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Casa da Seleção em palpos de aranha

Aguaceiro foi impiedoso com a cidade / Foto: Nilton Junior/Agência Estado
Aguaceiro foi impiedoso com a cidade / Foto: Nilton Junior/Agência Estado

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

Seja qual for o desempenho do Brasil na Copa do Mundo da Fifa 2014, o sentimento de vitória se espalha por antecipação entre os 170 mil moradores de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Na condição de anfitriões da seleção brasileira de futebol antes e durante o grande certame, que começa no dia 12 de junho, eles esperam um movimento turístico sem precedentes em torno do vai e vem da equipe, que ficará concentrada na Granja Comary, cartão-postal da cidade. A contagem regressiva rumo à festa esportiva não apaga, porém, o trauma da tragédia vivida pela cidade em janeiro de 2011, quando um cataclismo arrasou a zona urbana e a rural e tirou a vida de 392 teresopolitanos.

A despeito de tantos infortúnios, Teresópolis está sendo preparada para acolher a seleção e o séquito de pessoas que a seguirá – craques, cartolas, pessoal de apoio, jornalistas daqui e do exterior, turistas estrangeiros e torcedores de todos os cantos do país, além de familiares dos atletas. Na Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Teresópolis (Aciat), o diretor de turismo, Vinicius Claussen, prevê que, até o fim do campeonato, em julho, pelo menos 50 mil visitantes estarão na cidade, que fica a 93 quilômetros do Rio. Os preparativos para a recepção aos turistas unem governo e empresários em torno da Comissão da Copa, criada em dezembro de 2013 e que é presidida pelo vice-prefeito, Marcio Catão.

A mil metros acima do nível do mar, afamada pela temperatura amena, pela tranquilidade e pela tragédia climática, Teresópolis não tem mais vagas para junho nos 62 hotéis e pousadas do município, que totalizam 4,5 mil leitos. Em mutirão, a prefeitura e as entidades de comércio e hotelaria correm contra o tempo para embelezar ruas, praças e o eixo rodoviário entre a Estrada Rio-Bahia (BR-116), que atravessa o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, e o outro extremo da cidade, a Várzea.

A Granja Comary, a “casa da seleção brasileira”, como é chamada pelos moradores do lugar, é um ponto turístico forte da cidade, foi inaugurada em 31 de janeiro de 1987 com o nome Centro de Treinamento Heleno de Barros Nunes (Cetrhen), em homenagem a seu idealizador. Nunes presidiu a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), precursora da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), de 1975 a 1979, na ditadura militar. Presidente também da seção fluminense da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que dava sustentação ao governo, o cartola não viu seu sonho concretizado, pois faleceu em 1984. A denominação pomposa e a sigla, todavia, nunca vingaram, pois foi mesmo como Granja Comary, o nome antigo do lugar, que o centro de treinamento ficou conhecido.

Com 150 mil metros quadrados e visão privilegiada para o Dedo de Deus, pico com 1.692 metros de altura e presença obrigatória nas fotografias turísticas de Teresópolis, Comary foi reinaugurada em 26 de março deste ano, ao fim das obras de modernização que duraram mais de um ano e custaram R$ 15 milhões. A reforma abrangeu os apartamentos; os salões de jogos, musculação, vídeo e preleções; as instalações de fisioterapia; a biblioteca; o restaurante; a lanchonete e as dependências de serviço e recepção de familiares dos jogadores. Na área aberta, com quatro campos de tamanho oficial, a CBF restaurou uma arquibancada com capacidade para acomodar centenas de jornalistas de várias partes do planeta que virão à cidade para reportar a rotina do time canarinho durante a Copa.

Para sorte dos teresopolitanos, a CBF não conseguiu tirar do papel o projeto de construção de um megacentro de treinamento no bairro carioca Barra da Tijuca, em terreno adquirido em 2009, mas envolvido em controvérsias fundiárias. A confederação também cogitou alojar a seleção no município de Cotia, na Grande São Paulo, no Centro de Formação de Atletas Laudo Natel. A opção por Teresópolis foi reforçada, contudo, pelas preferências do técnico Luiz Felipe Scolari e do coordenador Carlos Alberto Parreira, que treinaram na Comary os times com que o Brasil conquistou os mundiais de 2002 e 1994. Vale lembrar que a seleção se preparou na Granja para cinco Copas, entre 1990 e 2006.

Veraneio da elite

Na falta de recursos municipais para enfeitar a cidade à espera do grande acontecimento, a participação dos empresários foi providencial para a prefeitura, que destina grande parte do orçamento anual, de R$ 392,1 milhões, para o pagamento da folha de funcionários e aposentados, o custeio dos serviços públicos, a manutenção da cidade e a recuperação dos estragos produzidos pela tempestade de 2011. “Só a municipalidade não tem como resolver tudo. Por isso, o capital particular está trabalhando em parceria para ajudar a embelezar a cidade”, diz o vice-prefeito Catão, que personifica a parceria público-privada informal já que também dirige o Teresópolis Shopping Center, o maior do município.

Para não deixar a cidade fazer feio aos olhos dos turistas, a Comissão da Copa realiza reuniões semanais, a fim de avaliar a execução de um plano de ação que inclui desde a arrumação de calçadas e praças à sinalização vertical em cruzamentos e locais de grande movimentação, passando pela pintura de faixas de pedestres no eixo principal, colocação de placas indicativas, criação de um corredor de publicidade no caminho da Granja Comary e o cerco aos pichadores. Por obra da comissão, 10 mil mudas de hortênsias e outras flores foram plantadas ao longo de algumas vias e parte dos 220 taxistas locais recebeu noções básicas de inglês para interagir com os turistas estrangeiros.

Para os mais velhos, o movimento gerado pela Copa revolve reminiscências de outros tempos, quando o futebol não brilhava na cidade, mas ela tinha fôlego para se projetar no cenário nacional por outros caminhos. A realização em Teresópolis, em 1965, de um dos primeiros festivais cinematográficos do país, é um dos símbolos desse passado, quando autores e atores do nascente cinema brasileiro viam-se às voltas com a censura imposta pelo recém-instalado regime militar. Esses eventos são tema de um documentário em média-metragem dos cineastas teresopolitanos Leo Bittencourt e Regina Carmela, intitulado Cidade dos Festivais, lançado em 2005.

A cidade teve origem numa fazenda criada, em 1821, pelo português George March, descendente de ingleses, e o começo de tudo teve como berço o atual bairro do Alto. Situada à beira de um caminho que ligava o fundo da Baía de Guanabara a Minas Gerais, a propriedade agrícola de March e o movimento de tropeiros deram vida a uma povoação que logo se espraiou em direção à parte baixa da região, que pertencia a Magé. Em 1891, o lugar foi promovido à condição de município e ganhou o nome de Teresópolis em homenagem à imperatriz Teresa Cristina, mulher de dom Pedro II, que havia falecido dois anos antes.

Destino de veraneio da elite carioca desde o Império, por conta de um vasto cinturão de Mata Atlântica, do clima de montanha e da vida pacata, Teresópolis teve incipiente desenvolvimento industrial no século 20. A única empresa de grande porte do município, a têxtil Sudantex, que chegou a ter mais de mil empregados, encerrou suas atividades em 2006, abatida pela concorrência imposta pelos produtos importados da China. Pela mesma razão fecharam as fábricas de bijuterias, que também mantinham muitos postos de trabalho. A cidade abriga hoje duas fábricas de bebidas, uma empresa desenvolvedora de programas para computador e estabelecimentos industriais de médio e pequeno porte. Somem-se a isso o comércio, o turismo e a produção de verduras e legumes para o mercado carioca. Essa é a base da economia teresopolitana.

O Produto Interno Bruto (PIB) do município é estimado em R$ 3,2 bilhões (0,6% do estadual), maior do que o de Nova Friburgo (184 mil habitantes), cidades próximas, só que quase três vezes inferior ao da também vizinha Petrópolis (297 mil habitantes), as três mais importantes cidades da região serrana do Rio de Janeiro. Ao lado das atividades de economia formal, a cidade tem uma das maiores feiras de artesanato a céu aberto do país e na qual se misturam, nos finais de semana, barracas de roupas, móveis, cerâmicas e bijuterias. O grande orgulho dos habitantes do lugar, porém, são as imensas áreas de Mata Atlântica e a rica biodiversidade do município, preservadas no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, no Parque Estadual dos Três Picos e no Parque Natural Municipal Montanhas de Teresópolis.

Fora da rota

Teresópolis vive situação singular diante de Nova Friburgo e Petrópolis, que experimentaram desenvolvimento econômico mais acentuado. Enquanto Petrópolis valeu-se de laços históricos com a capital do estado, carreando investimentos industriais para dentro de seus limites, e Nova Friburgo se transformou em um polo fabril e comercial de um rosário de pequenas cidades ao seu redor, Teresópolis amargou um certo distanciamento do processo de crescimento da economia fluminense. No presente, estas cidades têm em comum o fato de estarem fora da rota dos grandes investimentos em curso no estado.

“Das três, Teresópolis talvez seja o caso mais dramático sob o ponto de vista de um projeto de desenvolvimento e a que tem enfrentado mais dificuldades na área”, destaca o doutor em economia Jorge Luiz Alves Natal, ex-professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor do estudo Desenvolvimento e Políticas Públicas na Região Serrana Fluminense – Uma Região Perdedora, publicado em 2013, Natal observa que a serra ficou para trás devido a fatores como o deslocamento dos eixos da economia para a indústria do petróleo, no norte fluminense, e para o polo metalmecânico do Médio Vale do Paraíba.

Três anos após a tragédia em que mais de 3 mil famílias ficaram sem casa, os teresopolitanos não receberam até agora nenhuma das 1.660 moradias populares prometidas pelo governo do estado, com recursos do programa federal Minha Casa, Minha Vida. Por conta de entraves jurídico-burocráticos, somente em agosto de 2013 tiveram início as obras de infraestrutura numa área à beira da rodovia Rio-Bahia, na Fazenda Ermitage, para a edificação das primeiras 700 residências. No mesmo mês, a prefeitura adquiriu um terreno para a construção de 120 habitações, mas ainda busca apoio federal e estadual para a empreitada.

De concreto, os desabrigados recebem um subsídio mensal de R$ 500 para a locação de moradias, enquanto aguardam por um teto só deles. O chamado aluguel social é pago pelos governos municipal e estadual a 2,4 mil famílias dos 80 bairros e localidades que sucumbiram sob as fortes chuvas no fatídico janeiro de 2011. Pelo menos 800 beneficiários tiveram de recorrer à Justiça para ter o direito ao apoio, em face da inconsistência dos dados cadastrais do município. A alta dos aluguéis, apesar da inflação baixa, já levou famílias a se mudarem até três vezes – algumas delas, para áreas de risco. “Não temos um plano habitacional”, resume Claudio Carneiro, conselheiro da Associação das Vítimas das Chuvas do Dia 12 de Janeiro em Teresópolis (Avit). Diante do drama da falta de casas vivido pelos mais pobres, organizações sociais criaram o Fórum Permanente de Habitação Popular, que conseguiu aprovar na Câmara de Vereadores a criação do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS), resultado de proposta de iniciativa popular com 5 mil assinaturas. Por lei, a prefeitura deve depositar 3% da receita própria no fundo, para a construção de moradias.

Topografia acidentada

Parte dos teresopolitanos sem casa e moradores das muitas áreas de risco beneficiaram-se de duas alternativas criadas em 2012 pelo estado: a compra assistida de moradia, com recursos estaduais, ou o recebimento de indenização para deixar os locais inseguros. As duas possibilidades foram suspensas, porém, por decreto de dezembro de 2013, para protesto da Avit e do Fórum de Habitação. O estado argumenta, no decreto, que “o número de moradores constantes do cadastro social que optaram pelo recebimento de uma unidade habitacional construída é muito inferior ao número de unidades habitacionais ofertadas”, portanto, não sendo necessário o pagamento de indenizações por parte do estado.

Os impactos do aguaceiro que desabou na região foram agravados pela topografia acidentada e pela ocupação desordenada de encostas nas últimas décadas. Em Teresópolis, a falta de recursos municipais, as carências técnicas da prefeitura e a morosidade da máquina pública fizeram se arrastar as obras de recuperação, que perduram até hoje – e não só no caso da construção de casas para os desabrigados. Mesmo com o apoio do governo estadual, a municipalidade ainda tem muito a fazer para restabelecer a normalidade em áreas urbanas e rurais varridas pela enxurrada.

O ritmo dos trabalhos foi retardado também pelos sobressaltos da política local. Em agosto de 2011, o prefeito Jorge Mario Sedlacek foi afastado pela Câmara, por mau uso de verbas destinadas ao socorro da cidade. Seu vice, Roberto Pinto, ocupou o posto por dois dias e faleceu, de infarto, sendo sucedido pelo presidente do Legislativo, Arlei de Oliveira Rosa, que teria as finanças de 2012, durante o mandato-tampão, rejeitadas no ano seguinte pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ). Segundo colocado na última eleição, Arlei permaneceu no comando da prefeitura, pois a candidatura do mais votado, o ex-prefeito Mario Tricano, foi impugnada pela Justiça Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa.

Os serviços de recuperação do município são alternados pela prefeitura com a rotina de manutenção dos bairros e povoados rurais. Com R$ 2 milhões, doados ao Fundo Especial de Combate a Emergências e Calamidades Públicas, a administração municipal agregou recentemente à sua frota mais doze caminhões, além de motoniveladora, escavadeira hidráulica e retroescavadeira. No mutirão para devolver aos teresopolitanos de áreas mais atingidas as condições de mobilidade anteriores ao temporal, o estado mantém uma patrulha mecanizada com 16 veículos e máquinas na zona rural, onde não terminou o trabalho de remoção de terra para a liberação de estradas vicinais, o desassoreamento de cursos de água e a drenagem de águas pluviais.

Enquanto a contenção de encostas prossegue na área urbana, a reconstrução de pontes continua na rural. Mais de 50 foram destruídas pela enxurrada, deixando isoladas pequenas comunidades, além de devastar lavouras e estrangular o escoamento da produção de verduras e legumes, para infortúnio de centenas de pequenos agricultores. A maioria dessas obras está sendo promovida pelo governo estadual como parte de um pacote de projetos que, de acordo com a prefeitura, totalizam recursos da ordem de R$ 493,8 milhões. Os trabalhos incluem a drenagem do Rio Paquequer, o principal do município, e dos afluentes Príncipe e Imbuí, responsáveis pela inundação que destruiu tudo o que estava à frente.

A expectativa associada à hospedagem da seleção faz contraponto com o impacto da tragédia e a lentidão da recuperação da cidade. “É uma chance de reposicionarmos Teresópolis”, afirma o diretor de turismo da Aciat, o comerciante Vinicius Claussen. “Para os teresopolitanos, vai melhorar a autoestima, tão abalada”. Somente os gastos diários dos visitantes, acredita Claussen, deverão injetar mais de R$ 12 milhões na economia do município. Dono de dois restaurantes, ele está aproveitando a Copa para abrir a terceira unidade na cidade. Os hoteleiros também apostaram alto, ampliando a oferta de leitos. Parte do empresariado já pensa nas Olimpíadas de 2016 e torce para que Teresópolis possa alojar não só atletas brasileiros, mas também algumas delegações estrangeiras.