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Breve passagem de dois ídolos
Por: HERBERT CARVALHO
O papel de protagonistas exercido pelos jovens na indústria cultural, por meio de bandas de rock, e no mercado de consumo, que lhes dedica cada vez mais produtos e serviços, é um fenômeno do pós-guerra originário dos Estados Unidos, mas que adquiriu escala planetária na segunda metade do século passado.
Quando, no início da década de 1950, o disc jockey e promotor americano de shows Alan Freed adotou a denominação rock and roll para se referir a músicas tocadas por conjuntos formados por bateria, instrumentos elétricos e saxofone, com letras cantadas de forma quase gritada, sua intenção era uma só: tornar palatável aos círculos adolescentes de comunidades brancas aquilo que os negros praticavam há décadas, com os nomes de rhythm and blues e shouting style.
Assumido por intérpretes brancos como Bill Haley & His Comets e Elvis Presley, que lhe agregaram passos de dança agressivos e sensuais, o novo gênero musical logo ganhou contornos de espetáculo cênico-ritualístico, capaz de atrair a grandes espaços abertos imensas plateias de jovens dispostos a se deixarem atordoar por um caleidoscópio de luzes e sons. Para alimentá-lo em eventos como o Rock in Rio, a parafernália eletrônica exigida, além de pesar algumas toneladas, equivale ao consumo de eletricidade de uma cidade de 30 mil habitantes.
Essa comunhão ritualística ajudou, por um lado, a configurar no jovem da classe média em expansão um perfil de consumidor característico dos anos dourados do capitalismo, proporcionando lucros crescentes à indústria fonográfica e ao show business. Paradoxalmente, estimulou a rebeldia de uma geração que se recusava a morrer nas guerras da Coreia e do Vietnã e a reproduzir os valores conformistas e regrados de seus pais.
A onda que atravessou o Atlântico e gerou na Inglaterra grupos como The Beatles e The Rolling Stones chegou ao Brasil por meio de versões em português cantadas pelos irmãos Tony e Celly Campello. Confinado a programas bem comportados como a Jovem Guarda e aos sucessos isolados de Rita Lee e Raul Seixas, o rock brasileiro ressurge com força no início dos anos 1980, no ocaso da ditadura militar que se notabilizara por censurar a música popular e perseguir compositores e intérpretes dissidentes do ufanismo oficial.
Assim, com vinte anos de atraso em relação ao mítico festival de Woodstock, realizado ente os dias 15 e 18 de agosto de 1969, na cidade rural de Bethel, no estado americano de Nova York, e a símbolos como Jimi Hendrix e Janis Joplin, mortos prematuramente por seu estilo de vida, a juventude brasileira finalmente teria sua cota de sexo, drogas e rock and roll. E também seus mártires: entre os astros então revelados, mas que tragicamente não completariam 40 anos, destacam-se as figuras de Renato Russo e Cássia Eller, cultuados ainda no século 21 por seu legado artístico e comportamental, pioneiros que foram em assumir relacionamentos homossexuais.
No momento em que o país volta a ter milhares de jovens clamando nas ruas por transformações sociais e políticas, Problemas Brasileiros relata as trajetórias do poeta e da cantora que afirmaram o direito à liberdade pessoal sem reservas, liderando gerações cada vez menos conformadas com tabus, hipocrisias e mediocridades.
Ao nascer no Rio de Janeiro, em 27 de março de 1960, Renato Manfredini Júnior nada tinha de russo, mas sim, como indica o patronímico, de italiano, com família oriunda de Sesto Cremonese, na região de Milão. Orgulhoso do sangue lombardo, ele visitaria a cidade em sua única viagem à Europa, dois anos antes de morrer, quando esteve na Itália para escolher o repertório de Equilíbrio Distante, disco solo que gravou com canções no idioma dos antepassados.
Faroeste caboclo
De acordo com o biógrafo Arthur Dapieve, o sobrenome artístico foi criado na adolescência, durante um período de seis meses de convalescença de uma grave doença óssea, sem ter nada a ver com os habitantes das estepes geladas. “Renato leu como um louco e decidiu se interessar ainda mais seriamente por música. Criou uma banda fictícia na qual o cantor alter ego se chamava Eric Russel. O sobrenome compartilhado por um de seus pensadores favoritos, o inglês Bertrand Russel, e sonoramente parecido com duas outras fontes de admiração, o também filósofo Jean-Jacques Rousseau e o pintor primitivista Henri Rousseau, acabou resultando no ‘Russo’ que adotaria”, esclarece Dapieve.
O mundo da música e da cultura anglo-saxônica fez parte de sua vida desde a infância. Além de ser filho de uma professora de inglês, seu pai, Renato Manfredini, cultivava o hábito de, todas as manhãs, antes de sair para o trabalho, escutar os hits de Benny Goodman e Glenn Miller. Aos cinco anos recebeu aulas básicas de piano e logo deslancharia na língua de Shakespeare quando, entre 1967 e 1969, a família mudou-se da carioca Ilha do Governador para Nova York, onde o economista Manfredini, funcionário do Banco do Brasil, fora fazer um curso. No encarte do primeiro disco solo de Renato Russo, só de canções alheias em inglês, há uma foto dessa época: ele abraçado à irmã Carminha, com a seguinte legenda escrita à mão: “Me & my sister. Central Park – N.Y.C. June 1969”.
De volta ao Brasil, ele cursa a Cultura Inglesa, onde passaria de aluno a professor, sendo encarregado de saudar, em discurso de pronúncia impecável, a passagem do príncipe Charles, da Inglaterra, por Brasília, em 1978. O domínio do inglês fortaleceria sua paixão pelo rock, facilitando a compreensão das letras e das melodias dos Beatles, de Elvis Presley e de Bob Dylan, este último autor de canções politizadas como as que marcaram também grandes sucessos do futuro pop star brasileiro.
Radicado em Brasília em meados da década de 1970, Renato Russo viveu o drama de ser jovem numa cidade com poucas opções culturais e de lazer, que apesar de sediar o Congresso Nacional sequer tinha campanhas políticas, pois os brasilienses, desprovidos de prefeito e vereadores, só puderam eleger deputados e senadores a partir de 1986. Não é de admirar, portanto, que nas superquadras do Plano Piloto proliferassem gangues juvenis e consumo de drogas, fornecidas por traficantes instalados nas cidades-satélites, como retrata a letra de Faroeste Caboclo, a famosa canção que em incríveis 159 versos descreve a saga do personagem João de Santo Cristo.
Garotos com recursos suficientes para comprar baterias, guitarras e contrabaixos com os respectivos amplificadores e sem ter o que fazer a não ser barulho nos espaços livres entre os pilotis sob os blocos residenciais transformaram a cidade em berço de três bandas de rock – Capital Inicial, Plebe Rude e Legião Urbana. E de roqueiros como o vocalista e compositor Herbert Vianna e o baixista Bi Ribeiro, que mais tarde formariam no Rio de Janeiro os Paralamas do Sucesso.
Um local, a Colina – conjunto de quatro prédios construídos, à época, para abrigar docentes e funcionários da Universidade Nacional de Brasília (UNB) – e uma nova onda vinda da Inglaterra – o movimento punk – deram vida a esses grupos a partir do primeiro deles, de vida efêmera: o Aborto Elétrico. Integrado por Renato Russo, pelos irmãos Flávio e Felipe (Fê) Lemos, filhos de um professor da UNB, e por André Pretorius, cujo pai era ninguém menos que o embaixador no Brasil da ainda racista África do Sul. A banda se inspirava nos Sex Pistols, notabilizados por um rock visceral de poucos acordes e pelos xingamentos dirigidos à rainha Elizabeth II.
O nome insólito evocava o cassetete elétrico cujos choques teriam provocado aborto em manifestante grávida, nos idos de 1968. Sem cobrar ingressos, o Aborto Elétrico se apresentou durante dois anos, a partir de janeiro de 1980, num circuito underground em que, não raro, músicos e público eram detidos pela polícia, mas logo liberados após a constatação que entre eles havia filhos de militares de alta patente.
Maus bocados
Quando Pretorius retornou à África do Sul, o grupo acabou, pois Renato Russo se desentendeu com Fê Lemos, que partiu para a formação do conjunto Capital Inicial. O legado da experiência amadora, porém, logo se revelaria fecundo para os futuros profissionais. Após alguns meses apresentando-se sozinho com violão como o “Trovador Solitário”, o compositor que a esta altura já tem na bagagem Geração Coca-Cola e Que País é Este?, autênticos hinos geracionais, começa a encontrar novos parceiros para formar a banda que, fazendo jus ao nome, arrastará massas de jovens urbanos atrás de uma legião.
No exato momento em que o rock local começa a tomar forma, chega a Brasília a cantora destinada a imprimir ao gênero seu timbre de voz grave, rascante e irônico, aliado à originalidade e densidade das interpretações. Para Cássia Rejane Eller, nascida no Rio de Janeiro em 10 de dezembro de 1962, esta era mais uma escala na vida de filha mais velha de Altair Eller, militar que servira em Minas Gerais e no Pará como instrutor de paraquedistas.
Batizada em homenagem a Santa Rita de Cássia por sugestão da avó materna, que tocava bandolim e lhe dera o primeiro violão, ela descreveria assim as influências iniciais: “Ouvia muito Beatles em casa e desde pequena imitava Roberto Carlos – eu me vestia igual a ele”, contou em entrevista ao “Jornal do Brasil”, em 1998, quando já consagrada preparava-se para abrir o show do The Rolling Stones e de Bob Dylan, na Praça da Apoteose do sambódromo carioca.
Com a mãe aprendeu a ouvir Ângela Maria, Elza Soares e Dolores Duran, fator preponderante para que seu repertório fosse muito além do rock e transitasse com igual desenvoltura por diferentes estilos musicais, do que dão eloquentes testemunhos as gravações de Na Cadência do Samba (de Ataulfo Alves) e Non, Je Ne Regrette Rien (sucesso original de Edith Piaf). Cássia e sua mãe chegaram a gravar em duo uma canção de Gilberto Gil, revelando um elo “que jamais se romperia”, segundo destaca a biógrafa Beatriz Helena Ramos Amaral, autora de Cássia Eller – Canção na Voz do Fogo: “O timbre de voz também grave de Nancy Ribeiro dos Reis, mostrava um pouco da carga genética recebida pela filha”.
Antes de acontecer, porém, Cássia Eller passou maus bocados após a separação dos pais. Deixou incompleto o segundo grau para trabalhar sucessivamente como garçonete, cozinheira, ajudante de pedreiro e datilógrafa no Ministério da Agricultura. Em paralelo, tentava a carreira artística. A primeira aparição no palco foi na peça Veja Você Brasília, de Oswaldo Montenegro. Selecionada como corista, durante os ensaios acabou escalada para cantar em solo o tema de abertura do musical.
Após cantar em coros de óperas como “meio soprano que fazia o serviço de contralto”, segundo ela mesma, passou a apresentar-se em casas noturnas e a entoar frevos do primeiro trio elétrico da capital federal, o Massa Real. Em 1988, considerada pelo “Correio Braziliense” uma cult singer, é assim recebida pela vanguarda paulistana que, por meio de Arrigo Barnabé e Itamar Assunção, lhe fornece músicas para o primeiro disco. Neste comparece também, com a faixa Por Enquanto, Renato Russo, com quem ela não chegara a ter contato quando ambos moravam em Brasília.
Seu show de estreia em São Paulo, em 1990, no teatro Crowne Plaza, seria assim recordado pelo jornalista Sérgio Dávila, da “Folha de S. Paulo”: “Tímida, cantava olhando para o chão, empunhando um violão e vestindo minissaia. De vez em quando, virava para o fundo do palco e cuspia, gesto que seria sua marca registrada, assim como olhar fixamente as meninas da plateia, até que elas ficassem sem graça”.
Legião Urbana
No início da década de 1990, porém, a imagem de Cássia Eller ainda era a de uma moça bem comportada que logo seria mãe do único filho, Francisco Ribeiro Eller, o Chicão. Mas quando o baixista Otávio Fialho, pai da criança, morreu em um acidente antes mesmo de a cantora dar à luz, ela radicaliza seu modo de vida: tornou público o relacionamento com Maria Eugênia Vieira Martins – com quem passou a dividir a criação do filho – e adotou o visual punk composto por roupas masculinas e cabelos curtos pontudos de estilo moicano. Em 29 de dezembro de 2001, um enfarte mata Cássia Eller aos 39 anos. Usuária de cocaína desde a adolescência, não teve, porém, a hipótese de overdose confirmada pela autópsia.
Ela buscou também romper o estigma de ter um público restrito a intelectuais, jornalistas e críticos e decidiu gravar dois discos com músicas de Cazuza, primeiro roqueiro da geração de Cássia e Renato a brilhar e a morrer. A vendagem de um deles, Veneno Vivo, lhe garantiria, em 1998, o primeiro disco de ouro. Outro chegaria no ano de sua morte, em 2001, com Acústico MTV.
O baterista Marcelo Bonfá e o guitarrista Dado Villa-Lobos uniram-se a Renato Russo ainda nos tempos de Brasília para formar, entre 1983 – quando estrearam no Circo Voador, no Rio de Janeiro – e 1996, a banda Legião Urbana, detentora do recorde de 20 milhões de discos vendidos. Ainda no século 21, seus 16 álbuns proporcionam à gravadora EMI vendas de 250 mil cópias por ano.
Sustentado pelas composições de Renato Russo, o primeiro álbum com estilo “punk até a medula”, no dizer de Arthur Dapieve, que chamou a atenção do público e da crítica tinha este refrão na música de abertura: “Somos os filhos da revolução/somos burgueses sem religião/somos o futuro da nação/geração Coca-Cola”.
Os álbuns seguintes trazem, entre outras, as canções Eduardo e Mônica e Faroeste Cabloco, composições com letras extensas, mas em linguagem cotidiana, sem metáforas, que contam histórias de fácil assimilação, que os jovens decoravam e repetiam. Se estas músicas valeram ao autor o título de “Bob Dylan do Cerrado”, outras o consagrariam como o “Olavo Bilac do Rock”. No álbum As Quatro Estações, considerado o melhor de todos, a faixa de abertura Há Tempos é um primor de lirismo: “Parece cocaína/Mas é só tristeza/Talvez tua cidade/Muitos temores nascem/Do cansaço e da solidão/ Descompasso, desperdício/ Herdeiros são agora/Da virtude que perdemos...”
Cocaína e mesmo heroína estiveram presentes na vida de Renato ao lado do álcool, cachaça na juventude, assim como o licor tomado em copos de requeijão, no final. Não escondia o uso de drogas e muito menos o homossexualismo, assumido perante a mãe, Carmem Manfredini, aos 18 anos. O que não o impediu de namorar mulheres como a escritora Marina Colasanti e a atriz Denise Bandeira, além de pelo menos uma fã, Rafaela Bueno, mãe de seu filho Giuliano Manfredini, nascido em 1989 e criado pelos avós paternos.
Manteve em segredo, entretanto, durante seis anos, a condição de portador do HIV, contraído no relacionamento com o estadunidense Robert Scott Hickmon, “um gay de carteirinha da Market Street, em São Francisco”, na definição do próprio compositor. Embora admirasse a atitude do predecessor, não quis repetir o martírio público de Cazuza. Com 36 anos, pesando apenas 45 quilos, Renato Russo morreu em 1996 sem realizar o plano de tornar-se escritor e cineasta. Mas, neste ano, milhões de brasileiros foram aos cinemas para ver Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo, respectivamente sua cinebiografia e adaptação para as telas da música homônima. Indefinido continua o destino da marca Legião Urbana, objeto de disputa judicial travada pelo filho Giuliano com Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos.
Por atos e fatos, Cássia e Renato se tornaram ícones da causa de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT). A esse movimento, Renato dedicou o disco solo, The Stonewall Celebration Concert, evocação do bar de Nova York que foi palco, em 1969, de um levante gay contra a polícia. A contribuição maior de Cássia seria póstuma: em processo que virou referência para a concessão de tutela de crianças aos parceiros homoafetivos de homossexuais falecidos, sua companheira Eugênia obteve a guarda definitiva de Chicão, na época com apenas oito anos de idade.
O tempo não para
Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido pelo nome artístico de Cazuza, nasceu em 1958 no Rio de Janeiro, onde também morreu, em 1990. Pioneiro inspirador dos roqueiros de sua geração, destacou-se como vocalista e principal letrista da banda carioca Barão Vermelho, nome extraído das histórias em quadrinhos de Snoopy e Charlie Brown. Outra versão seria uma referência ao nome do aviador Manfred von Richthofen, principal inimigo dos aliados na Primeira Guerra Mundial. A apresentação do grupo na primeira edição do Rock in Rio, em janeiro de 1985, coincidiu com a eleição de Tancredo Neves, anunciada por Cazuza ao público e comemorada com sua música Pro Dia Nascer Feliz.
Boêmio, rebelde e polêmico, além de bissexual assumido, revelou que tinha Aids como forma de ajudar a combater o preconceito contra a doença. Em apenas 32 anos de vida deixou canções profundamente atuais, como a que adverte: “A tua piscina tá cheia de ratos/Tuas ideias não correspondem aos fatos/O tempo não para”.