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Teatro melhora vida de afásicos
Por: REGINA HELENA RAMOS
Ele pegou uma carona com um amigo que, de súbito, pisou no acelerador e passou a disputar um racha numa das grandes avenidas de São Paulo. E o inesperado aconteceu: o condutor se perdeu e o veículo bateu violentamente contra um ônibus. As consequências? Doze dias em coma, depois, uma recuperação lenta, e, no fim de tudo, uma surpresa desagradável: o outrora saudável caroneiro passara a sofrer de afasia. Isso aconteceu com Nicholas Wahba, que em 2002 fundou com a fonoaudióloga Fernanda Papaterra Limongi a organização não governamental Ser em Cena, que através da dança e do teatro ajuda na recuperação de afásicos.
Afasia é a perda do poder de compreensão e ou expressão pela fala, pela escrita ou pelo gestual, causada por uma lesão cerebral. Em linhas gerais, o acometido sabe o que deseja expressar pela fala, mas não consegue pronunciar as palavras pela incapacidade de coordenar os músculos. A doença pode ser causada por acidentes com traumatismo craniano, por AVC (acidente vascular cerebral), por tumores cerebrais ou por aneurismas.
Depois do infausto acontecimento, Wahba começou a fazer fonoaudiologia, fisioterapia e psicomotricidade, mas foi do teatro que veio um grande auxílio. Antes do acidente, ele já atuava em algumas peças na escola e durante sua recuperação passou a ter aulas com o grupo teatral Atíria do diretor Hélio Braga. Como não conseguia falar e tinha dificuldades para decorar, deram-lhe um papel de bêbado, que dizia poucas palavras. Três anos depois, já conseguiu participar da montagem de O Burguês Fidalgo, de Molière, fazendo Cléonte, que se apaixona exatamente pela filha do burgo. “Achei que não iria conseguir nem decorar, mas me sai bem e fiquei surpreso”, diz Wahba.
Como precisava de uma profissão e, no seu caso, o teatro era uma atividade amadora, Wahba consultou uma terapeuta vocacional e foi cursar administração de empresas. Todavia, não era aquilo que desejava para si, cursou até o segundo ano da faculdade e abandonou o curso. Tentou propaganda e marketing, mas não tendenciou para essa área. Foi para o México, onde fez um curso com o maestro Sigfrido Aguilar Trinidad e foi aí que encontrou sua vocação: clown, ou seja, palhaço. E começou a representar.
Enquanto isso, a fonoaudióloga Fernanda, num congresso no Canadá, assistia a um espetáculo feito por afásicos e se entusiasmou. As ideias começaram a surgir. Conversa vai, conversa vem, e em parceria com o clown afásico criaram a ONG Ser em Cena, prestigiada por Elie Wahba, pai de Nicholas, que é vice-presidente sênior da Fox Film do Brasil. Num segundo momento, Sérgio D’Antino, advogado especializado em causas relacionadas à publicidade e internet, foi convidado para assumir a vice-presidência da entidade.
O primeiro grupo de afásicos a enveredar pelo mundo do teatro e da dança sob os auspícios da Ser em Cena era formado por nove pessoas apenas. Hoje, a ONG atua por meio de três grupos integrados por sessenta alunos que já se apresentaram em diversos locais públicos. Teatro, coral, dança, mímica, fonoaudiologia e psicoterapia (algumas vezes por semana) são matérias ministradas num espaço no bairro paulistano de Perdizes, e os participantes são homens e mulheres de todas as idades. “Antigamente, a afasia atingia apenas pessoas mais velhas e a principal causa era sempre um AVC”, diz Wahba. Hoje, ele destaca, o número de jovens afásicos aumentou muito, seja por conta de acidentes, seja igualmente em decorrência de acidente vascular.
Os interessados em participar dos trabalhos da Ser em Cena passam, necessariamente, por uma entrevista conduzida pelo próprio Wahba, que analisa, por exemplo, se o afásico já teve experiências com fonoaudiólogos e psicólogos. Ele conta que, às vezes, as pessoas já passaram por sessões de fonoaudiologia, mas a alta do tratamento pode ter sido dada prematuramente. Após essa conversa inicial, o candidato participa de todas as atividades do Ser em Cena.
Espaço imaginário
“Partimos do princípio que qualquer ser humano pode dançar”, analisa Wahba. Uma das características marcantes da ONG é tratar os afásicos como pessoas normais, “coisa que, na realidade, elas são”, salienta. Uma das perguntas mais comuns é sobre o tempo necessário para o afásico recuperar a voz. “Não há um tempo determinado, já que a recuperação varia de pessoa para pessoa, do grau e do tipo da afasia”, explica. O importante mesmo, segundo Wahba, é que não há custo para os participantes, “tudo aqui é de graça”. Por isso, ele sempre ressalta, a Ser em Cena precisa de patrocinadores. “Os alunos não têm alta, podendo permanecer aqui o tempo que desejarem”, declara, com a informação de que a ONG já deu atendimento a mais de duzentas pessoas.
A entidade produziu vários espetáculos e se apresentou em locais que não deixam dúvidas sobre a importância de seu trabalho, casos do Teatro Bibi Ferreira e do Teatro da Universidade Católica (Tuca), ambos em São Paulo. Criada coletivamente, a dramaturgia vai surgindo durante as aulas e o repertório inclui as peças Reconstruindo a Palavra, Cadê o Tempo?, Humor na Ponta do Lápis, SOS Planeta. No ano passado, os afásicos da Ser em Cena montaram a peça Linhas Cruzadas, que está sendo remontada agora. Wahba comenta que os espetáculos podem incluir improvisações, já que muitas vezes é difícil para o afásico decorar falas. A melhora do grupo vai sendo verificada a cada dia, a cada semana, a cada mês. E isso se completa no palco. “É impossível deixar de se emocionar. Atores e público formam um todo durante os espetáculos. A emoção é enorme e muitos espectadores chegam às lágrimas”, observa.
Uma aula de teatro na entidade comandada por Wahba começa com os alunos dando-se as mãos e fazendo uma roda. Cantam juntos. Ali estão Araci, que passou por quatro aneurismas (não andava, não falava e não enxergava, e está quase recuperada); Matheus, que teve um tumor cerebral há quatro anos e frequenta a ONG há um. É animado e alegre; Celso, que estava se recuperando de um derrame cerebral quando foi atropelado. Ainda caminha com auxílio de bengala; Sueli, que teve um derrame cerebral enquanto estava na praia com a família e hoje consegue contar tudo o que passou com detalhes; e Helena, muito jovem, que teve paralisia cerebral e participa ativamente das aulas. Todos, indistintamente, não se cansam de ressaltar a melhora experimentada em seus quadros clínicos.
Na sede da Ser em Cena, os afásicos-alunos se movimentam com desenvoltura. Interagem, cantam, dançam e participam dos jogos propostos pela professora Sandra Grasso. Um deles pede para o jogador mostrar, com gestos, um espaço imaginário onde se encontra naquele momento. Pode ser na cozinha, na piscina, na praia, enfim, qualquer local. Não há palavras, só gestos. “Não vamos contar onde estamos, isso seria mímica”, orienta Sandra. “Vamos mostrar onde estamos.” Ela explica que há um jeito de mostrar, falando, mas o jogo não é esse. O jogo é aprender a linguagem teatral. A brincadeira continua, só que agora o aluno terá de mostrar uma ação. Jogando tênis? Nadando? Cozinhando? Comendo? Vai ficar a critério de cada um.
A professora faz referência a Viola Spolin, educadora americana que viveu de 1906 a 1994 e é mundialmente conhecida pela criação de jogos teatrais elaborados com a precípua finalidade de preparar atores. Em linhas gerais, segundo Viola – venerada como a grande incentivadora do teatro improvisacional nos Estados Unidos –, todo mundo pode entrar em cena porque a prática de representar não tem nada a ver com talento. “Dizia que toda criança faz teatro naturalmente e que, quando se joga e brinca, ela cria a realidade, experimenta a vida”, complementa Sandra.
A professora do Ser em Cena pede, em suas aulas, que os alunos cultivem um bom relacionamento com o companheiro de interpretação, com o espaço e com o seu corpo. Os participantes obedecem com rapidez, alegria, inventividade e bom humor. “A função do teatro é representar o cotidiano na vida das pessoas?” pergunta Sandra. E se despede dizendo que “a resposta será dada na próxima aula”. De mãos dadas os alunos cantam. Colocam a repórter no meio e pedem que ela dê um testemunho do que ouviu e viu. E o testemunho da repórter é pura emoção. Não dá para ser de outro jeito.