histórico da Avenida Presidente Wilson é pródigo em preciosidades artísticas, a começar pelo jardim, onde se destaca uma estátua de bronze de Machado de Assis, do escultor paulista Humberto Cozzo. O saguão exibe lustre de cristal francês e porcelanas de Sèvres; obras de arte também se espalham pelas demais dependências – as salas Machado de Assis, dos Fundadores e dos Poetas Românticos, no térreo, e, no andar superior, a Sala Francisco Alves e os salões Nobre, de Chá e Francês.

O rito de iniciação à vida de imortal acontece no Salão Francês, onde cada eleito se recolhe, solitário, antes da solenidade de posse, que transcorre no Salão Nobre. A cerimônia se desenrola em grande estilo, com todos os homens envergando fardão, de tecido verde escuro e folhas bordadas a ouro, complementado por chapéu negro com plumas brancas e uma espada. Confraria exclusivamente masculina até 1977, a ABL criou vestimenta feminina quando admitiu sua primeira imortal, a escritora Rachel de Queiroz, que assumiu sua cadeira de vestido longo de crepe, também verde escuro, ornamentado com as folhas de ouro.

Tema tabu

A maior preciosidade do Petit Trianon carioca está no segundo andar: a Biblioteca Acadêmico Lúcio de Mendonça, com 20 mil volumes, incluídas inúmeras obras raras. Aberta a pesquisadores, a biblioteca teve início com a doação, em 1896, de um exemplar do romance Flor de Sangue, do fundador Valentim Magalhães. Ela é constituída pelas obras dos imortais e por coleções cedidas por eles, e suas estantes guardam originais de clássicos literários e raridades dos séculos 16 e 17, como a edição princeps (a primeira de uma obra), de 1572, do poema épico Os Lusíadas, do português Luís de Camões.

Mais de 70 mil livros são mantidos pela ABL em outra biblioteca, a Rodolfo Garcia, no segundo andar do edifício anexo à Academia, o Palácio Austregésilo de Athayde, inaugurado em 1979 em terreno doado pelo governo federal, local que abrigou o pavilhão da Grã-Bretanha na exposição de 1922. Criada em 2005, a biblioteca tem acervo que cobre os mais variados temas do conhecimento, por conta de doações de membros da instituição e outros amantes dos livros. Entre as muitas raridades destacam-se clássicos sobre a história e a cultura brasileiras (Brasiliana).

O edifício é um capítulo à parte na história da Academia. Com 35 andares e estilo moderno, em contraste com o palacete histórico, o arranha-céu é resultado da empreitada a que se lançou o jornalista e ensaísta pernambucano Austregésilo de Athayde, presidente da ABL de 1959 a 1993. Chamado inicialmente de Centro Cultural do Brasil, o prédio foi alçado ao status de palácio e batizado com o nome de Austregésilo quatro anos após sua morte. Essa homenagem aconteceu em 1997, no mandato de Nélida Piñon, por sugestão do acadêmico e ex-presidente da República José Sarney.

A construção, onde está instalada a presidência da ABL e em cuja entrada há uma estátua de bronze do poeta Manuel Bandeira, é um marco na trajetória institucional e financeira da Academia. Em área nobre do centro, o prédio tem a maioria dos pavimentos alugada e é o mais valioso dos mais de 30 imóveis que garantem sua manutenção. A quase totalidade desses bens foi doada à ABL pelo livreiro português Francisco Alves, radicado no Rio e morto em 1917. Além de assegurar o custeio de projetos e atividades culturais, a renda imobiliária cobre a remuneração dos acadêmicos, incluídos os jetons pela participação nas sessões e conferências.

Esses valores, assim como a verba mensal de representação, pagos aos imortais, são tema tabu na ABL. Fora da instituição, a reação comum dos acadêmicos é contornar o assunto sob o argumento de que a Academia não tem vínculos com o poder público e, portanto, só presta contas a seus integrantes. Exemplo disso é dado pelo acadêmico Arnaldo Niskier, que, taxativo, diz: “Sobre isso, não falo”. Em março de 2010, reportagem da “Folha de S. Paulo” informou que, somados os jetons e a representação, um acadêmico recebia R$ 9 mil mensais caso participasse de todas as sessões e conferências. Compensada a inflação ao longo de três anos, o valor corrigido seria de mais de R$ 11 mil.

Desde que a Academia passou a dispor de recursos para agraciar seus integrantes, a questão da remuneração de seus membros volta e meia dá o que falar. Falecido em 1973, o crítico literário Agrippino Grieco, que se notabilizou pela verve corrosiva com que atacava intocáveis das letras nacionais, escreveu que “ser acadêmico é obter, evitando exames de saúde, de português e fiança, um ótimo emprego”. Em compensação, lembra o acadêmico Niskier, Olavo Bilac exercitava sua fina ironia, no começo do século 20, a respeito da imortalidade não remunerada. “Sou imortal porque não tenho onde cair morto”, dizia o poeta.

Ser brasileiro nato e autor de obra literária de “reconhecido mérito” ou, sendo de outro gênero, de “valor literário”. São esses os requisitos estatutários a que qualquer cidadão nacional deve atender para candidatar-se a membro “perpétuo” dos quadros da ABL. Apesar da singeleza e objetividade do estatuto, aprovado em 28 de janeiro de 1897 e com apenas dez artigos, o privilégio de ocupar uma das 40 cadeiras da casa é coisa para poucos. Virtudes literárias à parte, a regra geral para o acesso à imortalidade implica longas e planejadas campanhas de bastidores, no melhor estilo da política.

“Não é minha praia”

A corrida rumo à imortalidade depende da materialização de um paradoxo: o falecimento de um imortal. Na prática, os movimentos de um pretendente ao ingresso na Academia começam muito antes de uma cadeira ficar vazia – às vezes, com diferença de anos. O último a deixar vago um assento na ABL foi o jornalista João de Scantimburgo, que ocupava desde novembro de 1991 a cadeira de número 36 e morreu no dia 22 de março.

A rigor, a sucessão de um imortal só é aberta após a chamada “Sessão da Saudade”, em honra do finado, ponto de largada para a inscrição de candidaturas. A partir de então, é contado um prazo de 30 dias, findo o qual abre-se um período de 60 dias para a realização da eleição. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é desde já o virtual ocupante da cadeira recém-desocupada. Contando com o apoio da ampla maioria dos acadêmicos, ele teve sua candidatura oficializada no mesmo dia da Sessão da Saudade de Scantimburgo.

A verdade é que muitas vezes os interessados não esperam sequer as exéquias acadêmicas para sair em campanha, de olho nos votos secretos dos 39 imortais vivos. Em 2010, a cadeira do bibliófilo José Mindlin começou a ser cobiçada abertamente no dia de sua morte, com telefonemas e mensagens eletrônicas dos candidatos aos acadêmicos. A eleição foi vencida pelo diplomata, poeta e tradutor pernambucano Geraldo Holanda Cavalcanti, secundado de longe por Eros Grau, que era ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

A sucessão anterior à de Scantimburgo foi a do poeta alagoano Lêdo Ivo, ocupante da cadeira de número 10, para a qual foi escolhida a jornalista e escritora carioca Rosiska Darcy de Oliveira. Ela venceu uma eleição disputada, na qual concorreram 15 candidatos, entre eles os poetas Antonio Cícero e Marcus Accioly – segundo e terceiro colocados – e a historiadora Mary Del Priore, que ficou em quarto lugar.

A vontade de envergar o fardão, todavia, não é unanimidade no mundo da cultura. Convocado por imortais amigos, o consagrado poeta maranhense Ferreira Gullar declinou, embora sua vitória fosse dada como certa. “Não tenho nada contra a Academia, tenho muitas amizades lá, mas não é minha praia”, desconversou Gullar.

O mineiro Carlos Drummond de Andrade também se revelou avesso à ideia de ingressar na entidade. Nunca lançou seu nome, assim como a escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira. Do outro lado, no time dos que tentaram e não conseguiram ser admitidos na casa há nomes de peso no mundo literário, a exemplo do paulista Monteiro Lobato.

As campanhas em busca de um lugar na ABL têm início com a corte e, por fim, o “noivado”, quando o pretendente demonstra estar à altura de virar um imortal. Além de ter assinado obra literária ou não, é preciso que o pré-candidato frequente as atividades abertas da casa e se torne conhecido dos acadêmicos mais atuantes – tudo com elegância e discrição, porque as campanhas espalhafatosas não são bem vistas. O jornalista Merval Pereira, eleito em 2011 e mais conhecido por suas análises políticas que pela obra ficcional, foi um dos que, discretamente, não fugiram à regra do “noivado”, tendo lançado seu livro O Lulismo no Poder, de artigos políticos, na ABL, em setembro de 2010.

A imortalidade foi franqueada pela ABL, mais de uma vez, a candidatos com currículos controvertidos. Em 1931, na sucessão do escritor maranhense Graça Aranha, a Academia elegeu o aviador Alberto Santos-Dumont, autor de dois livros sobre temas aeronáuticos. Em 1941, na ditadura do Estado Novo, a condição de imortal foi conferida ao presidente Getúlio Vargas, que assinara um livro com discursos. Em 1990, a vez foi do mineiro Ivo Pitanguy, cirurgião plástico que escrevera sobre seu ofício e sobre o Rio e as cidades fluminenses de Angra dos Reis e Paraty. Outro caso do gênero, em 1993, brindou com o fardão o empresário Roberto Marinho, que lançara um ano antes seu único livro, uma coletânea de artigos jornalísticos.

Escolhas desse tipo levaram o dramaturgo e escritor Guilherme Figueiredo a expor os bastidores das campanhas na ABL no livro As Excelências ou Como Entrar para a Academia, de 1964. Dono de obra vasta e de reconhecido valor, Figueiredo perdeu para o médico piauiense Deolindo Couto, autor de tratados de medicina e de três ensaios literários. No livro, o derrotado conta, crítico, a via-crúcis de sua candidatura à vaga do poeta e jurista Adelmar Tavares, morto em junho de 1963: “... telegrama a cada sobrevivente, comunicando a decisão, e visita de solicitação de votos, com hora previamente marcada, com o propósito de fazer com que nossas obras (que geralmente não leram) cheguem até eles, se possível completas”.

Guilherme Figueiredo dedicou As Excelências à memória de grandes nomes que não entraram na ABL – entre eles, o historiador cearense Capistrano de Abreu, o escritor carioca Lima Barreto, o romancista, crítico da cultura e poeta paulista Mário de Andrade, o poeta alagoano Jorge de Lima e o escritor mineiro Aníbal Machado. A exemplo de Clarice, Drummond, do próprio Figueiredo, Gullar e Lobato, os homenageados no livro são prova de que o caminho rumo a um lugar na posteridade nem sempre passa pela Academia.