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O compositor da praia e do mar
Por: HERBERT CARVALHO
Fundada em 1882 por descendentes de portugueses, a Companhia Nacional de Navegação Costeira batizara com nomes derivados da palavra indígena ita (pedra no idioma tupi) seus navios a vapor de cabotagem, frota que, na primeira metade do século 20, respondia pelo transporte da maior parte das cargas e dos passageiros entre o norte e o sul do Brasil. De um deles, o Itapé, desembarcou em abril de 1938, no porto do Rio de Janeiro, um jovem baiano prestes a completar 24 anos, que depositava no violão bem embrulhado, disfarçado para não comprometer o portador, suas esperanças de vencer na então capital da República.
Com o instrumento que o acompanharia até o fim de seus dias, aos 94 anos de vida, já havia feito algumas canções em homenagem a Salvador, sua terra natal, e muitas outras ainda faria em mais de seis décadas como compositor, entre elas a toada nostálgica descritiva da trajetória dos que, como ele, pegaram um Ita no norte “pra vim pro Rio morá”.
Mulato com sangue italiano nas veias, nascido há exatos cem anos, Dorival Caymmi (1914-2008) deixou uma obra única na música popular brasileira, responsável por colocar, juntamente com os livros de seu amigo conterrâneo e parceiro Jorge Amado, a Bahia em destaque no mapa cultural do mundo. Sem antecessores ou sucessores – já que seus filhos são musicalmente mais vinculados a Tom Jobim e à Bossa Nova do que ao pai –, as 120 músicas que compôs se dividem, de acordo com o crítico Jairo Severiano, em quatro segmentos: as canções praieiras, os sambas de roda, as cantigas sobre temas folclóricos, estas vertentes marcadamente baianas às quais se somaram, posteriormente, os sambas-canções de inspiração carioca. “É uma música atemporal, soa atual hoje como nos anos 1950, quando foi incorporada pelos cultores da Bossa Nova”, completa.
Integrante da talentosa geração de compositores da chamada Época de Ouro (de 1929 a 1945), que tornou a música brasileira conhecida e apreciada mundialmente, Caymmi diferia de seus pares em vários aspectos: cantava suas próprias músicas acompanhando-se ao violão, que aprendera a tocar sozinho; teve raros parceiros e uma produção quantitativamente menor (média de duas canções por ano), pois compunha sem pressa, chegando a levar anos para concluir uma melodia.
Suas canções falando do mar, do boi da cara preta (em Acalanto, feita para ninar a filha) ou do pião que entrou na roda “parecem ter sempre existido”, segundo o músico e professor de semiótica Luiz Tatit, para quem Caymmi representa o lado zen da canção. Intuitivo dotado de excepcional musicalidade, inventor de uma batida no violão que mais tarde se tornaria matéria-prima para os afro-sambas de Baden Powell, o autor de O que é que a Baiana Tem? revelou para o mundo, com esse samba meio jongo, meio lundu, os pendores cinematográficos de Carmen Miranda. A seguir, Problemas Brasileiros resgata esta e outras proezas do baiano eternamente deitado em sua rede esplêndida, cujo sonho de compor “uma Ciranda Cirandinha que se perdesse no meio do povo” está hoje materializado cada vez que alguém canta: “Eu vou pra Maracangalha, eu vou...”.
“D” de Deus
A saga dos Caymmi na Bahia começa no início da segunda metade do século 19, quando o milanês Enrico Balbino, bisavô de Dorival, desembarca em Salvador para trabalhar na construção do Elevador Lacerda que, inaugurado em 1873, até hoje liga as partes alta e baixa da cidade. Um dos sete filhos de Enrico com a portuguesa Maria da Graça, Henrique, de pele branca e olhos azuis, escandalizou a família ao decidir, ainda em plena vigência da escravidão no país, casar-se com a mestiça Saloméa de Souza.
Assim, veio ao mundo Durval Henrique Caymmi, apelidado de Ioiô e já munido das credenciais que transmitiria ao filho famoso: mulato e charmoso, farrista e mulherengo, dançava maxixe e frequentava o candomblé, além de tocar violão e bandolim. Em 1909 casou-se com Aurelina Cândida Soares, a Dona Sinhá, com quem teve dois filhos que nasceram enforcados no cordão umbilical. Fez então uma promessa de batizar daí em diante os descendentes com nomes iniciados por “D”, de Deus, para que vingassem, o que de fato viria a ocorrer com Deraldo, Dorival, Dinah e Dinahir. A tradição do “D” seria mantida pelo compositor no batismo dos três filhos, pois o verdadeiro nome de Nana Caymmi é Dinahir, homônimo da tia.
A infância e a juventude de Dorival Caymmi na capital da Bahia guardam estreita ligação com suas músicas. A Preta do Acarajé, que entoa pregões em nagô e português (“ô acarajé eco olalai ô, vem benzê, ê, em, tá quentinho, lê abará...”), evoca a casa em que nasceu na Rua do Bângala (hoje Luiz Gama), nome de um grupo etnolinguístico de Angola. À influência africana das vendeiras, cuja oralidade fixou-se em sua memória de criança, soma-se o ambiente das igrejas e celebrações religiosas que o cercou desde quando sua família se instalou na ladeira do Carmo, em 1925, nas imediações do Pelourinho.
“A gente vivia perto de umas 38 igrejas”, conta o compositor na biografia escrita por sua neta Stella Caymmi (Dorival Caymmi: o Mar e o Tempo, Editora 34). Trezentas e Sessenta e Cinco Igrejas e Festa de Rua, que descreve a procissão de barcos do Senhor dos Navegantes a cada dia 1o de janeiro, refletem uma cidade tardiamente urbanizada, resumida nos versos de Você já Foi à Bahia?: “Nas sacadas dos sobrados/Da velha São Salvador/Há lembranças de donzelas/Do tempo do Imperador”.
Os quatro pianos espalhados pelas casas dos tios de Dorival davam o tom dos saraus em que se cantavam modinhas e operetas, influenciando o garoto que se comovia ao ouvir a Élégie, de Jules Massenet, melodia que guardou e repetia, aos quatro anos de idade. Começa a cantar no coro em novenas e missas, até que lhe cai nas mãos o método para violão de Canhoto, apelido de Américo Jacomino, o autor de Abismo de Rosas.
Aos 16 anos, o baiano Dorival começa a compor paródias e versões, quando sua vocação para a música rivaliza com o talento para desenhar, que o leva a matricular-se na Escola de Belas Artes da Bahia. Mais tarde, o que talvez muitos de seus fãs musicais desconheçam, chegaria a se destacar como pintor, apadrinhado pelos amigos e mestres Portinari e Clóvis Graciano. Nesta seara, pintou retratos, figuras e paisagens que lhe permitiriam até a profissionalização, se esta não tivesse chegado antes, pela via da voz e dos acordes.
Quando abandonou o ginásio para trabalhar como auxiliar de escritório, na passagem de seus 17 para 18 anos, descobriu o universo que decidiria seu destino: as areias brancas da então longínqua praia de Itapuã, onde passou a veranear com o irmão e os amigos, hospedados em humildes casas de pescadores. “Eu passei a amar o mar, a gente de lá com roupas simples, chapéu de palha, agulhas de tecer rede, tudo feito por eles mesmos”, recorda Caymmi, que caminhava por entre os coqueirais, desde o ponto final do bonde em Amaralina até os domínios de Chico, Ferreira e Bento, personagens que povoariam músicas traduzidas até para o hebraico, em disco de muito sucesso lançado em Israel, na década de 1970.
Balangandãs
As primeiras canções que o próprio autor batizaria de praieiras, temática que desenvolveu e praticamente esgotou em obras-primas como O Mar, cujos versos parecem reproduzir o vai e vem das ondas em nossos ouvidos, faziam parte de sua bagagem ao chegar na capital de um país recém mergulhado na ditadura do Estado Novo. Mais uma razão para esconder o violão que ganhara de José Rodrigues de Oliveira, o Zezinho, inseparável amigo de infância na Bahia, de quem se falará mais adiante. Em fins da década de 1930, aquele instrumento musical ainda era preconceituosamente associado a vadios e malandros.
O primo José Brito Pitanga, que o recebeu no Rio de Janeiro, logo recorreu à ajuda do então consagrado compositor baiano Assis Valente, autor de Camisa Listrada, para inserir o conterrâneo nos meios do rádio, que Dorival já frequentara em Salvador. Uma oportunidade surgiu no programa de outro compositor, Lamartine Babo, que lhe franqueou os microfones da Rádio Nacional para cantar Noite de Temporal, canção praieira de melodia impressionista acentuada pelo violão tocado quase como um berimbau.
Em poucos meses o filho de Durval Caymmi e Aurelina Cândida estaria contratado por rádios como a Tupi para mostrar as composições que trouxera, anotadas num caderno, sobre as coisas da Bahia, entre elas uma que chama a atenção de Henrique Foréis Domingues, o Almirante. Assim apelidado por ter servido na Marinha, o famoso radialista estava encarregado de encontrar uma música para substituir Na Baixa do Sapateiro, que Carmen Miranda não iria mais cantar no filme Banana da Terra porque Ary Barroso, o autor da canção, resolvera exigir de última hora 10 contos de réis por sua liberação. Era o dobro da quantia anteriormente combinada com o produtor americano Wallace Downey, que considerou a pretensão absurda.
O que é que a Baiana Tem?, a música que se encaixava com perfeição nos cenários e figurinos já prontos do filme, começara a surgir na mente de Dorival ao visitar a oficina de um tio ourives na Bahia, que lhe mostrara alguns balangandãs, pencas de pequenos fetiches em prata e ouro, usados pelas baianas de “partido alto” nas festas populares. “Quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim”, sentenciava um ditado da época incorporado ao samba que descrevia os detalhes de um figurino com torços (turbantes) de seda e panos da costa, daí por diante eternamente associados à figura brejeira da Pequena Notável. Balangandã se tornaria palavra da moda, presente no espetáculo Joujoux e Balangandãs, escrito por Henrique Pongetti, e na marcha homônima de Lamartine Babo.
Carmen cantou a música em Banana da Terra e depois a gravou em dueto com Dorival em disco de 78 rpm, que tinha A Preta do Acarajé no lado B. “O Senhor do Bonfim o protegia”, arrisca Ricardo Cravo Albin em seu O Livro de Ouro da MPB ao comentar o evento fortuito que colocara a rainha absoluta da Época de Ouro no caminho do baiano, que só soube depois dos detalhes que levaram à escolha de sua música: “Fiquei embaraçado porque era o extremo, eu, um anônimo, e Ary Barroso, a glória da música popular”. O mineiro Ary, também autor de No Tabuleiro da Baiana, guardaria certa mágoa do rival musical, superada mais tarde quando chegaram a gravar juntos um LP, cada um cantando as canções do outro.
Nos anos de 1940 e 1950, a carreira de Dorival Caymmi atingiria o auge, com sucessos estrondosos. Última gravação do Bando da Lua no Brasil antes de seguirem para acompanhar Carmen Miranda nos Estados Unidos, a melodia O Samba da Minha Terra, mais tarde gravada ao vivo por João Gilberto no famoso show da Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, eternizaria a frase que diz: “quem não gosta de samba/bom sujeito não é/é ruim da cabeça/ou doente do pé”. É Doce Morrer no Mar, parceria com Jorge Amado, foi criada a partir do romance Mar Morto, do escritor, sobre os mestres de saveiros da Bahia. O samba-canção Dora surgiu durante uma estada de Caymmi em Recife, ao ver uma mulata desfilar na frente de um bloco, que se tornaria “a rainha cafuza do frevo e do maracatu”. Homenagem à capital de Pernambuco, a música foi feita em 1941, mas só gravada três anos depois, o que era comum em razão da calma proverbial do compositor.
“Monge chinês”
Duas outras canções, João Valentão e Maracangalha, são emblemáticas da criatividade de Caymmi. A primeira começou a ser feita em 1936, inspirada na figura do pescador Carapeba, de Itapuã. Após dizer que era “brigão”, dava “bofetão” e “a todos intimida”, descreve os “momentos da vida” desse João que se “espreguiçava” e “deitava na beira da praia”. Como que contagiado pelo clima da música, parou por aí. Um dia no bonde, em pleno Rio de Janeiro, no ano de 1945, ocorre-lhe o final: “Assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir para sonhar, porque não há sonho mais lindo, do que sua terra não há”. “Isso durou nove anos, tempo que não se sentiu. Tempo não é para fazer sofrer”, explicou candidamente à neta biógrafa.
Já o responsável por Maracangalha foi Zezinho, companheiro de boemia na Bahia, que desconversava quando o amigo insistia para que viesse ao Rio de Janeiro. Um dia o compositor descobriu a razão: Zezinho tinha quatro filhos com uma amante. Para visitar a família clandestina sem que a esposa desconfiasse, forjava um telegrama que requisitava sua presença de comerciante no vilarejo do Recôncavo Baiano e anunciava: “Eu vou para Maracangalha”. A sonoridade da palavra contribuiu para que Dorival colocasse no mapa musical do Brasil um lugar que sequer conhecia, que nada tinha a não ser decadentes usinas de açúcar, mas que se tornou em nosso imaginário um refúgio paradisíaco como Passárgada, de Manuel Bandeira.
Sempre muito assediado pelas mulheres, sobre as quais exercia um forte fascínio, Dorival Caymmi conheceu aquela que seria a mãe de seus filhos e companheira de toda a vida em 1939, num programa de calouros da Rádio Nacional. Loira de olhos verdes, alta e bonita, a mineira Adelaide Tostes trocara o nome de batismo por Stella, acrescentando Maris por sugestão do radialista César Ladeira. Então uma cantora promissora, Stella Maris abandonou a carreira para dedicar-se ao marido e aos filhos Nana (que a exemplo da mãe também escolheu o nome que a tornaria conhecida), Dorival (ou Dori, como ele se projetou no meio musical) e Danilo, nascidos respectivamente em 1941, 1943 e 1948. Ao contrário da mãe de Dorival, que em 1927 escandalizou a sociedade da época ao separar-se por causa da reiterada infidelidade de Durval Caymmi, Stella suportou as puladas de cerca do companheiro e manteve-se ao seu lado. Morreu em 2008, aos 86 anos, onze dias após a morte do marido.
Em fins dos anos 1950, o advento da Bossa Nova foi muito menos traumático para Dorival Caymmi do que para os outros compositores de sua geração, subitamente relegados ao esquecimento pelos meios de comunicação. No texto de apresentação na capa do histórico LP Chega de Saudade, após louvar as qualidades de João Gilberto, ninguém menos que Tom Jobim acrescenta um post scriptum que soa como autêntico aval: “Caymmi também acha”. A essa altura os sambas-canções intimistas de sua autoria como Marina, Sábado em Copacabana e especialmente Só Louco, com acordes alterados e harmonias incomuns, representavam credenciais imediatamente aceitas pelos bossa-novistas, que gravariam inúmeras de suas músicas.
Suas experiências internacionais foram marcantes e solidificaram seu ecletismo. Na primeira viagem à Europa, flores à beira de uma estrada em Portugal inspiraram-lhe a valsa Das Rosas, que cantou já vertida para o inglês, nos Estados Unidos, em 1965.
A década de 1970 registra seus dois últimos grandes êxitos. Em Oração da Mãe Menininha ele estreita relações com o candomblé, que lhe havia dado o título de Obá, equivalente a mestre ou ministro dessa religião afro-brasileira. A canção, gravada em dueto por Maria Bethânia e Gal Costa, homenageava os 50 anos da famosa mãe de santo do terreiro do Alto do Gantois, assim chamado em honra a um rico francês que, após a Abolição, repartira para ex-escravos suas terras em Salvador. Em 1975, o veterano baiano emplaca mais uma nas paradas de sucesso: contrariando seus hábitos, aceita compor por encomenda da Rede Globo a Modinha de Gabriela, para a abertura da novela adaptada da obra de Jorge Amado, com Sônia Braga no papel central. A liberdade de espírito da personagem é plenamente retratada pela música que encanta o Brasil, na voz de Gal Costa.
Mais duas viagens ao exterior marcariam a fase final de sua carreira. Na década de 1980, integra uma caravana de artistas brasileiros organizada por Chico Buarque de Hollanda para se apresentar em Angola, no ápice da guerra civil no país africano. Três anos depois está em Roma para participar com João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, entre outros, do Festival Bahia de Todos os Santos. Vestido de branco, enfrenta e conquista um público de 5 mil pessoas. O jornal “Il Messaggero” celebra: “É o poeta da simplicidade, do povo e do mar”.
Entre as muitas homenagens prestadas a Caymmi que se registram na própria música popular brasileira, destacam-se as de Gilberto Gil e Chico Buarque. O primeiro diz na composição Buda Nagô: “Dorival é um monge chinês/Nascido na Roma Negra, Salvador.../Teve o mundo a seus pés.../...nem ligou...”. O segundo, em Paratodos, atesta sua atualidade no século 21: “Contra fel, moléstia, crime/Use Dorival Caymmi”.