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A dor de cotovelo musicada
Por: HERBERT CARVALHO
“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?” Quem sabe, senhor ou senhora, jovem ou contemporâneo do autor desses versos, precisará de Nervos de Aço – como no título da canção a que eles pertencem – para não se emocionar diante da obra de um compositor que cantou, como nenhum outro em nosso cancioneiro, as desilusões e o abandono, a traição e o ciúme, a saudade e a ternura. Aclamado pelo apresentador José Blota Júnior como o criador da dor de cotovelo, Lupicínio Rodrigues (1914-1974) fez jus ao gênero na arte e na vida, passada na sua maior parte em mesas de bar e restaurantes (alguns de sua propriedade) a beber e a chorar amores perdidos madrugadas a fio, até que paixões novas substituíssem as velhas. Cada caso vivido, por ele mesmo ou por amigos, se transformava em poesia e no mais das vezes em sambas-canção, ou ainda em valsas, toadas, marchas e guarânias, num total de mais de 300 músicas, metade das quais preservadas em gravações antigas e atuais.
Esse estilo de música-verdade, notabilizado pelo uso explosivo do óbvio, da vulgaridade, da frase feita e do “lugar-comum incomum”, de acordo com a definição do concretista Décio Pignatari, resultou em canções que “podem lidar com o banal, mas nunca são banais”, como explica outro poeta concreto, Augusto de Campos, para quem, enquanto outros compositores buscam e rebuscam a letra, Lupicínio ataca de mãos nuas, armado apenas dos clichês da nossa língua.
“Me fazer passar tanta vergonha/ Com um companheiro/ E a vergonha/ É a herança maior que meu pai me deixou”. Este trecho de Vingança, sucesso que chegou a provocar suicídios e correu o mundo gravado até em japonês, é citado por Campos como exemplo da ousadia do poeta popular que “no esquadrinhamento da aventura amorosa não hesita em confinar o grotesco com o patético”. Compor, para este gaúcho, era revelar um estado passional, era escavar a vivência anterior em busca dos recônditos do espírito, era esbarrar no dramalhão, mas salvaguardando a sinceridade, acrescenta o também compositor e professor Luiz Tatit, titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
O próprio Lupicínio, entretanto, apesar de aclamado, sentia-se à margem do ambiente musical brasileiro, com o qual dizia nada ter a ver. “Não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Sou boêmio.”, declarou um ano antes de morrer em célebre entrevista ao jornal “O Pasquim”. Problemas Brasileiros resgata a trajetória de um mulato, de origem pobre e de pouco estudo, que superou todas as barreiras, inclusive a geográfica, para tornar-se integrante da Época de Ouro (1929-1945) da música popular brasileira sem abandonar a Porto Alegre natal, que neste ano se engalana para comemorar o centenário de um dos seus filhos mais ilustres.
Micróbio do samba
Ninguém até hoje conseguiu descobrir quem teria sido o herói da então recém-deflagrada Primeira Guerra Mundial de nome Lupiscínio (com sc) que, segundo consta, inspirou o batismo do quarto filho (e primeiro homem) do porteiro da Escola de Comércio, na capital gaúcha, Francisco Rodrigues, e de sua mulher, Abigail. Lenda ou não, o imaginário bélico teria plena acolhida pelo futuro compositor que enxergava as disputas amorosas como batalhas: durante a Segunda Guerra Mundial aproveitou o conflito como pano de fundo para os versos dramáticos de Dona Divergência, que “com seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais./ E eu, combatente atingido/ Sou qual um país vencido/ Que não se organiza mais”. Consta, também, que Lupi (em alguns textos biográficos o diminutivo é grafado como Lupe) teve 18 irmãos, embora os registros oficiais confirmem apenas oito.
O certo é que nasceu na Ilhota, bairro então periférico de Porto Alegre formado pelas voltas do arroio Dilúvio (hoje canalizado em linha reta), onde moravam negros e mulatos descendentes de escravos. A parteira teve que ser trazida de canoa naquele 16 de setembro de 1914 porque chovia a cântaros, intempérie que se repetiu na mesma cidade 60 anos depois, no dia de sua morte. Apesar de constantemente alagado, o lugar era festeiro e não faltava, entre a própria família de Lupicínio, quem cantasse e tocasse violão ou cavaquinho. Fazia parte da Cidade Baixa, região de Porto Alegre também conhecida como “O Reduto dos Seresteiros” naquele início de século 20, quando começavam a despontar no cenário musical local o compositor e maestro Radamés Gnattali e o flautista Dante Santoro.
Embora também gostasse muito de música, Francisco Rodrigues não achou a menor graça quando ouviu a diretora da Escola Complementar queixar-se do filho de seis anos com a frase “o guri só quer cantar”. A reclamação perseguiria o aluno relapso por mais dois colégios até esgotar-se a paciência do pai, que decidiu encaminhá-lo ao mercado de trabalho. Aprendiz de mecânico de bondes na Companhia Carris Porto-Alegrense, menino de recados na fábrica Micheletto e baleiro em frente ao Cine Garibaldi, nada afasta o garoto daquilo que de fato gosta: de dia, o futuro torcedor do Grêmio, que em 1953 comporia o hino do time tricolor, jogava futebol na liga da Canela Preta; à noite revelava-se bom de copo, de samba, de mulher e de boemia, ganhando uns trocos como cantor da Bandinha Furiosa, formada por músicos em média 20 anos mais velhos do que ele.
“Vejam, meus amigos, que desde pequeno trazia no sangue o micróbio do samba”, ele explicava, já adulto, a vocação que o levara a compor, aos 14 anos, a marchinha Carnaval, mais tarde vencedora do Concurso Oficial da Prefeitura de Porto Alegre para o reinado de Momo de 1933. O pai, entretanto, não se convence: alterara a data de nascimento do rebento, que ainda não completara 16 primaveras, para alistá-lo como “voluntário” no 7º Batalhão de Caçadores.
A emenda saiu pior que o soneto. No Exército, cantando baixinho no estilo intimista de Mário Reis, tornou-se crooner de jazz e amigo inseparável do catarinense Nuno Roland, cantor que faria carreira no rádio e no disco. Em 1932 ambos assistiriam no Cine Theatro Imperial, devidamente fardados, ao show dos Ases do Samba, que trazia entre eles ninguém menos do que Noel Rosa, Francisco Alves (o Rei da Voz) e o ídolo inspirador Mário Reis, os quais encontra na mesma madrugada em um bar. “Esse garoto é bom, vai longe”, vaticina Noel ao ouvir canções de autoria do recruta 417, que comenta com o amigo: “acho que o Chico (Francisco Alves) ainda vai cantar minhas músicas”.
As canções que serão gravadas na década seguinte por Chico Viola – como o cantor era chamado –, porém, ainda não haviam sido compostas, por falta de musas. A primeira delas surgiu em Santa Maria da Boca do Monte, a mesma cidade a 300 quilômetros de distância de Porto Alegre que um século depois se tornaria mundialmente conhecida pela tragédia da boate Kiss. Ali, para onde fora transferido como castigo por indisciplina, o já cabo Lupicínio conheceu Iná, causadora da primeira dor de cotovelo “federal”, como classificava os desamores “que a gente não esquece nunca”, enquanto os menos doídos seriam apenas de âmbito “estadual”.
Os dois acabaram comprometidos, mas o boêmio crônico esquiva-se das investidas da família da noiva, que exige o casamento, até que ela própria resolve: vou casar-me sim, com ele ou com outro. Quando a encontra na capital gaúcha numa festa de Nossa Senhora dos Navegantes ao lado do marido, o golpe transforma-se, no dizer do compositor e jornalista Arthur de Faria, na “mais acachapante e abjeta cornitude” da nossa música, expressa nestes versos: “Há pessoas de nervos de aço,/ Sem sangue nas veias e sem coração,/ Mas não sei se passando o que eu passo/ Talvez não lhes venha qualquer reação// Eu não sei se o que trago no peito/ É ciúme, é despeito, amizade ou horror/ Eu só sei é que quando a vejo/ Me dá um desejo de morte ou de dor”.
“Que marinheiro, nada!”
Após dar baixa do Exército, Lupi está de volta a Porto Alegre, em 1935, e, novamente, é enquadrado pelo pai, que lhe consegue a colocação de bedel na Faculdade de Direito, cargo que ocuparia até 1947, quando consegue, por vias transversas, uma aposentadoria precoce por “invalidez”. A chance de não repetir a sina paterna – de ser funcionário público do quadro de portaria e músico só nas horas vagas – surge por meio de um concurso de música popular, instituído pela prefeitura para comemorar o centenário da Revolução Farroupilha.
O samba vencedor é Triste História, que ele fez em parceria com Alcides Gonçalves, cantor, compositor, pianista e violonista já então conhecido na cidade (mais tarde cantaria à frente da orquestra de Simon Bountman em shows no Copacabana Palace), que fez o papel de plataforma de lançamento da obra lupiciniana, amargando em relação a ela um injusto ostracismo: ele é quem grava pela RCA Victor um disco 78 rpm que, além de Triste História de um lado, traz do outro Pergunta a Meus Tamancos, canções com letra de Lupicínio e música de Alcides que inauguram no mercado fonográfico a extensa série temática das traições amorosas. A dobradinha se repetiria em clássicos difundidos na voz grave de Chico Alves, como Cadeira Vazia e Quem Há de Dizer. A primeira fala do lugar guardado para o amor que se foi e a segunda é o retrato do próprio Alcides, músico de cabaré condenado a esperar que a namorada bailarina termine de dançar com e para os clientes.
O grande sucesso que tornou Lupicínio conhecido em todo o país e ainda de quebra tornou-se responsável pela revelação de sambistas de diferentes gerações foi um samba considerado um dos melhores de todos os tempos por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello na obra A Canção no Tempo. Batizado como Se Acaso Você Chegasse, composto na calçada do Café Colombo, em Porto Alegre, como forma de contar a um amigo ausente que acabara de lhe roubar a namorada, é um dos raros sambas animados de Lupi, gravado com muito suingue em 1938 pelo então estreante Ciro Monteiro e regravado em 1959 com êxito ainda maior por uma Elza Soares em início de carreira.
Como a criação de um gaúcho ainda anônimo chegou até à gravadora no Rio de Janeiro? A lenda, espalhada pelo autor, é a de que marinheiros a teriam assimilado nos inferninhos das cercanias do porto e a recomendado para as orquestras dos respectivos navios de cabotagem, então responsáveis pela principal ligação entre as cidades litorâneas brasileiras. “Que marinheiro, nada! É tudo conversa! Eu é que levei o samba”, garante Alcides, embora ressalve não ter tido participação na feitura da música. Composto unicamente por Lupicínio, que não tocava qualquer instrumento, mas harmonizava letras com melodias na base do assobio ou da caixa de fósforos, o samba tem registrado, entretanto, um parceiro, Felisberto Martins. Tratava-se do diretor artístico da gravadora Odeon, que assina outras 20 canções de Lupi sem jamais ter contribuído com uma palavra ou nota delas, fato revelador das agruras por que passavam os grandes criadores da nossa música para ter sua produção reconhecida e comercializada.
A partir desse estouro, Lupicínio vai ao Rio, então a capital federal, e por lá fica alguns meses durante o ano de 1939. Frequenta o famoso Café Nice, faz amizade com Wilson Batista e Ataulfo Alves, acerta-se com Francisco Alves, que passa a gravar suas músicas, com destaque para Esses Moços (Pobre Moços), outro recado, desta vez tentando dissuadir um amigo muito mais jovem às vésperas do casamento: “Esses moços, pobres moços/ Ah! Se soubessem o que eu sei/ Não amavam, não passavam/ Aquilo que eu já passei”.
Na década de 1940 é também lançado o xote Felicidade pelo Quarteto Quitandinha, cantado num filme da Atlântida e que deu início ao movimento regionalista dos Centros de Tradição Gaúcha. A música, composta ainda nos tempos de Santa Maria, tem mais estrofes além das duas conhecidas. Uma delas, gravada por Inezita Barroso, retrata bem o ambiente rural gaúcho: “Na minha casa tem um cavalo tordilho/ Que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem/ Quando eu agarro seus arreios e lhe encilho/ Sou pior que limpa-trilho/ Corro na frente do trem”. Em uma obra aparentemente desenraizada por se ocupar principalmente do tema universal do amor, Cevando o Amargo e Jardim da Saudade são outras das poucas músicas de Lupi com alusões à terra em que nasceu.
Boêmio casado
Em 1949 ele se casou com Cerenita Quevedo Azevedo, que conhecera quando ela era ainda criança, em Santa Maria. Nesse momento Lupicínio estava oficialmente viúvo: desposara pouco antes uma moça chamada Juraci, que tivera uma filha com ele e lhe pediu, no leito de morte, que se casassem para legalizar a situação. A menina, Tereza, seria adotada por Cerenita, que por sua vez se tornaria mãe de Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho, que entre outras iniciativas para preservar o legado do pai lançou, em 1995, o livro Foi Assim, coletânea de textos escritos pelo compositor para o jornal “Última Hora”, de Porto Alegre, entre fevereiro de 1963 e fevereiro de 1964.
Em uma dessas crônicas, intitulada “Boêmio Deve Casar?”, ele responde positivamente à pergunta exibindo para a vida real o mesmo machismo e a misoginia que transborda das letras em que coloca as mulheres como instáveis e traiçoeiras. “Boêmios solteiros raramente atingem os 40 anos, enquanto os casados morrem de velhos, isto quando tiverem a sorte de encontrar no casamento a sua segunda mãe, pois nossas esposas devem substituir nossas mães”.
Assim dito o que hoje horrorizaria feministas e politicamente corretos em geral; assim feito ao lado de Cerenita, que aceitou até a morte do marido uma rotina que o dividia em dois seres distintos: aquele que de segunda a sexta, do anoitecer até às quatro da madrugada, fazia a ronda pelos bares cercado por mulheres da noite – e o outro, que diariamente alimentava as galinhas e os passarinhos, fazia o almoço da família e reservava os fins de semana para o convívio com a esposa, os filhos e os netos.
De um lado uma mulher só, a sua. Do outro várias, o que levou seu parceiro e sócio no restaurante Batelão, Rubens Santos, a dizer-lhe um dia que ele era o São Francisco, esclarecendo: “Não o santo, mas o rio, porque você vive cercado de piranhas”. Lupi, entretanto, via a coisa de modo diferente: “Tenho sofrido muito na mão das mulheres, porque sou muito sentimental, mas também tenho ganhado fortunas com o que elas me fazem. Cada uma que faz uma sujeira me deixa inspiração para compor algo. Meu primeiro automóvel foi comprado assim, minha casa também. Se eu tivesse que dividir meus direitos autorais com as inspiradoras das minhas músicas, nada sobraria para mim”, escreveu em outra crônica. Por falar em direito autoral, Lupicínio seria durante quase 30 anos o representante regional em seu estado da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem).
Uma única traição podia render, inclusive, várias composições. Foi o que ocorreu com a carioca Mercedes, que o passou para trás com um sobrinho dele. Depois de mandá-la embora, fica sabendo que ela estava chorando por ele na mesa de um bar. Nasce Vingança, maior sucesso de toda a carreira da cantora Linda Batista, que repercutiu num jornal da época por meio da seguinte notícia: “Primeiro uma moça ligou a vitrola e deixou o disco Vingança tocar até que, influenciada pela música, abriu o bico de gás e esperou que a morte terminasse com a tristeza de sua vida. Agora um moço, abandonado pela namorada, fez o mesmo gesto com a mesma música”. Quando Mercedes quer reatar a relação, vem a resposta musical nos versos de Nunca: “Nunca/ Nem que o mundo caia sobre mim/ Nem se Deus mandar, nem mesmo assim/ As pazes contigo eu farei”.
Na década de 1950, em uma Porto Alegre que chegou a ser chamada de “A Capital do Samba-Canção”, ocorre o encontro entre Lupicínio e José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, intérprete dos sambas-enredo da Mangueira que coloca, daí por diante, seu vozeirão a serviço dos dramas conjugais musicados do gaúcho. Mas logo surgem a Bossa Nova e a Jovem Guarda para eclipsar aqueles que serão atirados à vala comum da Velha Guarda, praticamente banida dos meios de comunicação. Mas não por muito tempo, no caso de Lupi. Na década de 1970, Caetano Veloso transformou Felicidade em uma lentíssima toada e influencia Gal Costa a incluir Volta no célebre LP Índia. E a conterrânea Elis Regina grava Cadeira Vazia e Maria Rosa, esta última composta para mulher outrora bela, cercada por pretendentes, que se vê abandonada na velhice.
Morto em 1974, por insuficiência cardíaca decorrente de diabetes, Lupicínio Rodrigues ganha em Arrigo Barnabé seu intérprete do século 21 (com o show Caixa de Ódio, lançado em DVD) e se perpetuará neste ano por meio de escultura em tamanho natural a ser instalada na frente do Centro Municipal de Cultura que leva seu nome na capital dos gaúchos.