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Depois do boom, passos moderados
Por: CECILIA PRADA
Dois eventos internacionais de grande importância, a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, na Alemanha, realizada de 9 a 13 de outubro de 2013, e sua congênere voltada para a literatura infantil e juvenil em Bolonha, na Itália, em 2014, homenageiam o Brasil como convidado de honra, país-tema que é definido pela crítica estrangeira como “uma terra cheia de vozes e uma cultura que está constantemente se reinventando”. Enfim, uma definição precisa e animadora das nossas potencialidades culturais.
A honra que nos é feita corresponde ao enorme avanço da produção do setor-livro nas últimas décadas e ampliação do mercado estrangeiro, em paralelo à expansão do idioma português no mundo. Há 30 anos, escrever em português e ficar aguardando o interesse esporádico de tradutores e editores estrangeiros equivalia a experimentar na carne o que há tempos se reconhecia nos meios literários como “a tragédia de se nascer um poeta búlgaro”. Atualmente, o português é a terceira língua ocidental mais falada (240 milhões de falantes) e a mais ativa em todo o hemisfério sul, além do fato de que o Brasil passou rapidamente a ocupar situação internacional relevante que já não permite classificá-lo como mero país exótico e “promissor”.
No entanto, a julgar pelos relatórios sistemáticos promovidos pelas instituições que se ocupam do mercado editorial em geral, como o chamado “Censo do Livro”, publicado anualmente pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), vinculada à Universidade de São Paulo (USP), há sinais inequívocos de que o setor-livro tem apresentado nos últimos anos índices de queda que soam como alerta aos editores. Mesmo o segmento infantojuvenil, considerado até pouco tempo como sua “menina dos olhos” (talvez fosse mais apropriado dizer “galinha dos ovos de ouro”), já não é mais o mesmo. Explica-se: em alternância com outros filões (religioso, autoajuda, técnico-científico, erótico) ele mostra desvantagem, cansaço e desinteresse crescente do público.
Não há como negar, passamos da comunicação verbal e escrita para a comunicação visual. Todos nós, adultos, crianças, intelectuais, artistas, acadêmicos, universitários, lemos menos, mas aproveitamos a facilidade e a riqueza de pesquisa e comunicação que a internet nos proporciona. E também nos deixamos levar pelo grande festival exibicionista de vídeos, fotos, criações gráficas, efeitos especiais. Em síntese, somos arrastados, queiramos ou não, para as feiras mirabolantes, os megaeventos vale-tudo, as “viradas culturais” que mais servem a fins políticos do que propriamente culturais.
Quando, em meados da década de 1970, o boom da literatura para jovens ecoou no Brasil, sucesso estrondoso que teve início na década anterior nos países mais desenvolvidos, um punhado de importantes editoras saiu a campo para a “descoberta” e mesmo “fabricação” de autores do gênero. Uma arregimentação meio a toque de caixa, mas que acabou dando certo, principalmente pelas condições de dignidade financeira, de visibilidade e de estímulos à produção que eram oferecidos. Tanto que, nas décadas seguintes, assistimos a uma espantosa multiplicação de edições, ao real surgimento de talentos e disposição para escrever mesmo de excelentes autores que nunca dantes haviam pensado em se dedicar ao gênero.
Em toda a história literária sempre houve escritores que, eventualmente, criavam obras que podiam ser apreciadas também, ou até principalmente, pelas crianças – os casos clássicos de Esopo, Fedro, La Fontaine, Swift, Mark Twain, Dickens, Lewis Carroll, entre outros. Entre nós, mesmo escritores sisudos como Olavo Bilac, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Clarice Lispector deixaram obras esporádicas do gênero – inclusive de poesia, como Cecília Meireles, José Paulo Paes e Mario Quintana. Memorável, porém, é a escolha consciente de se dedicar ao gênero feita por Monteiro Lobato (1882-1948), que já em 1916 se mostrava desiludido com as obras existentes, como confessava em carta ao amigo Godofredo Rangel: “É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos”, ele escreveu.
“Bichos sem graça”
Em 1920, já estabelecido como editor, Lobato publicaria um pequeno volume de 43 páginas – A Menina do Narizinho Arrebitado –, tirando, no ano seguinte, uma edição de 30 mil exemplares, tornando esse livro o marco inicial de uma verdadeira revolução literária, expressão de uma nova visão da criança, do relacionamento entre adultos e crianças, da educação. Em 1926, em plena efervescência criadora, o escritor assumiria definitivamente sua vocação: “De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro de Robinson Crusoe. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar”, ratificou Lobato.
E fez. Como fizeram e fazem, até nossos dias, autores de primeira linha e autêntica realização no gênero, como Ziraldo, com seus múltiplos talentos e multiprêmios; Mauricio de Sousa, com seus geniais quadrinhos, e um impressionante rol de excelentes autores, entre os quais se distinguem as duas mulheres que receberam a maior consagração internacional, o Prêmio Hans Christian Andersen – Lygia Bojunga (1982) e Ana Maria Machado (2000), não deixando de citar a indicação de Ruth Rocha no ano de 2002. Outra pioneira foi Tatiana Belinky, russa de origem, que veio para o Brasil aos dez anos e naturalizada muito jovem. Falecida aos 94 anos, em 15 de junho deste ano, Tatiana dedicou sua vida às crianças, de 1948 até a sua partida, na literatura, no teatro, na televisão. Deixou mais de duzentos livros publicados, tendo recebido em 2012 o troféu Juca Pato da União Brasileira de Escritores, concedido aos intelectuais do ano.
A floração do infantojuvenil em um país como o nosso, onde rapidamente o número de leitores superestimulados, seduzidos inclusive pelos aspectos intertextuais de ilustrações, jogos, encartes, brinquedos, começaram a delinear um universo em que os consumidores mirins superavam o dos adultos, constituiu um grande triunfo do business, mas não certamente só isso. O boom ocorreu em um momento culminante do debate entre novas propostas que iriam afetar tanto o âmbito da criação literária, quanto o da educação e do ensino. Liquidava com os vestígios da visão oitocentista da criança – como ser pouco importante, sujeito à dominação e imposição de gostos pelos adultos e manipulável segundo o moralismo e os preconceitos destes – para criar multicanais de entrosamento com a realidade mutante, paradoxal, atordoante da era atômica, do pós-modernismo, e vir desaguar nesta era conturbada que vivemos.
Houve, no entanto, com a eclosão dessa linha literária, o que sempre acontece em movimentos dessa natureza: a compulsão pela produtividade, a corrida para aproveitar comercialmente o momento, a falta de tempo para a reflexão sobre alguns aspectos inerentes a essa classe da literatura que, trinta anos mais tarde, ainda persistem. O mais importante deles diz respeito à fundamental controvérsia entre dirigismo e espontaneidade da criação literária, uma vez que esse gênero está em geral associado a propósitos pedagógicos ou ideológicos.
O grande paradoxo da literatura infantojuvenil é que forçosamente sempre é feita por adultos e consumida por jovens, que desempenham sempre o papel da “argila moldável” sobre a qual os diversos agentes sociais agem à vontade, até mesmo abusivamente, segundo sua visão pessoal (ou arregimentada, ou até cínica) do mundo. Se na primeira metade do século 20 os autores de livros infantis ainda se esforçavam para formar meninos e meninas “bonzinhos” – isto é, cidadãos perfeitamente enquadrados no continuísmo de uma sociedade patriarcal conservadora, religiosa, autoritária e hipócrita –, incontestavelmente tivemos, nos anos 1960-1970, um movimento no sentido oposto, verdadeiramente revolucionário e de grande alcance, adaptado à abertura do mundo pós-guerra, aos novos valores de igualdade e de justiça social, à revolta das minorias oprimidas e às grandes mudanças no concerto das nações.
Processou-se uma reversão: a superioridade da literatura para adultos sobre a feita para crianças, inconteste no decurso da história literária, foi desafiada de pronto com a instalação das novas propostas – o livro infantil e juvenil ganhou tecnicamente uma tal riqueza de formatos, cores, capas, e também recursos estilísticos e ventilação temática, que passou rapidamente à categoria do “primo rico”, com as próprias livrarias se transformando em sedutoras salas de estar, de prazer lúdico. E com uma simultânea campanha, estimulada pelas próprias editoras, entre escolas, professores, setores oficiais, que resultou em renovação total do cenário.
Déficit de qualidade
Um aspecto fundamental a ser analisado refere-se ao seu relacionamento com a literatura para adultos – pois um dos principais objetivos do grande boom foi sempre explicitado como “cultivar na criança o hábito da leitura para que continue a praticá-lo sempre e possa, ao crescer, mergulhar no campo da grande literatura.” E aí surgem grandes e perturbadoras perguntas: foi isso o que aconteceu e o que acontece ainda hoje? Como se encontra hoje o que há 30 ou 40 anos se definia como “grande literatura”, reservada para adultos? A passagem dos jovens do campo de entretenimento exacerbado em que se transformou seu processo de leitura formou-os para o mergulho no patrimônio cultural das grandes obras literárias do passado e dos autores que ainda hoje, na ficção e na poesia, priorizam talento, criatividade, aprimoração de recursos estilísticos, ampla visão do mundo, temática importante, sobre valores meramente mercadológicos?
A resposta pode ser inquietante: a literatura autêntica atravessa sua maior crise, no plano mundial, juntamente com o quadro de rebaixamento total dos currículos escolares, o descaso pela escrita e pela leitura, o inchaço de produções medíocres e a desvalorização de processos e de obras que realmente estimulem a expressão, a criatividade, o conhecimento. A palavra enxurrada é certamente a mais adequada para classificar o grosso da produção editorial de hoje, na qual se procura compensar com maior número de títulos, apenas, o inegável déficit de qualidade. Como diz uma das maiores escritoras de Portugal, a romancista Lídia Jorge: “Estamos perante uma enxurrada que leva atrás de si livros, pedregulhos, narrativas sórdidas e grandes páginas, poemas vivos e defuntos, tudo numa mistura incontrolável que vai dar às bancas das livrarias”.
É basicamente o mesmo modo de ver do peruano Mario Vargas Llosa – Prêmio Nobel de Literatura em 2010 –, que, em recente entrevista, indagado sobre o valor de uma literatura como a do escritor brasileiro Paulo Coelho, respondeu: “O problema é que a literatura dita ‘de entretenimento’ sempre existiu, com grandes vendagens. Só que tivemos sempre uma distinção nítida entre ela e a verdadeira literatura – o que não acontece hoje, quando se mistura e confunde tudo.” O italiano Umberto Eco compartilha do mesmo ponto de vista, dizendo que “a sabedoria, na atualidade, consiste em saber escolher o que não se deve ler”.
O campo específico da literatura para jovens ressente-se principalmente de uma deficiência de reflexão crítica – é o que afirmam professores universitários que se dedicam ao gênero, casos de João Luis Ceccantini, Regina Zilberman e Marisa Lajolo entre tantos outros. É preciso dar destaque neste ponto a Nelly Novaes Coelho, pioneira na criação da disciplina Literatura Infantil e Juvenil na Universidade de São Paulo (USP), em 1980, uma escritora ativa e participante até hoje como professora emérita daquela universidade, aos 91 anos. Em junho deste ano, Nelly lançou Escritores Brasileiros no Século XX – Um Testamento Crítico, com quase mil páginas. Em obra fundamental, Literatura Infantil – Teoria, Análise, Didática, lançada em 1981 e com sucessivas edições, ela enfatiza que os autores que se dedicam ao gênero devem ter em vista, em primeiro lugar, a literariedade, para que seus livros “não sejam lidos como simples meio de se transmitir valores, e exclusivamente em função de seus estereótipos sociais”.
Adulto em miniatura
Uma pergunta básica: como é a criança do início de século 21? Quais os fatores que facilitam, ou dificultam, a sua formação intelectual e moral, a sua futura situação na sociedade? É preciso não esquecer que o conceito de “criança” só existe a partir de uma conceituação feita pelo adulto – assim, na antiguidade ela era vista como equivalente a um animal, por não ser racional, como dizia Aristóteles. Durante o curso da história, até o Iluminismo, ela equivalia apenas a um “adulto em miniatura”, era obrigada a participar sem preparo ou proteção da vida dos adultos, trabalhando, sofrendo privações e castigos, submetida à grosseria da vida cotidiana, envolvida até nas atividades sexuais dos adultos, em um clima moral em que mesmo práticas obscenas e uso de linguagem grosseira em sua frente eram considerados atitudes normais.
A partir do século 18, essa situação começou a mudar, substituída pela equiparação da infância à “idade da inocência”, como época de preparo para a vida (de 1850 a 1950) – mas logo mais a psicanálise ganhava o campo e nos provava que a coisa não era bem assim. A criança foi sendo içada a uma situação de “ser especial”, merecedora inclusive de cuidados e direitos exagerados, de uma “liberação” que a faz assumir até importância maior do que a dos adultos, em certos meios e famílias – os “pequenos deuses” exigentes cujas vontades devem ser imediatamente satisfeitas têm desgraçadamente resultado em adolescentes desorientados, deprimidos ou exaltados até a paranoia, frios criminosos capazes de ameaçar a própria vida dos genitores.
Com sua super e indiscriminada exposição à programação violenta da televisão, do cinema, dos games, desorientadas com uma precoce liberação sexual (como na Idade Média, mediante exposição contínua a linguagem e práticas vulgares e obscenas) e, principalmente, pela falta de orientação por parte de adultos covardemente temerosos de imporem limites e regras, as crianças de agora não estariam regredindo em sua condição, voltando a ser vistas como “adultos em miniatura” e obrigadas a enfrentar sozinhas ambiguidades, padrões incertos e decisões existenciais?
Qualquer discussão sobre as peculiaridades da literatura infantojuvenil e do quadro mais amplo da literatura geral não poderá ser devidamente processada sem sua colocação diante dessa problemática e a possível compreensão dos principais fatores de mutação que em seu todo a sociedade humana está enfrentando.
A voz de um escritor
Do outro lado das estatísticas e informes oficiais sobre o setor, da secura dos gráficos, da euforia ou do pânico dos empresários, temos a realidade vivida pelos escritores, registrada, às vezes, em tons e cores bem diferentes. Como este pequeno depoimento do escritor Luiz Galdino, que entre livros de ficção juvenis e para adultos, e obras especializadas em pré-história, soma em seu currículo mais de sessenta volumes.
Problemas Brasileiros – Como o senhor vê a situação do mercado de livros infantis e juvenis, hoje?
Luiz Galdino – Ruim, em virtude de um aparente contrassenso. Imagino que, em qualquer lugar do mundo, a possibilidade do governo vir a comprar livros para aumentar e diversificar o acervo de bibliotecas públicas ou escolares é recebida com aplausos. Aqui, no entanto, mesmo sem entrar no mérito dos valores pagos, a entrada do governo no mercado livreiro gerou uma certa acomodação do meio editorial. Como as obras a serem adquiridas pelo Estado devem ser apontadas pelas escolas que receberão o benefício, as editoras ajustaram sua artilharia nessa direção, de modo que ao entrar numa delas, hoje, você somente ouvirá referências ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ao Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e projetos afins. Pode parecer exagero, mas não é. Uma escola particular, da zona norte da capital paulista, pediu a presença de um divulgador, porque tinha um livro indicado para adoção, e os professores queriam contar com o autor para conversar com os alunos. Resumo: após algumas tentativas, tiveram de retirar os livros na editora porque os alunos estavam preparados para aquela leitura e, aparentemente, a editora não tinha como entregar.
PB – A situação atual do mercado editorial difere de quando você começou a ter seus livros publicados?
L. G. – Não há termos de comparação. Eu comecei a publicar em 1982. O mercado era tão bom, que chegou a atrair escritores que tradicionalmente escreviam apenas para adultos. Hoje, há uma quantidade exagerada de editoras nanicas, pensando exclusivamente em vender para o governo. Não só nanicas, porque alguns grupos estrangeiros se instalaram no país, atraídos pelas compras governamentais. E há editoras, ainda, entre as líderes, que concorrem através de vários números de selos, gráficas, distribuidoras etc., porque cada marca permite a inscrição de apenas quinze títulos. Então, se possui dez estabelecimentos (editoras, gráficas, distribuidoras), ela concorre com quinze títulos para cada um desses itens, enquanto uma editora que só edita livros concorre com apenas quinze.
PB – Em qual dos gêneros – literatura para adultos e para jovens – o senhor se sente mais realizado?
L. G. – Para mim se equivalem. Aos 12, 13 anos, já queria ser escritor e percebia que o perfil do leitor no Brasil era representado pelo adulto. Escrevi muito, embora só conseguisse publicar às vésperas dos 40 anos. Ganhei prêmios importantes, senti-me realizado. Mas de repente me dei conta de que o adulto não era mais o grande leitor, em nosso país. Basta ver que as edições para adultos, até hoje, continuam girando em torno de dois mil a três mil exemplares. Então, optei por escrever também para os jovens e até agora não me decepcionei. Não é uma atividade menos digna, como alguns pensam.