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Freud no Brasil
Por: CECILIA PRADA
Permeado em sua totalidade pela influência do pensamento e da obra de Freud e de Marx, o século 20 se prolonga nestes primórdios do 21 ainda ruminando e executando teorias e práticas, debatendo conceitos, preconceitos, dúvidas, discípulos e opositores, correntes dissidentes, revisionistas ou conservadoras deles derivados. A psicanálise, “pura” ou revestida de roupagens variegadas, predomina certamente sobre o marxismo, que anda meio recolhido. Vale a pena, portanto, rever alguns aspectos do curso histórico que a doutrina freudiana teve no Brasil, para melhor entendermos – no âmbito limitado e despretensioso de um trabalho jornalístico – pelo menos algumas das questões mais importantes suscitadas, ainda hoje, no seu exercício.
Durval Bellegarde Marcondes, que é considerado o pioneiro da prática psicanalítica no Brasil, tinha já 80 anos – um senhor desempenado, simpático, ativo ainda em sua profissão – quando me recebeu em seu consultório naquele ano de 1979, isto é, dois anos antes de morrer. Eu representava a “Folha de S. Paulo” e estava ali para entrevistar o psiquiatra que, em 1926, com outro médico famoso, Francisco Franco da Rocha, fundara a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) – a pioneira do gênero no país.
A primeira coisa que Marcondes fez, naturalmente, foi mostrar-me o original de uma carta autógrafa datada de 18 de junho de 1926 em que ninguém menos do que o próprio Sigmund Freud autorizava-o a introduzir o seu método terapêutico no Brasil e a utilizá-lo em seus pacientes (deu-me uma cópia, que foi então publicada na “Folha”). Mas o jovem doutor não esperara pela autorização expressa do mestre vienense para iniciar sua prática. O interesse pela psicanálise datava do seu primeiro ano da Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919, quando assistira a uma aula inaugural dada por Franco da Rocha, demonstrando a abordagem psicanalítica de um caso psiquiátrico. A partir daquele momento, Marcondes adotou o rumo certo para sua carreira: superando o mero interesse teórico de seus colegas e professores, um ano após ter-se formado, em 1925, abriu um consultório especificamente voltado para a aplicação do método freudiano. Pode-se dizer que ele fez isso “com a cara e a coragem”, pois enveredou pelos espinhosos meandros psicanalíticos baseado apenas em seus conhecimentos. A análise didática indispensável à sua formação profissional só poderia ser feita a partir de 1936 com a chegada ao Brasil de Adelheid Lucy Koch, a primeira analista formada pela International Psychoanalytical Association (IPA) a atuar na América Latina, uma judia alemã que se radicaria em São Paulo e, posteriormente, se naturalizaria brasileira.
Ficou desse meu conhecimento de Durval Marcondes uma espécie de “anedota”, quando fiz uma pergunta direta sobre o que achava do questionamento da posição de Freud sobre a sexualidade feminina e se valeria ainda em nossos dias a teoria da “inveja do pênis”. Ele não respondeu imediatamente. Na realidade, ficou meio surpreso. Quando alonguei o papo sobre diferenças reais e culturais entre os sexos, Marcondes acabou me dizendo, em um tom paternalista: “Olhe, minha filha, há coisas que a mulher não pode mesmo fazer. Veja no jogo de futebol, por exemplo, um jogo violento, não reparou que os jogadores rolam no chão quando são atingidos numa certa parte? Eles têm de se proteger das boladas que...” Não esperei que terminasse seu raciocínio e atalhei, dizendo: “Ora, doutor, me parece que então são os homens que não deveriam jogar futebol, não é mesmo?”
Modernismo e psicoanálise
Nos círculos científicos, muitos foram os que classificaram Freud como louco, imoral, irresponsável, ou zombaram de suas ideias no início de sua carreira. Mas no meio cultural de vanguarda de sua própria cidade, Viena – que partilhava com Paris o privilégio de “capital intelectual da Europa” –, a psicanálise conseguiu dominar as resistências iniciais e se afirmar com o apoio de escritores e artistas renomados. Em Paris, na década de 1920, foi acolhida também no meio literário e artístico, principalmente entre os surrealistas – grupo ao qual pertencia um jovem, Jacques Lacan, que mais tarde tanta influência teria sobre a continuação da obra freudiana, enriquecida de sua visão.
Não foi diferente em São Paulo, no núcleo dos “rapazes da Semana de Arte Moderna”. Oswald de Andrade foi inegavelmente a figura intelectual predominante no cenário intelectual paulista, instigador e divulgador das novas ideias e tendências que floresciam na Europa após a Primeira Guerra Mundial – ele se tornaria o elemento de ligação imprescindível para trazê-las para a acanhada atmosfera de nossa pátria, já que sua fortuna pessoal permitia-lhe viagens e estadas prolongadas em Paris. Sua fecunda atividade jornalística, com destaque para a coluna que escrevia para o “Correio Paulistano”, e sua aguda percepção das grandes questões culturais e políticas da modernidade fizeram dele referência obrigatória: ser “amigo” de Oswald, ou “pertencer ao mesmo círculo”, era um título que inseria o portador entre os “novos”, os “modernistas”, abertos não somente às correntes artísticas de vanguarda, mas, principalmente, às ideias socialistas, “engajadas”, ou mesmo francamente marxistas.
Em 1929, Oswald já prenunciava que todo o século 20 estaria sob a égide de três pensadores: Nietzsche, Marx e Freud, “...três homens (gênios) que poderão indicar o verdadeiro caminho da (...) autenticidade e (da...) derrocada da exploração patriarcal”. Não deu outra. No referente à psicoanálise, como se dizia naquele tempo, tanto Oswald quanto Mário de Andrade já se referiam muito a ela, às suas conquistas, mesmo antes que ela fosse praticada entre nós. Mário de Andrade, que fora lançado por Oswald e logo se juntara a ele na preparação do Movimento de 1922, já conhecia a obra de Freud pelas revistas alemãs que assinava e começou logo a revelar em seus contos e romances seus conceitos referentes à sexualidade – como exemplifica bem o livro Amar, Verbo Intransitivo. Outro modernista importante, o escritor Menotti del Picchia – que de profissão era tabelião –, estaria entre os membros fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em 1927.
Cristina Facchinetti, no artigo “O Antropófago e Freud”, parte de sua tese de doutoramento em Teoria Psicanalítica (UFRJ-2001), demonstra como o caldo cultural introduzido no Brasil pelas obras de Freud, Marx e Nietzsche possibilitou à geração de 1920 “pensar formas alternativas de civilização, para além daquela tomada como hegemônica, desde o descobrimento”. Salienta ainda essa autora que “assim a psicanálise pôde ser utilizada como instrumento crítico para auxiliá-los a dar voz a formas subjetivas que o racionalismo, o cientificismo e a moral católica haviam sacrificado”.
O pioneiro Marcondes aproximou-se de Oswald e seu círculo, mantendo mesmo durante certo tempo interesses literários, paralelamente com o exercício da medicina. No mesmo ano de 1928 em que iniciava sua prática de consultório, candidatava-se à cátedra de Português no Ginásio do Estado, com a tese: “O Simbolismo Estético na Literatura – Ensaio de uma Orientação para a Crítica Literária Baseada nos Conhecimentos Fornecidos pela Psicoanálise”. Não teve dúvida, submetendo-a logo à aprovação do mestre de Viena, que respondeu, em carta, que devia ser uma tese interessante, lamentando apenas não conhecer português para poder lê-la.
Nos 50 anos seguintes, psicanalistas de tendências diversas, mais ou menos dissidentes da ortodoxia freudiana, foram aportando no Brasil e aqui estabelecendo uma prática, tornando-a cotidiana, quase, tanto na classe mais intelectualizada como na classe média. Em pouco tempo os pacientes – que no início se escondiam, temendo ser tomados por “doidos” – buscaram nos consultórios médicos e nas clínicas psicológicas consolo e equilíbrio, compreensão para os problemas íntimos e familiares acentuados pelas complicações de um mundo em mudança.
Objeções e dissidências
Analisando a expansão meio desordenada das terapias analíticas entre nós, o psicanalista Renato Mezan, no artigo “A Classe Média no Divã” (“Folha de S. Paulo”, de 7 de maio de 2006), lamenta que a prática clínica tenha se disseminado tanto sem correspondência no necessário debate teórico: “À diferença do que ocorreu na Argentina, aqui não se desenvolveu um trabalho teórico. As teorias kleinianas [de Melanie Klein] e, mais adiante, o trabalho de Wilfred Bion (...) pareciam suficientes aos analistas brasileiros como fundamento e como ferramenta clínica”. Como exemplo dessa tendência, Mezan cita a falta de rigor das traduções de Freud para o português e o viés empírico absorvido dos britânicos na prática clínica, mas “temperado à brasileira” – para o qual a teoria, uma vez aprendida, não precisa ser muito questionada e não deve atrapalhar o contato direto com o paciente.
O debate interno que se trava atualmente no movimento psicanalítico mundial é intenso e extenso, centrado, principalmente, na questão de definir se, e apesar do pluralismo de orientações e opiniões, existe um campo comum teórico a todas as correntes. Desde o final do século 19, até hoje, acumularam-se as visões diferenciadas, as dissidências acaloradas – desde as mais conhecidas do público, como as de Alfred Adler, Carl Jung, Harry Sullivan, Karen Horney, Karl Abraham e Melanie Klein, até as que pertencem mais ao domínio do pensamento filosófico, como as de Félix Guattari e Gilles Deleuze (Anti-Édipo) e Jacques Derrida.
O prestígio do psicanalista hoje está em dois polos: a eficiência clínica para uns, ligados à prática psiquiátrica, e o campo do saber, do pensamento filosófico, para outros. O nome de Jacques Lacan tornou-se obrigatório, com sua volta ao “freudismo”, sua reformulação em termos mais atuais (e complicados) das doutrinas do inconsciente e do Édipo – no Brasil, atualmente, ninguém se diz mais “freudiano puro”, todos os profissionais da saúde mental, tanto os do setor médico como os psicólogos, fazem questão de se dizer também “lacanianos”. O prestígio do psicanalista tem aumentado e tornou-se manifesto em quase todos os campos culturais, assim como a vinculação da doutrina psicanalítica a um número cada vez mais amplo de ciências humanas, como a antropologia, a sociologia, a linguística, e principalmente a filosofia.
No entanto, apesar de todo o desenvolvimento do método freudiano e do seu enriquecimento teórico, com o aporte multidisciplinar no que tange à sexualidade feminina, infelizmente a vivência cotidiana ainda traz ecos que poderiam ser classificados de “estridentes” ou até “patéticos”, da primeira e simplista definição avançada pelo mestre vienense no final do século 19, isto é, a requentada teoria da “inveja do pênis” e da mulher como ser “castrado”, desprovida de sexualidade própria. Se detectou o descontentamento sexual da mulher na sociedade de sua época tratando sua “histeria”, Freud nunca conseguiu, porém, libertar-se ele próprio do cipoal de preconceitos que caracterizavam sua cultura falocêntrica. O que o obrigou, no final de longa carreira, a confessar sua imensa perplexidade diante do fenômeno mulher – “afinal, o que quer a mulher?”. Desacreditando em sua “cura”, mandou que aqueles que a quisessem entender deveriam procurar explicação na poesia e nas estrelas, talvez, e a reduziu, no território da psicanálise, à condição de um “continente negro”, obscuro e impenetrável.
As objeções e dissidências à psicanálise foram se amontoando desde o início de sua divulgação, e entre elas são relevantes as posições assumidas por duas mulheres: Melanie Klein (1882-1960) e Karen Horney (1885-1952). A primeira, nascida em Viena, foi uma pesquisadora autodidata que se dedicou à análise infantil. Embora concordando com Freud sobre os dois instintos básicos – agressão e libido –, divergiu dele na suposição de que o ego existe ao nascimento e enfatizou a importância fundamental da mãe na elaboração da personalidade de todos, meninos e meninas (teoria sobre “o seio bom” e “o seio mau”), relativizando o “complexo de Édipo” e o trauma da castração.
Dedo na ferida
Já alemã Karen Horney, formada em medicina em 1910, logo enveredou pelos estudos então pioneiros da psicanálise. Em 1920, ligou-se ao Instituto para a Psicanálise de Berlim, onde permaneceu vários anos, como docente. Ela firmaria posições teóricas bem diferenciadas somente a partir de 1930, após emigrar para os Estados Unidos, onde trabalharia com expoentes como Erich Fromm, Harry Stack Sullivan e Karl Abraham. Em 1941, assumindo sua dissidência do freudismo ortodoxo, Karen fundou uma nova instituição, a Association for the Advancement of Psychoanalysis. Sua principal crítica a Freud envolveu a “inveja do pênis” pela mulher – no seu ver, o mestre vienense só tropeçara, na sua clínica, no que seria o sentimento de ciúme e ressentimento feminino diante do poder genérico do homem no mundo, sem o reconhecer. Ela admitia que a “inveja do pênis” podia ocorrer ocasionalmente nas neuroses femininas, mas contrabalançava-a com a “inveja do útero” que acontece com os homens desde tempos imemoriais, pela sua impossibilidade de parir crianças, como as mulheres. E atribuía um caráter de compensação à desmedida ambição e desejo de sucesso do homem, pelo fato de não poder dar à luz filhos, amamentá-los e criá-los. Viu também o complexo de Édipo sob uma luz mais complexa do que a freudiana, e enfatizou os aspectos culturais e sociais das diferenças sexuais no mundo inteiro.
No Brasil, debates sobre esses temas existem, mas são muito precários e poucos, e restritos aos departamentos de “estudos de gênero” de algumas universidades. Da mesma forma, o movimento feminista, que tantos e tão profundos efeitos teve sobre nossa cultura e nossos costumes a partir da década de 1970, parece estar totalmente estagnado, em um contentamento provisório e comodista pelas ditas “conquistas da igualdade sexual” – esquecidos os grandes problemas e as estatísticas mundiais, relativas ao ainda patente desequilíbrio de salários e de oportunidades de trabalho entre homens e mulheres – e à constante e diária violência contra a mulher (não esquecer que o Brasil figura em 7º lugar no ranking mundial de países caracterizados por esse tipo de violência [dados de 2012]: a cada duas horas uma mulher é assassinada, em geral pelo marido ou companheiro).
Exceção nesse panorama de indiferença e falta de motivação intelectual é o trabalho de algumas psicanalistas, como o de Maria Rita Kehl, em seu livro Deslocamentos do Feminino, de 2006, e em vários artigos posteriores. Ela não hesita em colocar o dedo na ferida e denunciar a fragilidade, a falácia do conceito freudiano de “feminilidade”, que fazia questão de ignorar o desejo da mulher e a acorrentava definitivamente à domesticidade, aos caprichos masculinos e a uma impositiva maternidade que seria “sua única e legítima compensação pela sua inferioridade por não possuir um falo”. Kehl vai além, corajosamente, quando questiona inclusive o outro papa da psicanálise atual, Jacques Lacan, formulador e estilista de novo figurino para o velho freudismo. Como ela diz, em seu livro: “Lacan não se dá conta de que sua psicanálise, ainda mais estritamente que a freudiana, remete as mulheres a uma posição insustentável, chamada por ele de ‘a posição feminina’; uma posição subjetiva que é a de objeto, equivalente à condição da passividade infantil, comparável à do masoquismo primário e cujo gozo cobra o preço do desamparo subjetivo frente à pulsão de morte”.
Outra contribuição importante encontramos nos escritos de uma psicanalista gaúcha que se doutorou e fez parte do corpo docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Márcia Arán, falecida em 2011. Em tese publicada em 2003, “Os Destinos da Diferença Sexual na Cultura Contemporânea”, ela analisou também os “deslocamentos do feminino”, isto é, as várias transformações pelas quais passam na sociedade atual os conceitos de feminilidade, acrescidos dos aspectos relativos da “desconstrução do masculino”. Em numerosos outros escritos enfocou a necessidade de se continuar o debate sobre psicanálise e feminismo, vendo-o como “uma mola propulsora de teorizações sobre subjetividade e cultura”, e definindo “o teor misógino das principais teses psicanalíticas sobre a sexualidade feminina”, contrastado com o número significativo e crescente não só de mulheres pacientes, mas de mulheres analistas.
Foi somente em escritos de Arán que pude encontrar menção à psicanalista e filósofa belga Luce Irigaray – inteiramente desconhecida entre nós, mas de reputação mais do que estabelecida na Europa e na América do Norte, e inteirar-me da urgência de trazer para nosso debate seus textos e suas ações.
A mulher que desafiou Lacan
Nascida na Bélgica, em 1932, Luce Irigaray é hoje uma das mais destacadas filósofas e psicanalistas europeias, conhecida também pela sua constante atuação no campo dos direitos da mulher. É uma pensadora multidisciplinar, que trabalha nos campos da filosofia, da psicanálise e da linguística, denunciando a “ausência”, a exclusão proposital da mulher dos mais desenvolvidos círculos da filosofia e da psicanálise. Desde 1964 atua principalmente em Paris, no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), ocupando, atualmente, o cargo de diretora de pesquisa em filosofia daquela instituição. Em junho de 2013, duas universidades, a de Bristol (Inglaterra) e a de Bergen (Noruega), realizaram simultaneamente simpósios sobre seu pensamento e sua obra – com palestrantes vindos inclusive dos Estados Unidos, da Austrália, da Finlândia e de outros países europeus.
Na sua luta constante, destaca-se um episódio: após doutorar-se em filosofia e em linguística, estudou, nos anos 1960, na Escola Freudiana de Paris, fundada e liderada por Jacques Lacan. Mas em 1974, quando publicou a tese Speculum de l’autre femme, criticando o falocentrismo da psicanálise freudiana e lacaniana, foi expulsa desse círculo e também da Universidade de Vincennes, onde lecionava. Apesar disso, o livro deu-lhe enorme visibilidade e ela pôde continuar até hoje sua carreira, prestigiada como psicanalista, docente em outras universidades, ativista e escritora.
No site da Amazon, há 104 livros de Luce Irigaray listados, todos publicados por grandes editoras europeias e norte-americanas, em inglês, francês, italiano, alemão e espanhol, sendo imensa também a bibliografia de análise e divulgação de sua obra. Não há obras em língua portuguesa, e todo o material referencial tem de ser colhido no exterior.