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Os dilemas da indústria de base
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
Viga mestra da economia industrial aqui e no resto do mundo, a chamada indústria de base – que alguns especialistas preferem chamar de indústria pesada ou de bens intermediários – está com alguns de seus segmentos sendo lentamente corroídos pelo processo de desindustrialização em curso no Brasil. Bastante amplo, o setor abriga desde produtores de bens de capital (máquinas e equipamentos de diversos tipos) até companhias siderúrgicas, fabricantes de material ferroviário e de cimento, e indústrias químicas extrativistas.
Os segmentos mais dedicados ao atendimento das indústrias de bens de consumo – como metalúrgico, químico e o petroquímico – entretanto, são os que mais sofrem com a regressão fabril do país, como, aliás, não poderia deixar de ser dada a dependência que um setor tem do outro.
Em termos globais, a participação da indústria de base como um todo no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, segundo estudo divulgado no último mês de agosto pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), patina hoje em 13,3% ante dos 27,2% de 1985. “É uma regressão assustadora que não pode continuar, principalmente porque estamos tratando de uma indústria que gera 10 milhões de empregos diretos”, advertiu a entidade.
De fato, o atual patamar é o mesmo de 1956, quando o então presidente Juscelino Kubitschek, amparado principalmente pelos investimentos de multinacionais, daria início à industrialização em maior escala ao país a partir de um pequeno parque fabril e de algumas indústrias de base já existentes.
Em 2012, o país cresceu 0,9% (abaixo do esperado), com a indústria se retraindo em 0,8% e a agropecuária – que juntamente com outros segmentos de commodities, como o de mineração de ferro, responde hoje por pouco mais da metade das exportações do país – despencando 2,3%. É o pior desempenho anual do Brasil desde 2009, quando a economia encolheu 0,3%. Em 2011, houve crescimento de 2,7% e, em 2010, de 7,5%.
A quase paralisia se reflete nos investimentos. De acordo com o próprio governo, para manter o crescimento em 4,5% ao ano de forma sustentada, é preciso uma taxa de investimentos de 22% do PIB. Atualmente, essa taxa gira em torno de 18,5%, e não há sinais de que terá fôlego para ir além disso. Entre os industriais, o ânimo não poderia estar mais baixo. De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV), o Índice de Confiança da Indústria (ICI) tem recuado além do que um pessimista poderia imaginar.
Os culpados apontados, tanto pela indústria de transformação, quanto pela indústria de base, são os de sempre: câmbio fora do prumo, juros altos, custos tributários e trabalhistas elevados, infraestrutura carente e uma política industrial incapaz de deter o avanço das importações. Esses fatores negativos seriam, juntamente com a crise internacional, as principais causas das crescentes reduções de produção e demanda, e do adiamento ou suspensão dos investimentos.
Perdendo terreno
Dos setores de base, o de bens de capital é, sem dúvida, o mais acuado, devido aos fornecimentos a praticamente todos os segmentos da indústria para as mais diferentes finalidades. De acordo com Mario Bernardini, diretor de economia e estatística da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), que representa cerca de 4.500 empresas, o setor está sendo devastado não só pela queda de demanda, mas também pela importação direta de máquinas. “Em 2005, cerca de 60% das máquinas e equipamentos vendidos no país eram nacionais e 40% importados, relação invertida em 2010, quando 60% das vendas passaram a ser de importados”, lastima-se Bernardini. “E, no ano passado, esse percentual subiu para 64%”, acrescenta.
Segundo ele, os únicos segmentos que ainda têm mostrado desempenho razoável são aqueles voltados para a agroindústria (com exceção do setor sucroalcooleiro, hoje em grave retração), à fabricação de maquinário para a construção civil e de equipamentos ligados ao consumo de massa (produção de embalagens, por exemplo). Os ramos cuja dependência da indústria de transformação é mais estreita ou mesmo aqueles que atendem os setores de petróleo, gás e mineração – que não estão exatamente travados, mas nos quais os novos investimentos prometidos ainda estão sendo aguardados – vivem momentos de crise. Esse processo de “substituição por importações” no setor de bens de capital também está reverberando na ponta do fornecimento da importante cadeia produtiva, especialmente no campo da siderurgia, que tem nos produtores de máquinas e equipamentos um de seus principais clientes. É claro que, com menos máquinas a serem construídas, a venda de aço cai. É como se os dois segmentos estivessem sendo obrigados a dividir a conta.
De acordo com uma pesquisa da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex), que usou 2010 como ano-base, praticamente a metade (44,8%) das importações brasileiras naquele ano foi de produtos metal mecânicos acabados, que sempre levam aço em sua composição. Nada menos do que 62,7% das exportações da China para o Brasil, naquele período, foram de produtos desse segmento. Isso fez com que o volume de importações indiretas de aço saltasse de 2,6 milhões de toneladas, em 2009, para 4,2 milhões de toneladas, em 2010. Já a compra de chapas ou outros formatos de aço bruto pulou de 2,3 milhões de toneladas para 5,9 milhões de toneladas de um ano para o outro.
Assim, no total, a importação direta e indireta mais do que dobrou no período, chegando a 10,1 milhões de toneladas, pouco menos de um terço da produção siderúrgica anual do Brasil, que está em torno de 35 milhões de toneladas. E o cenário está assim, francamente desfavorável para o setor. Depois de uma ligeira recuperação em 2011, houve um recuo na produção de 1,5% em 2012. E o mercado externo – que sempre foi uma válvula de escape – também não está ajudando. Há excedentes de aço no mundo devido à crise econômica internacional. “Nossa cadeia produtiva está sendo paulatinamente esmagada em todos os seus elos”, aponta Marco Polo de Mello Lopes, presidente executivo do Instituto Aço Brasil (IABr), entidade que representa as siderúrgicas brasileiras. “Estamos perdendo competitividade a olhos vistos, e precisamos sair desta situação”, desabafa.
As encomendas sumiram
Para o professor Wilson Cano, do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e autor do trabalho “A Desindustrialização no Brasil”, o país pode, de fato, ter alguns ramos mais nobres da indústria de base desmantelados, caso o processo em curso assuma a forma de desmonte, por exemplo, no segmento de eletrônicos. “Importamos praticamente tudo nessa área, e o que não importamos, é feita apenas a sua montagem aqui. Chips, por exemplo, nós apenas encapsulamos”, afirma Cano.
O professor da Unicamp entende que o problema vem de longe, desde os anos 1990, quando o país estabilizou sua economia em parte baseada na atração do capital estrangeiro e ingressou como membro fundador na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Foi, portanto, dado vida a uma política macroeconômica definida, e nada foi fruto do acaso. “Essa política implicou na adoção de juros elevados e de um câmbio favorável à entrada de dólares, o que aos poucos acabou por tirar a competitividade da indústria brasileira”, analisa. Ele diz que com a entrada do Brasil na OMC – o país não pôde compensar as perdas com uma política industrial consistente. “O resultado aí está”, salienta o professor.
Na opinião de Cano, o país poderá reverter esta situação somente se tiver claro o que realmente pretende fazer com sua indústria e com a economia em geral. “Mas, infelizmente, o Brasil parece não saber o que quer”, observa, dizendo que as medidas adotadas pelo governo a fim de proteger a indústria, por exemplo, são sempre tópicas, temporárias, fragmentadas e de curto alcance. “Assim, não vamos longe”, profetiza. De fato, o que poderia ser chamada de política industrial brasileira parece errática e feita para favorecer ora um setor, ora outro. E, muitas vezes, as medidas são tão misturadas com objetivos de preservação dos fundamentos macroeconômicos do próprio governo – como o de segurar a inflação – que acabam beneficiando um setor e prejudicando outro.
É o que vem acontecendo, nos últimos anos, com a política de subsídio para a indústria automobilística por meio da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A medida teve a capacidade de permitir às montadoras multiplicar a produção e a venda de carros, que no ano passado cravaram, em 3,3 milhões e 3,8 milhões de unidades, respectivamente. O processo foi ajudado pela manutenção do preço da gasolina e do diesel em patamares artificialmente baixos, com a finalidade de estimular a compra de veículos novos e ao mesmo tempo segurar a inflação.
A decisão contribuiu enormemente, todavia, não apenas para o crescente endividamento da Petrobras, comprometendo sua agenda de investimentos, como levou o setor sucroalcooleiro, cujo principal produto é o combustível alternativo etanol, a uma crise sem precedentes, com reflexos profundos sobre a indústria de base. A consultoria Itaú BBA calculou, em agosto de 2013, que, sem um reajuste imediato na bomba dos postos de abastecimentos, a estatal passaria a desembolsar, R$ 900 milhões por mês na importação daqueles combustíveis.
Empresas-ícone, como a paulista Dedini, viram-se com a carteira de pedidos desse segmento praticamente vazia e às voltas com o aumento da inadimplência. No polo industrial de Sertãozinho, no interior de São Paulo – cuja região é reverenciada como uma das mais importantes do país na produção de açúcar e etanol –, o nível de ociosidade média nas fábricas chegou a 60% no último mês de julho, de acordo com cálculos do Centro Nacional das Indústrias do Setor Sucroenergético e Biocombustíveis (Ceise Br).
“Não há novos pedidos. As indústrias estão apenas trabalhando com reformas e manutenção”, diz Antonio Eduardo Tonielo Filho, presidente da entidade. Com um parque industrial capaz de produzir usinas inteiras, as empresas do setor estabelecidas naquele município vem registrando o fechamento de vagas: somam quase dois mil postos de trabalho a menos em apenas um ano.
O combate à inflação também levou o governo a fazer o anúncio, no mês passado, de uma medida, em tese, altamente prejudicial para a indústria de base voltada para o atendimento dos setores fabris de transformação: a não renovação da proteção alfandegária para cem itens que estavam mais expostos à concorrência de similares importados, e que havia sido adotada em setembro de 2012. Os produtos pertencem principalmente aos setores químico, petroquímico, siderúrgico, de aplicação do alumínio e de máquinas e equipamentos industriais.
Da lista dos bens que tiveram aumento da alíquota, 20 são do setor químico. “Estamos extremamente preocupados. O déficit da nossa balança comercial, que bate recorde todo ano, poderá no corrente exercício atingir US$ 33 bilhões”, avalia Fernando Figueiredo, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). No ano passado, o buraco do setor químico bateu em US$ 28,1 bilhões. Em 2013, preveem os especialistas, o déficit poderá chegar a US$ 30 bilhões. Segundo Figueiredo, há empresas que cogitam fechar unidades produtivas por conta deste cenário, tido como próximo do desalentador pela indústria química.
A tragédia dos custos altos
O alto custo dos insumos também tem contribuído para o encolhimento da indústria de base. Vários projetos do setor petroquímico, por exemplo, estão sendo engavetados ou adiados, pois não seriam competitivos com o custo atual de matérias-primas como a nafta e o gás natural, hoje 25% mais caros que na Ásia e nos Estados Unidos. Um dos principais projetos no setor, o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), da Braskem, orçado em US$ 5 bilhões, teve seus investimentos adiados para 2014. E as multinacionais Dow Chemical (EUA) e Mitsui (Japão), sócias no complexo Santa Vitória (MG) – um projeto de US$ 1,5 bilhão para a produção de plástico “verde” feito a partir da cana-de-açúcar – também resolveram aguardar.
Indústrias já instaladas estão igualmente reformulando os seus planos devido à alta dos custos. A Unigel paralisou a produção de uma de suas fábricas de poliestireno em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, em São Paulo, e a belga Solvay tenciona vender algumas de suas linhas de produção no país. “Enquanto isso, as empresas petroquímicas ampliam seus investimentos nos Estados Unidos, onde foram descobertas enormes reservas de gás de xisto. Hoje, o gás natural brasileiro é simplesmente cinco vezes mais caro que o gás de xisto americano”, compara o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP), que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Infraestrutura Nacional.
O custo da energia elétrica tem sido outro motivo da retração. A redução de 28% da tarifa industrial em vigor desde o início do ano teve um impacto quase nulo para os fabricantes de alumínio, por exemplo, que são obrigados a comprar energia no mercado livre, assim como outras grandes indústrias e shopping centers. “A queda da tarifa beneficiou mais os usuários do mercado cativo, que compram energia dos distribuidores regionais”, diz Adjarma Azevedo, presidente da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). “Para nós, a redução representou, no máximo, 10%”, afirma.
A média mundial do preço da energia elétrica é de US$ 40 por megawatt/hora, mas no Brasil ela custa US$ 80. A elevação do gasto com a produção devido ao preço pago pela eletricidade levou a gigante americana Alcoa a incluir o Brasil no programa de redução temporária de sua capacidade de fundição de alumínio.
Perda de capacidade tecnológica
Não é novidade para ninguém que a indústria do Brasil está perdendo terreno em alguns segmentos em escala global. Nos setores de base, por exemplo, essa desvantagem também já é qualitativa. Roberto Nicolsky, diretor geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), classifica como “muito grave” a perda de capacitação tecnológica em alguns segmentos como, por exemplo, o de produção de equipamentos para usinas hidrelétricas. “O Brasil dominava amplamente os conhecimentos na área e mantinha uma produção com quantidade e qualidade suficientes para fornecer as turbinas da hidrelétrica de Três Gargantas, na China, a maior do mundo”, diz Nicolsky. “Hoje, o país tem de importar esses equipamentos para dar conta das necessidades das usinas que estão em construção no rio Madeira, na Amazônia (hidrelétricas Jirau e Santo Antônio), pois está tecnologicamente defasado na área”.
Os produtores de bens de capital para o setor siderúrgico também estão perdendo a corrida tecnológica. Ainda, segundo o diretor da Protec, na recente construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), no Rio de Janeiro, todos os equipamentos foram trazidos de fora, principalmente da China. “Importaram até engenheiros chineses para a montagem do maquinário”, lamenta.
Para Nicolsky, essa perda de competitividade tecnológica é resultado direto da falta de escala de produção observada em vários segmentos da indústria de base. “O Brasil já deixou de produzir, por exemplo, máquinas para tecelagem, assim como se vê obrigado a importar boa parte das necessidades da área química”, constata.
Ainda sublinha que, historicamente, só progridem na área da indústria pesada as empresas que tem tecnologia e escala de produção e podem, assim, exportar, como são exemplos as fabricantes de equipamentos elétricos Weg e Embraco, ambas estabelecidas em Santa Catarina.