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Sambistas da velha guarda
Por: HERBERT CARVALHO
Formigão e Jamelão. Só mesmo dois cariocas da gema, sambistas do asfalto e de morros outrora livres de traficantes e milícias, poderiam ostentar apelidos assim brejeiros. Também conhecido como “Senhor Samba” e “O Cantor das Mil e Uma Fãs”, Cyro Monteiro (1913-1973) era magro o suficiente no começo de sua carreira, na década de 1930, para que o jornalista e compositor Eratóstenes Frazão (autor de Cordão dos Puxa-Sacos) espalhasse nas rodas boêmias o apodo “Formigão”, que pegou entre os amigos, embora não tenha se fixado para o público. O contrário ocorreu com José Bispo Clementino dos Santos (1913-2008), que ninguém jamais reconheceria por esse nome escrito na certidão de nascimento e sim pela alcunha “Jamelão”, derivada da árvore de fruto escuro e doce, que imortalizaria o maior intérprete de sambas-enredo da história do Rio de Janeiro.
Nascidos há cem anos, ambos representam dois pilares fundamentais na construção do edifício da música popular brasileira ao longo do século passado, que nos remete às gafieiras e sambas-canção hoje banidos do ambiente urbano e dos meios de comunicação, preservados apenas na memória de saudosistas ou por meio de alguns poucos registros sonoros e iconográficos. Recordar a capacidade de modular a voz e improvisar, característica de Cyro Monteiro, somada ao timbre metálico, ao mesmo tempo cortante e cálido, de Jamelão, significa recuperar, por meio de suas trajetórias (cruzadas em vários aspectos) um patrimônio cultural que merece ser mais conhecido e preservado.
Pedras Preciosas
O subúrbio de Rocha Miranda, na zona norte carioca, antes de receber o nome da família que o loteou, foi conhecido como o Bairro das Pedras Preciosas, que em outras eras teriam sido encontradas em um rio da região. Em contraste com a toponímia de ruas chamadas de Diamantes, Topázios, Turmalinas e Rubis, ali sempre viveram famílias no máximo remediadas, como a do capitão Monteiro, que além de ser do exército era também dentista e destacava-se por uma mania: dar aos filhos, em número de nove, nomes começados com a letra “C”.
O quarto deles por ordem cronológica tornou-se homônimo do general fundador do Império Persa. A família de Cyro Monteiro, entretanto, tinha muito mais inclinações musicais do que militares. A grande referência era o tio Romualdo Peixoto (1901-1954), o famoso Nonô, que também influenciou outros sobrinhos, como o cantor Cauby e o trompetista Araken Peixoto, primos de Formigão. Pianista autodidata, compositor e arranjador, Romualdo foi lembrado por Vinicius de Moraes no famoso Samba da Bênção, no qual o poetinha, ao mencionar Cyro Monteiro, faz questão de frisar: “Você, sobrinho de Nonô”.
Integrante entre os anos 1920 e 1950 de orquestras mantidas por rádios e gravadoras, Nonô acompanhou os grandes cantores de seu tempo, entre os quais Francisco Alves, Mário Reis e Sílvio Caldas. É citado no Almanaque do Samba, de André Diniz (Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006), como o criador de uma escola na música popular brasileira.
Embora tivesse muito orgulho de Rocha Miranda (bairro do qual se proclamava símbolo), Cyro não foi criado ali, mas em Niterói (RJ), onde também morava o tio agraciado pelo apresentador César Ladeira com o título de “Chopin do Samba”. Estudou no Grupo Escolar Alberto Brandão, na Escola Profissional Washington Luís e no Instituto de Humanidades, mas o que gostava mesmo de fazer era cantar nas festas e rodas de amigos em dueto com seu irmão Carino. Eles imitavam uma das duplas de grande sucesso da época, Sílvio Caldas e Luís Barbosa. Quando este último – que foi considerado pelo pesquisador Sérgio Cabral o inventor do breque no samba e tinha por hábito marcar o ritmo no chapéu de palha – abandonou o parceiro, Cyro foi escalado para substituí-lo, pois conhecia bem o repertório.
Assim, em 1933, com apenas 20 anos de idade, ele estreou no “Programa Casé”, da Rádio Philips, ao lado daquele que passaria à história do nosso cancioneiro como o “Caboclinho Querido” e o “Seresteiro do Brasil”. Autorizado pelo governo de Getúlio Vargas a transmitir reclames de produtos e serviços, o rádio se firmava então como o grande veículo de comunicação de massa que integraria o país de dimensões continentais, possibilitando o surgimento dos primeiros grandes ídolos nacionais: os cantores e cantoras do rádio, que se apresentavam em programas ao vivo, como o de Ademar Casé (avô da atriz e apresentadora Regina Casé). A carreira de Cyro Monteiro, a partir daí, seguiria em ritmo ascendente pelas ondas do rádio – e depois da TV –, alternando gravações e apresentações em dupla com as performances individuais, nas quais introduziu um objeto minúsculo, que em suas mãos viraria instrumento de batucada e marca registrada: a caixinha de fósforos.
Voz aberta
Filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes, Jamelão também nasceu na zona norte do Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Ali, a realeza sediada na Quinta da Boa Vista emprestou sua coroa para figurar no pavilhão da escola de samba criada no vizinho morro da Mangueira, a mesma Estação Primeira da Estrada de Ferro Central do Brasil cujos sambas-enredo ele defenderia na avenida durante mais de meio século.
Antes disso, porém, sua vida foi igual à de qualquer garoto negro e pobre, obrigado a todo tipo de expediente para sobreviver. Aos nove anos o moleque Saruê – seu primeiro apelido – perambulou pelos subúrbios cariocas como engraxate e vendedor de jornais, para ajudar no sustento da família. “Acho que aprendi a ter essa voz aberta de tanto gritar, vendendo os jornais”, contou em depoimento ao Museu da Imagem e do Som. Ele ainda seria operário tecelão na fábrica Confiança, ponta-esquerda do Piedade Futebol Clube e – mesmo quando já era um cantor conhecido, mas mal remunerado – escrivão de polícia. Nesse cargo, pelo qual se aposentou, adquiriu o hábito de andar com uma caixa de elásticos no bolso e alguns deles entre os dedos. Dizia, com ironia, que era para utilizá-los quando ganhasse bastante dinheiro.
No mundo do samba, foi introduzido na Mangueira – então recém-fundada pelos compositores Angenor de Oliveira, o Cartola, e Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça – por Lauro dos Santos, o Gradim, também sambista e compositor “imerecidamente esquecido”, de acordo com o jornalista e escritor João Máximo. Aos 15 anos, Jamelão dizia bem no pé e se garantia no cavaquinho e no tamborim, o que lhe valeu o ingresso na bateria da verde e rosa.
Após uma tentativa de cantar em rádio, frustrada pelo gongo numa audição de calouros, descobriu seu caminho cantando nas gafieiras Fogão, Cigarra, Tupi e Jardim do Méier e nos dancings Brasil, Eldorado e Avenida, onde, na ausência de microfones, “sua garganta competia em pé de igualdade com a estridência dos metais”, segundo o crítico musical Tárik de Souza.
Influenciado pelo estilo de cantar do coetâneo e copersonagem deste registro – o já então famoso Cyro Monteiro –, consegue uma reviravolta em 1945 ao vencer o grande prêmio do programa de Ary Barroso, “Calouros em Desfile”, interpretando Ai, Que Saudades da Amélia (de Ataulfo Alves e Mário Lago). A visibilidade proporcionada por essa conquista lhe garante contratos em rádios e o posto de crooner na famosa Orquestra Tabajara, do maestro Severino Araújo, com a qual excursionaria pela Europa na década de 1950. Na mesma posição, cantou também com as orquestras de Luís Americano e de Napoleão Tavares.
“Sou intérprete”
Ainda em 1949, ano decisivo para ele, Jamelão grava seus primeiros discos em 78 rotações pelo selo Odeon, substitui o “Rei da Voz” Francisco Alves em uma série de shows no Teatro João Caetano e assume o cargo que monopolizaria até o fim da vida, de intérprete dos sambas-enredo da Estação Primeira. Ou “puxador”, designação mais comum no universo do samba (em razão da tarefa de contagiar os componentes da escola para que cantem durante o desfile), mas sempre repudiada com veemência por Jamelão, que nele despertava o instinto do policial: “Sou intérprete. Puxador é quem fuma maconha ou rouba carro”, vociferava.
Cyro Monteiro, por sua vez, já participava em 1937, ao lado de astros como Carmen Miranda e Mário Reis, de todos os programas das rádios cariocas. Em um deles, o “Picolino”, de Barbosa Júnior, lançou seu primeiro grande sucesso, gravado a seguir, que o projetaria nacionalmente e também ao autor da melodia, o gaúcho então desconhecido Lupicínio Rodrigues. Se Acaso Você Chegasse, considerado um dos melhores sambas de todos os tempos, ainda seria responsável, ao ser regravado em 1959, por destacar a potência da voz e o estilo de Elza Soares.
No ano seguinte, casa-se com a cantora Odete Amaral, mãe de seu filho Cyro Monteiro Júnior. Até a separação, em 1949, ambos formariam um casal dos mais famosos da era do rádio, como antes haviam sido Gilda de Abreu e Vicente Celestino e depois seriam Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Nesse tempo, também se apresenta com o cantor Dilermando Pinheiro em dupla conhecida como 11, em razão da magreza e irreverência dos dois. Na década de 1960 reeditaram a parceria em show no Teatro Opinião, mas o número que dava nome ao duo mudaria para 10, visto que Cyro se tornara “redondinho”.
Na década de 1940 é novamente responsável pelo lançamento de outro grande nome da música popular brasileira, o compositor Geraldo Pereira, um mineiro nascido em Juiz de Fora, mas criado no morro da Mangueira. Autor de sambas que influenciariam a Bossa Nova, como Bolinha de Papel, seu primeiro grande sucesso foi Falsa Baiana, repleto de inovações assim descritas por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no livro A Canção no Tempo: “A originalidade melódica, o deslocamento da acentuação rítmica (que causaria forte impressão em João Gilberto) e o ritmo interno das construções verbais, independentes da melodia. Tudo isso seria valorizado na interpretação inconfundível de seu lançador, o grande sambista Cyro Monteiro”.
O cantor acompanharia toda a breve carreira de Geraldo Pereira (morto aos 37 anos após uma briga com o capoeirista Madame Satã), gravaria seu último samba (Escurinho) e ainda pagaria o enterro do compositor. Gestos como esse caracterizavam sua proverbial generosidade, que incluía andar pela Rua Silveira Martins, no bairro do Catete, onde morava, com balas em um dos bolsos, para as crianças, e algum dinheiro a mais no outro, para emprestar aos amigos.
“Cyro tem o dom e a vocação da amizade, ele é um grande abraço em toda a humanidade”, dizia Vinicius de Moraes, que em 1956 o convidou para uma incursão teatral como ator, na peça Orfeu da Conceição (fazia o papel de Apolo, pai de Orfeu). Embora em escala reduzida, arriscou-se também na composição: seu maior sucesso como autor foi Madame Fulano de Tal, de 1958, em parceria com Dias da Cruz.
Nos anos 1960, Cyro Monteiro e sua caixinha de fósforos tornaram-se presença constante na televisão, inicialmente no programa “Bossaudade”, da TV Record, apresentado pela cantora Elizeth Cardoso – a parceria com a “divina” renderia alguns LPs com os mais famosos duetos que cantaram juntos. Na mesma emissora protagonizou, ao lado de Elis Regina, alguns dos melhores momentos de outro programa antológico, “O Fino da Bossa”. Ainda no final dessa década – já com a saúde debilitada por anos de cigarro, bebida e boemia – integrou o elenco do espetáculo “Mudando de Conversa”, com Clementina de Jesus e Nora Ney, no Teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro.
Na carreira de Jamelão, Lupicínio Rodrigues exerceu uma influência ainda maior que na de Cyro: o cancioneiro dor de cotovelo do compositor gaúcho encontraria um privilegiado canal de expressão no vozeirão enxuto e sem vibratos que imortalizou, em dois LPs (Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues e Recantando Mágoas – Lupi, a Dor e Eu), canções como Vingança e Nervos de Aço. Músicas de versos tristes, mas apropriados para um cantor negro que se sentia discriminado – “já fui deixado de lado por outros caras só porque eles eram brancos” – e ao ser questionado porque vivia de cara amarrada, rebatia: “Rir de quê?”
“Disso tudo nada ficará”
Campeão do carnaval pela Mangueira em sua estreia como intérprete de samba-enredo em 1949, Jamelão liderou a escola nos 12 títulos obtidos nas décadas seguintes, inclusive no último deles, em 2002. Viveu momentos de glória, como ao entoar O Mundo Encantado de Monteiro Lobato, responsável pela vitória em 1967, mas também acompanhou, com amargura, a descaracterização dos desfiles. “O samba autêntico está em extinção, com a conivência dos brasileiros. Quem manda no carnaval são estrangeiros, que pagam a peso de ouro para ver um show que poderia acontecer num teatro qualquer. Pior é a qualidade das músicas, tudo na base do mesmo acompanhamento, as pessoas não conseguem distinguir uma composição da outra. Disso tudo nada ficará”, disse profeticamente, em 1968, ao jornal “O Estado de S. Paulo”, em rara entrevista, pois era avesso ao contato com jornalistas.
Em 1990, cansado e enfrentando problemas de pressão, chegou a anunciar que aquele seria seu último carnaval, mas no ano seguinte lá estava ele no mesmo sambódromo que após sua morte lhe dedicou justa homenagem, ao trazer gravado no chão da Sapucaí, na área reservada à concentração das alas, seu nome como patrono do Espaço Jamelão. Em seguida dividiu, de maneira inédita, com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia a interpretação do samba-enredo Atrás da Verde-e-Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu, dedicado aos baianos tropicalistas. Já no século 21, às vésperas de completar 90 anos, obteve, finalmente, dois gestos de reconhecimento: foi eleito presidente de honra da Mangueira e recebeu, das mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso, a medalha da Ordem do Mérito Cultural. Para regalo dos fotógrafos presentes à cerimônia, logo depois caiu placidamente no sono, em pleno Palácio do Planalto.
Pouco antes do carnaval de 2007, Jamelão sofreu um acidente vascular cerebral e não pôde gravar o samba da Mangueira para o CD oficial do grupo especial. Isso o poupou de ver a escola que tantas vezes exaltara com o verso de Mangueira, Teu Cenário é Uma Beleza chegar ao fundo do poço: nesse ano a diretoria proibiu a cantora e mangueirense histórica Beth Carvalho de desfilar. Em 2008, quando ele morreu, aos 95 anos, a Mangueira ignorou o centenário de Cartola e fechou um acordo com a prefeitura do Recife, para um enredo patrocinado. Neste ano, a história se repetiu: em vez de cantar na avenida a saga daquele que tanto contribuiu para que a escola se tornasse a mais amada e cantada de todas, os verde-e-rosa renderam-se às verbas da prefeitura de Cuiabá e, mesmo assim, amargaram um medíocre 8º lugar. O centenário do negro Jamelão só não passou em branco porque a Unidos do Jacarezinho levou para o sambódromo, na segunda divisão das escolas, o enredo Puxador, Não... Intérprete!
Ao contrário do longevo Jamelão, Cyro Monteiro morreu com apenas 60 anos, em 1973. A causa foi cirrose, de acordo com o paulista continuador do samba sincopado, Germano Mathias, que garante ter ouvido do amigo, mais de uma vez, a seguinte advertência: “Anda depressa, porque estou atrasado três conhaques”. Também diversamente de Jamelão, torcedor moderado do Vasco da Gama, o Formigão era um flamenguista doente, e célebre ficou no meio musical sua simbólica peleja futebolística com Chico Buarque de Hollanda, fiel apoiador do Fluminense. Ao nascer a primeira filha do compositor com a atriz Marieta Severo, Cyro mandou de presente para o bebê uma camisa rubro-negra. Recebeu em resposta um samba intitulado Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita para Virar Casaca de Neném, no qual Chico agradece o mimo para a petiz, mas registra que “um pano rubro-negro é presente de grego”. A picardia de Cyro Monteiro manifestou-se até na proximidade da hora fatal. Ele oscilava entre a realidade e o coma quando os médicos, à guisa de teste de lucidez, perguntaram seu nome. “Roberto Carlos” – foi a resposta, acompanhada por um último sorriso sarcástico.