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Entre o riso e a farpa
Por: CECILIA PRADA
Festejamos neste ano o centenário de nascimento do escritor Rubem Braga (1913-1990), que passou à posteridade como um dos mais prolíficos e interessantes cronistas desde Machado de Assis. Como diz o crítico Afrânio Coutinho: “A marca registrada dos textos de Rubem Braga é a crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza”.
Relembrar sua personalidade e seus textos leva-nos, antes de mais nada, a algumas considerações sobre o gênero literário que privilegiou, cuja cotação e frequência teve flutuações de extrema amplitude no decurso de nossa história literária, desaparecido que esteve durante o tempo da ditadura militar por motivos óbvios (não se sabe nunca o que um cronista vai escrever...), para voltar ao primeiro plano na atualidade, personalizando-se mesmo, inclusive na crítica americana, como “um gênero bem brasileiro”. Na opinião de Massaud Moisés, autor de obras de história e teoria da literatura, a crônica moderna, que nos chegou por influência gaulesa, através do feuilleton do início do século 19, “naturalizou-se brasileira, ou melhor, como um produto genuinamente carioca, pela quantidade, constância e qualidade de seus cultores”.
O que é “crônica”? O próprio Rubem costumava dizer: “É tudo o que não é agudo”. O mestre Antonio Candido, por sua vez, definiu-a bem, dizendo que é “a vida vista ao rés do chão”, enquanto Agrippino Grieco, um crítico que passaria à história pelo fel destilado em suas avaliações, desprezava os cronistas como meros “nadadores de piscina”. A grande voga que o gênero tem hoje obriga os críticos a uma reavaliação de padrões que leve em conta suas várias espécies, mas alguns critérios básicos permanecem.
Na Antiguidade e na Idade Média, o cronista (que justamente tem seu nome derivado do grego “chronos”, “tempo”), era aquele que registrava os fatos históricos de sua época, tal como se processavam – para os historiadores, mais tarde, tornou-se obrigatória a reflexão sobre os acontecimentos, o estudo de suas causas e de suas consequências. Como existe hoje, porém, a “crônica” está ligada à imprensa, surgiu com o jornal, a revista periódica, a partir de 1799, podendo incluir desde material poético até humorístico e satírico, pequenos contos e divagações intimistas.
Dependente do tempo certo e imediato para publicar um fato ou suas ideias sobre ele, o cronista está relacionado mais diretamente com a vida, com o local onde habita. Não faz grandes voos, deve conhecer bem o seu quintal – isso parece ser tudo o que pedem dele. Imprescindível é entregar-se ao público, tornar-se próximo a ele, estar presente e disponível, em toda a sua sinceridade. É como se tivesse uma paradoxal obrigatoriedade de ser espontâneo – o que lhe dá também a permissão de mostrar-se até mesmo contraditório, multifacetado, capaz de erros e de correções, mais do que qualquer outro tipo de escritor ou jornalista.
Diz bem o crítico Eduardo Portella: “A estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambiguidade é sua lei [...]. Acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário”. No entanto, para que o cronista se desenvolva em exercício cotidiano, há necessidade de outro fator imprescindível: o veículo disponível. Quando um jornal contrata ou permite, mesmo sem remuneração, que um escritor venha pontualmente tentar fisgar os leitores com sua verve e sua disponibilidade, é como se fornecesse um atestado de confiança nele, em seus méritos, em suas opiniões, em seu equilíbrio. Ora, no caso de pelo menos dois escritores que antes de mais nada foram grandes e constantes jornalistas – Rubem Braga e Nelson Rodrigues –, isso lhes foi proporcionado por privilégio de nascença. Provindos ambos de famílias de proprietários de jornais, nasceram já no centro da arena profissional, sentindo-se amplamente autorizados a fazer dela o que queriam.
“Carta do Rio”
Nascido em Cachoeiro de Itapemirim (ES) em 13 de janeiro de 1913, Rubem Braga foi o caçula caprichoso e mimado dos homens da família Braga, e assim se manteve até o fim, olhando a vida com uma arrogância um tanto incômoda para os outros, sob a moldura inconfundível de suas sobrancelhas grossas e emendadas, selvagens. Mas teve também a felicidade de poder trazer em si, a vida toda, aquela “Casa dos Braga” borbulhante de vida e afeto onde viveram em harmonia sete irmãos remanescentes de uma prole de 12.
Uma briga com o professor de matemática, que o chamara de burro, fez o garoto dizer à família que ia abandonar a escola, de maneira irrevogável. O pai o mandou então a Niterói, para concluir o ginásio no colégio dos padres salesianos. Nessa época, aos 15 anos apenas, Rubem tem a grande oportunidade de iniciar-se em sua função de cronista: em 1928, seus irmãos mais velhos, Armando e Jerônimo, fundam um jornal em Cachoeiro, o “Correio do Sul”, que se manteria sólido por ser financiado pelo Partido Republicano do Espírito Santo.
Em uma detalhada, extensa e muito bem escrita biografia, Rubem Braga, um Cigano Fazendeiro do Ar (Globo, 2007), outro cachoeirense, Marco Antonio de Carvalho, reproduz trechos dessas primeiras crônicas, sistematizadas na coluna que logo depois, ao mudar-se o missivista para a capital da República, passaria a chamar-se “Carta do Rio”: é uma prosa segura, sóbria, de quem sabe escolher assuntos e informações e tratá-los com aquela ironia, aquela graça de estilo que se tornariam sua marca registrada. Falando, por exemplo, das “impressionantes novidades tecnológicas” que estavam para chegar dos Estados Unidos: “... É o cinema falado, meus senhores. Vamos ouvir o pontapé recebido pelo senhor Carlitos, o tiro dado pelo coronel Buck Jones, os gritos da senhora Greta Garbo e os monumentais suspiros de dona Pola Negri. A arte muda vai escancarar a boca e berrar”. Não hesita em satirizar os fatos históricos da nacionalidade, como a Independência, que classifica como “a mais genial das maluqueiras do Imperador Maluco”, da qual nascera o Brasil, “um caboclinho assanhado [...], uma pérola de menino, tem como aio um senhor muito sério, de bigode e cavanhaque (Washington Luís), que gosta de dar-lhe remédio para as artérias, e que, afinal de contas, o menino acha muito camarada”.
Só que, como todo adolescente que se acha o inaugurador de um mundo absolutamente novo e somente seu, não hesita Rubem em proclamar convicções políticas, expressar suas sugestões para o progresso do país e mesmo do planeta. Revela-se assim partidário entusiasta do famoso queixudo Benito Mussolini, e de seu filho Vittorio, que na época comandava a corporação paramilitar dos escoteiros italianos: “... filho do presidente (sic) Mussolini, esse admirável tipo de homem que se propôs a fazer apenas as coisas mais eminentemente úteis ao seu país!”
Dois anos mais tarde, com a Revolução de 30, que instalaria no poder durante os 15 anos seguintes o governo Vargas, o jovem jornalista já teria mudado de opinião completamente a respeito de governos autoritários, dos quais – fossem de esquerda ou de direita – seria o mais aguerrido e constante adversário, pelo resto de sua vida. No estado do Espírito Santo, instalou-se o pânico, a fuga de famílias diante da “tropa invasora” que vinha do sul. Em Cachoeiro, os Braga tiveram de escapar de madrugada para sua casa de veraneio, na praia de Marataízes. E, diz o biógrafo de Rubem, “a partir de então, a família desmoronou”, com a dispersão dos filhos, a perda do cartório que tinham, o fechamento temporário do jornal – que voltaria a funcionar em 1931, com “novos princípios políticos” e silêncio absoluto sobre seu empastelamento anterior, quando a redação fora invadida pelos getulistas, em busca daquele perigoso cronista, Rubem Braga, felizmente ausente. Nessa época, Rubem já iniciara os estudos de direito no Rio, mas, sofrendo muito com o clima político repressivo, transferiu-se logo para a faculdade de Belo Horizonte, onde se formaria, sem nunca, porém, exercer a profissão de advogado.
Em março de 1932, Rubem substituiria no “Diário da Tarde”, de Belo Horizonte, seu irmão Newton Braga, um ano e meio mais velho, e que preferiu naquela época retornar a Cachoeiro para assumir o jornal da família, no lugar de Armando e Jerônimo. Nos três anos que passara na capital mineira, Newton estabelecera uma grande rede de amizades entre a intelectualidade, na qual também introduzira o irmão caçula. Mas Rubem não estava acostumado a trabalhar em uma redação. Anos mais tarde, Newton Prates, editor do “Diário”, contaria: “A turma da casa não topou muito o jeitão daquele camarada de ar agreste, mal-ajambrado, sobrancelhas cerradas, rosto fechado, arisco, desconfiado”. A má impressão dos colegas passou logo, porém, quando o rapaz tirou do bolso meia dúzia de tiras escritas, amarfanhadas, e passou-as para que o secretário de redação as lesse – depois de trocarem impressões reservadamente, o secretário e o editor-chefe foram procurar o diretor do jornal para darem sua opinião: “Está nascendo um sujeito novo no jornal, no Brasil. Escreve diferente de todo mundo e escreve muito bem. Vai longe, este rapaz”.
Um mês mais tarde, o jovem já acumulava o trabalho em dois jornais – escrevendo também uma crônica diária para “O Estado de Minas”, outro veículo da cadeia de Assis Chateaubriand. Afonso Arinos de Melo Franco, que era na época editor da publicação, lembraria mais tarde Rubem como “magro e, já então, silencioso, caçoísta e meio casmurro”. E diz que o jornal, de perfil sério, “tinha na sua crônica diária, leve, aérea, colorida, franjada sempre de ironia e ternura, às vezes tornadas sarcasmo e revolta, uma espécie de janela aberta sobre a vida natural e livre”.
Mas uma outra personalidade, agressivamente política, capaz de atitudes extremas, ditava os passos do escritor-cronista que desde menino dizia que gostaria de passar a vida contemplando paisagens de sua terra natal, degustando frutas, ligado à natureza e à vida simples, às belas mulheres e à arte – em crônica de 21 de abril de 1932, escreveu, ao “Brasil dos paradoxos”: “Você faz anos hoje. Viva você, viva a Pátria, viva eu também, eu fraco, eu lírico, eu brasileiro e humano”.
“O Brasil não existe”
Por trás daquele “velho Braga” de 19 anos – era assim que já se referia a si próprio – estava um guerreiro disposto mais do que ninguém a se meter em encrenca, naqueles primeiros meses de 1932, na luta contra seu grande inimigo, Getúlio Vargas. Como repórter político, foi sempre um grande provocador – seu biógrafo Marco Antonio de Carvalho descreve com minúcias como, enviado a Ouro Preto para entrevistar o ministro da Marinha, que estava em viagem oficial, Rubem conseguiu irritar ao máximo toda a comitiva, publicando uma reportagem impiedosa, que por pouco não lhe valeu a prisão.
Nas crônicas, conclama o povo a aderir à Revolução Constitucionalista, a “Guerra Paulista”, desencadeada em julho de 1932. São Paulo é para ele “o grande estado, bode expiatório de todos os pecados e depósito de todas as mazelas da esfinge” – isto é, da Revolução de Outubro de 1930. Como jornal de Chateaubriand, “O Estado de Minas” endossa seu ponto de vista, sempre que a censura permite. Logo Rubem é enviado à fronteira sul-mineira, para cobrir a batalha entre legalistas e paulistas, e vê-se colhido em situação singular: em Passa Quatro é alojado em uma companhia legalista, mas todos sabem que é correspondente de um jornal “inimigo”. Contemporiza como pode, mas logo a situação explode e ele recebe voz de prisão – da qual se salva pela intercessão de um militar amigo. Chegou a dormir uma noite na cadeia de Divinópolis, e como ele próprio relataria mais tarde, envolveu-se em algumas confusões, fazendo com que o próprio jornal o chamasse de volta a Belo Horizonte. Foi logo publicando uma crônica em que dizia: “Vim lá da frente, onde os irmãos estão se matando. [...] Trago no peito um segredo que só direi a você: o Brasil não existe. O matraquear e o ribombo das máquinas da morte ecoavam nas serras e invadiam as matas de onde todos os pássaros haviam fugido. E eu não ouvi, nunca, a voz do Brasil. O Brasil está mudo, está morto”.
Nos dez anos seguintes, Rubem teria uma vida instável, sendo obrigado a mudar de residência e de trabalho muitas vezes, com episódios de prisão e a obrigação de escrever sob a proteção de pseudônimos. Como muitos outros profissionais e intelectuais da época, viveu a polarização das correntes ideológicas esquerda/direita – mas não sucumbiu a apelos de nenhuma delas, pois, em sua opinião, integralistas e comunistas formavam agrupamentos de gente absolutamente destituída de senso de humor. Manteve sua independência, como um autêntico democrata que era, incapaz de aceitar o autoritarismo, de onde quer que viesse. Em 1933 teve de deixar Minas por ter escrito uma crônica irreverente contra a imagem da padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora de Lourdes – a Igreja desencadeou feroz campanha contra os “Diabos Assalariados” de Chateaubriand. Viveu até 1935 em São Paulo, e em temporadas no Rio. Enturmou-se logo com Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, Antônio de Alcântara Machado, Geraldo Ferraz, Pagu, Monteiro Lobato – mas Mário de Andrade lhe devotaria sempre antipatia. E Alfredo Ellis Junior, defensor do separatismo paulista, odiava as zombarias habituais do cronista sobre valores paulistanos, como os bandeirantes, e chegou a pedir que fosse expulso do estado.
Aproximando-se às vezes dos comunistas em sua luta contra o integralismo e o getulismo, e também por estar apaixonado pela comunista militante Zora Seljan (com quem se casaria em 1936 e teria seu único filho, Roberto), Rubem nunca aceitou a atitude de desprezo que o Partido Comunista mantinha contra os intelectuais, e as tentativas de censura que os “camaradas” faziam mesmo em relação a escritores como Graciliano Ramos. Enquanto isso, do outro lado, estabelecia-se o rígido controle dos líderes católicos retrógrados, como Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção, em um tempo bem anterior ao relativismo da Teologia da Libertação.
Narrativa popular
A participação do Brasil na Segunda Grande Guerra foi marcada pela ambiguidade do governo Vargas, que se mostrara desde seu início francamente simpatizante aos países do Eixo. Ele só entrou no conflito, em 1942, pressionado tanto pelos Estados Unidos como por parte da população – e, em consequência disso, a própria história da Força Expedicionária Brasileira (FEB) ficou meio obscurecida, pouco conhecida e celebrada. Há unanimidade, tanto nos depoimentos guardados nos arquivos do exército quanto nos poucos livros que temos de participantes (ex-combatentes, como Boris Schnaiderman, ou correspondentes de guerra, como Joel Silveira e Rubem Braga), sobre o descaso com o preparo das tropas (os pracinhas), a falta de estrutura, inclusive com deficiência de equipamentos e de vestuário adequado.
Rubem empenhou-se muito para ir com a FEB para a Itália, mas só conseguiu autorização para embarcar com o segundo escalão dos combatentes, em setembro de 1944, enviado pelo “Diário Carioca”. Isso o tornou um correspondente bem diferente dos outros – ia atrasado, para testemunhar o fim de uma guerra, e era o único que não disporia das facilidades do telégrafo – devia limitar-se à correspondência por via aérea. O meio, porém, parecia até mais adequado a seus propósitos, que eram, como declara no prefácio de seu livro Crônicas de Guerra, “não fazer uma história que interessasse aos técnicos militares, mas uma narrativa popular, honesta e simples, da vida e dos feitos dos nossos homens na Itália. Uma espécie de ‘cronicão’ da FEB, à boa moda portuguesa antiga”.
Nos sete meses seguintes escreveria e publicaria seu minucioso diário de campanha, do momento em que entra no navio-transporte americano General Mann, no Rio, até aquele em que, em abril de 1945, após ter sido ferido levemente em uma das últimas investidas da tropa alemã, é dispensado do hospital e assiste, na aldeia italiana de Vignola, à rendição de um general alemão e sua tropa ao quartel-general brasileiro. São 500 páginas do melhor estilo literário, realistas sempre, contundentes às vezes, mas embebidas de emoção poética, povoadas de tipos humanos, encaixadas, desta vez, naquele “tom maior”, épico, que torna o livro um verdadeiro romance sobre a guerra. Consciente de seu valor, mas modesto e formado segundo padrões literários mais rigorosos que os atuais, Rubem nunca se preocupou em classificar com rigidez o que escrevia, dizendo-se apenas um “cronista”, isto é, “o homem em quem ninguém repara, e que repara em tudo: eu sou aquele que vai passando e para um momento, e não tem nada com nada e vai embora”.
Mas isso não é verdade: em suas várias atividades, em seu empenho como jornalista, no valor de suas palavras, foi sempre homem de presença marcante, lembrado até hoje pelas gerações sucessivas como um original viajante do mundo, que viveu para anotar o que via, para agregar leitores, para deixar entregue não somente à efemeridade do jornal mas à permanência de seus 22 livros um testemunho original, de valor incalculável, sobre seu meio e seu tempo.