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Depressão: a doença da alma
Por: MILU LEITE
Somos o que pensamos. Sidarta Gautama, o Buda, fundador do budismo, já afirmava assim há mais de 2.600 anos, mas até hoje poucas pessoas se dão conta de como isso é verdadeiro. Com base nos recentes estudos neurocientíficos, contudo, podemos nos arriscar a dizer que não apenas somos o que pensamos, como também caímos doentes por causa disso. Nos últimos anos, parcela respeitável de cientistas especializados no cérebro humano recorre a mapeamentos nunca antes imaginados, e estes estudos, feitos com precisão, estão abrindo portas para a compreensão e, consequentemente, a adoção de novos tratamentos a várias doenças, entre elas a depressão. Ao que tudo indica, a qualidade dos pensamentos influencia diretamente o nosso organismo. Infelizmente, as demandas geradas pela vida moderna têm se revelado um campo fértil para pensamentos ruins, já que o ritmo e as insatisfações do dia a dia agem como um combustível infindo para o rancor e a desesperança.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão já afeta em algum grau cerca de 350 milhões de pessoas e é a causa de 850 mil suicídios por ano em todo o mundo. No Brasil, 13 milhões sofrem do mal (dados de 2009). Para piorar, quem já amargou algum episódio da doença tem 50% de chance de abrigá-la novamente. Por isso, a depressão é apontada pela OMS como a quinta maior questão de saúde pública do planeta, devendo ser alçada ao primeiro lugar até 2030, à frente do câncer e de doenças infecciosas.
Popularmente tida como o “mal do século” ou doença da alma, ela vai muito além disso. “A depressão (diminuição do humor) pode ser sintoma de várias condições médicas, efeito de drogas e situações de vida. Pode ser também uma síndrome que faz parte de uma série de transtornos mentais (bipolaridade, esquizofrenia, doenças orgânicas cerebrais etc.) ou uma doença (Depressão Maior), que se apresenta sob múltiplas formas: típica, atípica, melancólica ou catatoniforme”, esclarece o psiquiatra William Dunningham, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Grosso modo, pode-se dizer que a depressão, quando doença, é uma espécie de tristeza infinita que se soma a outros fatores (físico e químico) e é gerada por um desequilíbrio no organismo, sobretudo no cérebro, o comandante maior do nosso corpo. Na prática, o que acontece é a falta de vontade e de energia para fazer seja lá o que for, incluindo alimentar-se, namorar e trabalhar, tornando a abrangência do problema muito maior, uma vez que ele se estende a outras pessoas. Os níveis de acometimento variam do leve ao severo – e quem sofre de depressão severa não encontra uma razão sequer para acordar e sair da cama e, se o faz, é com extraordinário esforço, exceto se recebe medicação específica. Nos casos extremos, o deprimido pode até tirar a própria vida. É importante ressaltar, contudo, que nem todo suicida sofre de depressão, “mas entre os que sofrem do transtorno, 30% tentam se matar, ato que pode ou não ser concretizado”, alerta o psiquiatra.
Receio e apreensão
Entre muitos desafios, os que se impõem como mais prementes são o acerto e a rapidez no diagnóstico. “Os principais entraves para o tratamento consistem na preponderância de sintomas físicos entre as manifestações psicopatológicas da depressão. Este fato determina uma via-crúcis do paciente por clínicos gerais e especialistas os mais diversos em busca da identificação de alguma doença”, explica Dunningham. Este itinerário pode durar até dois anos, ao cabo dos quais o paciente vai ser finalmente encaminhado ao psiquiatra, que então firmará o diagnóstico. A explicação para tantos enganos se deve ao fato de dor e depressão terem uma via neuroquímica comum. De acordo com as estatísticas da OMS, pacientes com sintomas depressivos procuram atendimento médico sete vezes mais do que aqueles que não têm o distúrbio. Menos da metade é diagnosticada corretamente e recebe tratamento adequado. De modo geral, dores crônicas, ansiedade, insônia e estresse motivam as incessantes idas aos consultórios, pois o desequilíbrio de noradrenalina (neurotransmissor envolvido na regulação do humor, do ciclo de sono e na resposta ao estresse) desencadeia eventos em cascata.
Tais manifestações, que no começo surgem como ansiedade, não tardam a caminhar no sentido da depressão. Estudos apontam que mais de 60% dos episódios depressivos são precedidos por um quadro de sensação de receio e de apreensão e que a insônia crônica aumenta quatro vezes o risco de se ter depressão. Já o estresse crônico acarreta a diminuição do fator de proteção neuronal, o que leva à morte de células e à atrofia de determinadas regiões cerebrais.
Análises baseadas em tecnologia de neuroimagem apontam que, na depressão, acontece uma redução das atividades em áreas corticais, algumas delas responsáveis pela modulação de respostas emocionais, motivação e atenção. “Em contrapartida, há maior metabolismo de áreas mais ‘primitivas’ do cérebro, como a ínsula – relacionada à sensação de repulsa –, e do sistema límbico como um todo, com amplo papel no processamento de emoções negativas”, informa artigo publicado no site da ABP pelo psiquiatra Kalil Duailibi, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), de São Paulo. Segundo ele, uma das principais características da depressão é a interpretação do mundo priorizando as perspectivas negativas. O médico ressalta a ocorrência do fenômeno conhecido como kindling, ou seja, o primeiro episódio de quadro depressivo é desencadeado por um evento estressor. Após essa primeira manifestação, os acontecimentos passam a ser desencadeados por situações diversas, de intensidade menor ou até mesmo sem nenhuma razão aparente. Trata-se, na verdade, de um tipo de suscetibilidade crônica, envolvendo alterações cerebrais, muitas ainda não compreendidas, e certos estímulos ambientais.
De acordo com relatório publicado pela OMS, em 2011, a depressão grave é um problema de saúde pública em todas as regiões, e, em algumas nações, está vinculada às condições sociais. O estudo foi feito em 18 países, de alta e de baixa renda, incluindo o Brasil. Segundo o relatório, quase 15% da população tida como mais rica já teve depressão. O percentual é menor – 11% – nos grupos de renda mais baixa. A maior prevalência no ano anterior à pesquisa foi registrada no Brasil, com 10,4%, e a menor no Japão, com 2,2%. Além disso, os pesquisadores observaram que nos países mais ricos a idade média de início dos episódios de depressão é 25,7 anos, contra 24 anos nos menos desenvolvidos. Ainda assim, nas nações com alta renda os jovens são os mais vulneráveis, ao passo que nas regiões menos ricas o grupo de maior incidência é formado por idosos. Os dados referentes ao Brasil foram colhidos na área metropolitana de São Paulo, em 2009, e indicam que 44,8% da população já apresentou algum transtorno mental pelo menos uma vez na vida. A avaliação, feita com base em 5.037 entrevistados, mapeou outros transtornos relacionados à depressão como ansiedade, pânico e fobias.
Epidemia silenciosa
Diante de estatísticas tão alarmantes, não há como fugir do óbvio: a depressão é uma doença gravíssima, sendo, por isso, necessário que se faça a adoção urgente de projetos de saúde pública com abrangência nacional que a coloquem em lugar de destaque. Em julho de 2012, o deputado Giovani Cherini (PDT-RS) apresentou projeto de lei que autoriza o Sistema Único de Saúde (SUS) a prestar atendimento aos portadores de depressão. Pelo projeto, o SUS terá de oferecer assistência ao paciente com tratamento farmacológico, psicológico e de terapia ocupacional, até que ele fique bem. Em março de 2013, o projeto de lei recebeu parecer favorável do relator da Comissão de Seguridade Oficial e Família e desde então aguarda os pareceres da Comissão de Finanças e Tributação e da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O primeiro grande alerta sobre o crescimento da doença em escala mundial foi feito em 2009, quando a OMS conclamou países do ocidente e do oriente a adotarem medidas preventivas, informando que “a epidemia silenciosa se tornaria grave em vinte anos”. Os milhões de deprimidos ao redor do planeta e as perspectivas de que a depressão se torne a doença mais comum até 2030 atestam a veracidade dos prognósticos. Para Dunningham, “em parte, este aumento do número de doentes se deve à melhora da acurácia psiquiátrica para o diagnóstico”. Entretanto, é verdade também que “as mudanças da vida social ocorridas em escala global nos séculos 19 e 20, com o desarraigamento das pessoas das suas comunidades de origem e o superpovoamento dos grandes centros urbanos, acarretaram elevados níveis de estresse. Esse fator se assesta sobre uma base genética ‘privilegiada’ para a depressão ou traços de personalidade vulneráveis, aumentando a incidência e a prevalência do transtorno na população em geral”, conclui Dunningham.
Doença penosa, a depressão vem sendo tratada há décadas com medicamentos que, se por um lado ajudam os pacientes a retomar sua vida, por outro obrigam-nos a lidar com uma extensa variedade de efeitos colaterais, desde o ganho de peso, passando por comprometimento da libido, alterações no sono e dependência química.
A psicoterapia é a grande aliada no combate à doença, mas a depressão não deve ser considerada como um problema psicológico. Em entrevista ao jornal “O Globo”, Gitte Moos Knudsen, neurologista e pesquisadora-chefe da Unidade de Pesquisa em Neurobiologia do Hospital da Universidade de Copenhagen, na Dinamarca, alertou para o perigo dessa simplificação. De acordo com ela, “a depressão é uma doença cerebral, que pode ser tratada de diversas maneiras. O fato da psicoterapia ser uma dessas alternativas não significa que a depressão seja um fenômeno de origem psicológica. Essa forma equivocada de pensar tem levado as pessoas a imaginarem que pode ser possível aos pacientes superar a doença apenas com a vontade de mudar, e esse definitivamente não é o caso”. A neurologista chamou a atenção, também, para o uso abusivo de medicação, enfatizando que “como qualquer tratamento de saúde, os antidepressivos devem ser utilizados de forma cautelosa, e somente quando prescritos por profissionais qualificados”.
Pulo do gato
Como prevenir-se de uma doença que, ao que tudo indica, pode estar estreitamente vinculada à vida moderna? A melhor prevenção consiste em diagnosticá-la precocemente e iniciar prontamente o tratamento correto. E, mesmo no campo mais conservador, este não pode se restringir ao uso de medicação alopática, uma vez que somente 50% dos pacientes respondem ao tratamento com remédios, restando aos outros 50% a procura por outras maneiras de enfrentamento.
Uma dessas opções é a técnica de estimulação cerebral eletromagnética, que está disponível no Brasil desde 2012, mas ainda é pouco acessível à maioria dos doentes por seu alto custo. Testada em Curitiba pelo médico neuropsiquiatra Wesley Hummig, ela recebeu aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e já conta com a cobertura de alguns planos de saúde. Contudo, não está acessível pelo SUS. Em declaração à imprensa, no ano passado, Hummig afirmou que de cada cinco pessoas submetidas à estimulação cerebral eletromagnética, três melhoram da doença em pouco tempo. É importante ressaltar que essa técnica nada tem a ver com o eletrochoque, vilão de outros tempos e que ainda hoje é aplicado, mas de maneira menos lesiva ao paciente.
As boas notícias não param por aí. O verdadeiro “pulo do gato” foi dado no final de 2013, com o início das pesquisas de estimulação elétrica do nervo trigêmeo por uma equipe da Santa Casa de São Paulo. Se ficar comprovada a sua eficácia, sobrarão muitos motivos para comemorações, e um deles diz respeito ao custo da aparelhagem utilizada, bastante inferior ao do método de Hummig. “A técnica com estimulação magnética que já foi aprovada é muita cara. Um aparelho custa R$ 100 mil. A técnica que estamos pesquisando faz uso de um aparelho de R$ 400”, relata o psiquiatra Pedro Shiozawa, coordenador do Laboratório de Neuroestimulação Clínica do Centro de Atenção Integrada a Saúde Mental (Caism), localizado no bairro paulistano Vila Mariana, e responsável pela pesquisa. Ele garante que, levando em conta a nossa realidade de saúde pública, será possível tratar um número muito grande de pessoas. “Fica mais fácil mandar um aparelho desses para algumas localidades de tratamento do que a própria medicação”, sugere.
Até fevereiro de 2014, 50 pessoas com quadros depressivos graves ou moderados tinham participado da experiência pioneira no país, alicerçada em estudo levado a cabo na Universidade da Califórnia (Ucla), no ano passado, com bons resultados. A equipe do Laboratório de Neuroestimulação do Caism modificou alguns protocolos da pesquisa norte-americana, buscando resultados mais efetivos e, ao que tudo indica, conseguiu. O primeiro grupo de 14 pacientes respondeu muito bem ao tratamento, com melhora de 50% nos sintomas para 13 deles (um paciente teve que abandonar as pesquisas antes por razões de ordem pessoal). Vale informar, também, que um deles simplesmente não apresentou um quadro de melhora, tanto que a equipe de Shiozawa está procurando detectar os fatores que contribuíram para conduzir o tratamento àquele desfecho.
Prática da meditação
A técnica de estimulação do trigêmeo, no entanto, ainda está em fase de estudos e deverá permanecer restrita até que o acompanhamento dos pacientes permita traçar um panorama dos benefícios obtidos e por quanto tempo eles perduram. “Os resultados até agora se referem a pessoas com níveis de depressão grave ou moderada. Mais tarde, quando aumentarmos a gama de pacientes, atendendo aqueles com outros níveis da doença, vamos poder avaliar os resultados sobre eles”, salienta o médico da Santa Casa de São Paulo. A próxima pesquisa será iniciada em breve e deverá ser aplicada a um grupo maior. De acordo com Shiozawa, a oferta de voluntários é alta, o que facilita muito o trabalho de captação. Existem atualmente 400 pacientes interessados em submeter-se ao tratamento. O psiquiatra é precavido, mas não esconde o contentamento com os resultados colhidos até aqui. “Sabemos que não há milagres; nosso intuito é reduzir ao máximo o uso de medicação, dando às pessoas uma existência melhor”, diz.
No quesito qualidade de vida não se pode perder de vista outro tipo de tratamento que tem despertado cada vez maior interesse da classe médica: a meditação. Não é de hoje que a comunidade científica se empenha em pesquisar o funcionamento do organismo dos monges, para entender de que maneira a meditação influencia nos batimentos cardíacos, nos níveis de oxigenação do sangue e, principalmente, como ela afeta algumas regiões do cérebro.
Já está comprovado, por exemplo, que as pessoas que meditam regularmente têm estruturas cerebrais maiores – o hipocampo (relacionado à memória), o córtex órbito-frontal (raciocínio) e o tálamo (emoções). Sabe-se também que os estados meditativos ativam a região do córtex pré-frontal e o cíngulo anterior, áreas ligadas à atenção. Na base de todos esses processos está a diminuição do estresse que, por sua vez, vincula-se à redução da tensão e, consequentemente, à diminuição do cortisol, que em excesso torna-se um hormônio bastante danoso ao organismo.
Em artigo publicado na “Revista Portuguesa de Psicossomática”, os pesquisadores Eduardo Marinho Saraiva, Soares Fortunato e Cristina Gavina explicam por que o cortisol tem implicações sobre os quadros depressivos severos. “O cortisol é um hormônio indispensável à vida e com efeito multifacetado. É sintetizado nas glândulas suprarrenais; a sua produção aumenta significativamente em situações de estresse. A Depressão Maior é uma doença em que existe uma hipercortisolemia”, explicam.
De maneira simples, pode-se afirmar que o relaxamento promovido pela meditação tem efeitos benéficos sobre todo o nosso corpo e também sobre nossa mente. Quem medita se sente mais bem preparado para as agruras da vida e consegue lidar melhor com as situações de estresse, aprendendo a sair delas mais depressa. Seus benefícios já foram testados e estão sendo comprovados em diversos setores da medicina, como a cardiologia, a oncologia, a ortopedia, a reumatologia e, mais recentemente, a psiquiatria.
“Eu acompanhei de perto algumas pessoas que passaram por quadros depressivos e garanto que observei muitas melhoras com a prática da meditação”, resume a terapeuta de healing, Sílvia Guimarães, praticante da técnica há mais de 30 anos (healing é um tratamento que utiliza várias terapias multidimensionais que são trabalhadas de forma integrada). Sílvia ressalta, todavia, que tal qual se dá com o uso dos remédios, a meditação deve ser praticada todos os dias e, para ter efeito duradouro, não pode ser abandonada.