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O grande salto da geração canguru
Por: REGINA ABREU
Muito se engana quem pensa que canguru só existe na Austrália. Este animal, por nascer imaturo, permanece com sua mãe, em uma espécie de bolsa localizada na região abdominal, denominada marsúpio, por até um ano. Ali ele continua seu desenvolvimento, alimentando-se e protegendo-se dos perigos que existem fora da bolsa. Personificados, são indivíduos adultos – alguns com mais de 30 anos – que ainda vivem na casa dos pais e formam o que se chama, por motivos óbvios, de geração canguru. Eles aparecem em grande número na Europa toda, nos Estados Unidos, Canadá, na América Latina, e, é claro, no Brasil. O país campeão nesse quesito é a Itália, onde 48% dos habitantes entre 18 e 49 anos ainda vivem com os pais. Houve até uma proposta para que o governo daquele país financiasse a saída dos filhos adultos (que não vingou por causa da crise econômica que tem afetado a vida dos italianos).
A realidade brasileira não é muito diferente, como comprova estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo o qual um em cada quatro adultos entre 25 e 34 anos ainda moram com os pais sob o mesmo teto, sendo 60% homens e 40% mulheres. Como sinal dos tempos, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou proposta para que seja possível incluir como dependente, na declaração do imposto de renda, o filho de até 32 anos que, morando com os pais, faça faculdade ou curso técnico.
O estudo do IBGE, denominado “Síntese de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira”, mostra a evolução da sociedade em dez anos, de 2002 – quando 20% dos jovens entre 25 e 34 anos viviam com os pais – a 2012, quando essa porcentagem subiu para 24% em faixas de renda mais altas. Segundo a presidente do órgão, Wasmália Bivar, o conforto e o comodismo ou a falta de condições financeiras não são os principais fatores que mantêm esses jovens vivendo com os pais, mas sim a possibilidade de investir na formação para ter mais chances no mercado de trabalho, hoje mais exigente em termos de qualificação. Por isso, ainda de acordo com Wasmália, o prolongamento da permanência no lar paterno torna possível ao filho estudar por mais tempo. Essas pessoas fazem graduação, mestrado, doutorado e vão retardando a constituição de uma nova família.
É um fato notório, presente em nossa sociedade: cada vez mais, os jovens têm preferido estudar a trabalhar, como indicam as pesquisas de emprego e o número de matrículas no ensino superior. Ao trocar o trabalho pela faculdade, os jovens ajudam a derrubar a taxa de desemprego, como se verificou no ano passado. Desempregado não é quem está sem trabalho, mas quem procura e não encontra emprego.
A reviravolta deu-se, em parte, graças a um programa do governo que facilitou o financiamento da formação, segundo estudo dos economistas Aurélio Bicalho e Luka Barbosa, do Departamento de Pesquisa Macroeconômica do Banco Itaú.
Em 2010, o governo melhorou as condições de crédito por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Os juros caíram muito e o prazo para pagar aumentou. As matrículas feitas pelo Fies foram 76 mil, em 2010, e 566 mil, em 2013. O número de jovens inativos cresceu de 2012 para 2013, e a maior parte deles estava entre os que estudavam (82%). É claro que a decisão de estudar em vez de trabalhar depende das condições de vida das famílias. A renda cresceu bastante na última década. Se as famílias estivessem no aperto, os jovens teriam de ajudar em casa e/ou estariam menos inclinados a arcar com um financiamento.
Múltiplos fatores
É difícil apontar as causas desse fenômeno mundial, já que são muitos os fatores que levam os filhos a permanecerem na casa dos pais: “há a questão econômica – quando os filhos não estão empregados e, portanto, não têm condições de se sustentarem, às vezes em função de crises econômicas; tem o comodismo (casa, comida e roupa lavada); e também, o fator emocional – quando mãe e filho não conseguem se separar, ela por medo de ficar sozinha, ele por insegurança, por exemplo”, diz a psicanalista e professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), Belinda Mandelbaum. Ela explica que, nos Estados Unidos, o jovem sai de casa para frequentar o curso superior em outra cidade e, na maior parte das vezes, não retorna mais. É um costume, próprio da cultura daquele país. Isso está começando a acontecer no Brasil. Por outro lado, na Europa, com o agravamento da crise econômica, houve um aumento do número dos que passaram a integrar a chamada geração canguru.
De modo geral, de acordo com Belinda, o fenômeno sempre ocorreu nas classes mais altas. Nas classes sociais mais pobres acontece menos, porque os filhos precisam ficar independentes mais cedo. No máximo, casam e vão morar no mesmo quintal. A pesquisadora do IBGE Cíntia Simões Agostinho tem outra informação. Ela diz que a geração canguru é formada por jovens de um estrato social com renda mais elevada. Citando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2012, feita anualmente pelo IBGE, exceto nos anos em que há censo, ela lembra que “do total de arranjos familiares com parentesco, cerca de 11,5% tinham jovens de 25 a 34 anos de idade na condição de filhos. Para os arranjos familiares com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, esta proporção foi de 6,6%. Esta porcentagem aumentou nas famílias com renda mais elevada, chegando a 15,3% nas faixas de 2 a 5 salários mínimos per capita”. Por isso, segundo a pesquisadora, essa relação direta entre rendimento familiar e proporção de filhos que residiam com os pais pode indicar que o padrão de vida e o nível de conforto que esses jovens usufruem na casa paterna são relevantes a ponto de continuarem residindo no domicílio de origem.
Quando se trata de seres humanos nada é muito simples. Cada “canguru” tem uma história e uma justificativa, como se verifica na tese de mestrado da psicóloga Renata do Nascimento Vieira Munhoz, “A Pertença Estendida de Adultos na Família de Origem”. Para desenvolver o trabalho, Renata entrevistou, em 2010, sete pessoas da geração canguru, entre 26 e 37 anos, sendo cinco mulheres e dois homens. E chegou a uma surpreendente conclusão: “ao contrário do que se acredita, não é uma situação confortável a desses filhos, considerados eternos adolescentes na casa da mamãe: eles sofrem e não gostariam de estar nessa posição”. De certa forma, ela diz, eles se sentem inferiorizados quando se comparam a parentes, amigos e conhecidos da mesma idade já pais de família. E observa também que a família, especialmente a mãe, é ambivalente. Ao mesmo tempo em que sonha ver o filho escalando o mundo, cria empecilhos valendo-se de pequenos cuidados que seriam, em última análise, uma tentativa inconsciente de aprisioná-lo dentro de casa, sonegando-lhe a chance de crescer.
Uma grande mudança
A psicóloga coloca uma questão importante: o que é ser adulto, já que a idade cronológica não parece ter grande importância aqui? Ela lembra que adulto, no Brasil, conforme reza a legislação, é o indivíduo com mais de 18 anos de idade. No entanto, ressalva, a idade cronológica pode não corresponder a outras determinantes, como, por exemplo, a da pessoa responsabilizar-se por si em função de seu esforço e garantir a própria existência, independente do amparo dos pais. Assim, ser adulto é uma condição para além de questões biológicas e implica a possibilidade de corresponder às expectativas sociais de determinado grupo. Não é apenas isso. Numa cidade como São Paulo, onde a tese foi preparada, entre as expectativas sobre o que é ser adulto para a classe média estão: a condição de morar em outro local, que não a casa da família; arcar com suas despesas; ter projetos para o futuro; trabalhar de acordo com a profissão escolhida, em função do curso de graduação, ou, ao menos, trabalhar e ganhar algum dinheiro para prover suas ações.
Mesmo mantendo o próprio sustento, curiosamente, muitas mulheres solteiras continuam a morar com os pais. Por isso, a psicanalista Belinda Mandelbaum, que foi a orientadora de Renata em sua tese, faz uma abordagem da mudança do comportamento feminino. E destaca que até meados do século passado, a mulher só saía da casa dos pais para casar. Ainda hoje, muitas delas, pobres ou ricas, que trabalham e poderiam ser independentes, ainda pensam dessa maneira. Quanto à questão da família, Belinda é taxativa: “Elas existem para serem desfeitas”. Quer dizer: sua existência é temporária – enquanto os filhos são menores e estão sendo preparados para a vida – até um dia saírem do ninho, como deve ser. Segundo ela, “o arranjo canguru atrapalha o desenvolvimento de todos, pais e filhos – o melhor é que cada um cuide de sua própria vida”.
O psiquiatra Paulo Gaudencio, especialista em família, prefere ir além do fenômeno geração canguru – tão comum hoje em dia, que mesmo ele próprio tem uma filha nessa condição. Ele acredita que a humanidade está vivenciando uma grande mudança, “que nós não sabemos onde vai acabar”. Para ele, homens e mulheres estão trocando de papéis. O casamento, com a liberação sexual, deixa de ter importância e é preferível continuar usufruindo o conforto, o status e a despreocupação da casa dos pais. Gaudencio diz que há uma palavra que usamos muito, sem pensar no seu significado. É a palavra manutenção, que significa manter. A compreensão do real sentido da palavra pode explicar toda a enorme mudança que houve no mundo no século passado.
Manutenção é composta de duas palavras originárias do latim: manu (mão) e tenere (ter). Quem mantém tem na mão. Quem é mantido, está na mão. Como o homem é mais forte, trabalhava e manutenia a mulher. Esta é a etiologia da sociedade patriarcal, que marcou profundamente o relacionamento entre homens e mulheres até a Segunda Guerra Mundial. O conflito levou os homens para o front e as mulheres para a fábrica. E elas começaram a se manu tener. Em seguida foram para a faculdade. “Tanto isso é verdade que, quando me formei no curso superior, em 1960, minha turma tinha apenas 10% de mulheres. Hoje, elas são mais de 50%, segundo dados do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo”, compara o médico. E conta que seu trabalho o levou a um contato intenso com empresas, onde o crescimento da mulher é evidente. “Há mulheres na direção de empreendimentos de todos os portes, mas, infelizmente, elas continuam a receber menos dinheiro pelo mesmo trabalho. Isto é uma questão de tempo, porque o processo já foi iniciado”, finaliza o psiquiatra.
Fala-se muito de Simone de Beauvoir, escritora francesa, autora de O Segundo Sexo, e de Betty Milan, psiquiatra e escritora paulista do movimento feminista. Gaudencio acredita que tanto o livro quanto o movimento são sintomas da mudança. Enquanto as mulheres se apropriaram do campo intelectual que era exclusivo dos homens, estes começaram a entrar no campo afetivo, que era exclusivo das mulheres. “Meus filhos e sua geração são mais preocupados com os seus filhos do que eu e minha geração fomos. Tenho tido a mesma experiência no campo profissional. Trata-se de uma geração de pais envolvidos com os filhos. No campo sexual e profissional vejo uma acomodação masculina. Vantajoso para as mulheres? Penso que não”, observa Gaudencio.
Como é ser canguru
Paulo, 33 anos, formado em publicidade há dez, é um representante dos milhões de membros da geração canguru. Ele confessa que mora com os pais porque não tem outra opção, do ponto de vista financeiro. Conta que foi casado durante um ano, quando ele e a moça dividiam as despesas. Mas o casamento não deu certo, o trabalho de corretor de imóveis deixou de render e ele não viu outra saída a não ser voltar para a casa paterna, onde nunca precisou contribuir para pagar as despesas. Ele observa que o trabalho de corretor está desaparecendo porque agora o comprador pode negociar diretamente com o proprietário, por intermédio de sites especializados. No tempo das “vacas gordas”, quando houve o boom do mercado imobiliário, Paulo ganhou muito dinheiro – mas do jeito que ele entrou, também saiu, rápido. Quando o dinheiro acabava, emprestava no banco. Gastava à vontade: “Me esbaldei”, admite.
Agora, acabou. Paulo se culpa, achando que deveria ter feito outro curso, e não publicidade. Talvez engenharia civil ou administração de empresas: “Ou então atuar na área da tecnologia da informação (TI), que está rendendo bem”, ele imagina. Mesmo admitindo ser indeciso em seus posicionamentos, agora tem certeza que outra iniciativa dará certo: pretende abrir uma firma de representação comercial. Para isso, está fazendo pós-graduação em gestão de negócios, com duração de dois anos. O curso, no valor de R$ 13 mil, está sendo pago pela mãe, que sempre lhe deu a maior força e nunca o comparou ao irmão, advogado, casado e independente. Ao contrário, ela sempre o anima, dizendo que sua hora vai chegar.
“Já meu pai é mais difícil, me cobra mais, me dá dinheiro para procurar emprego mas não para as baladas”, reclama Paulo. Segundo afirma, porém, o pai vive se contradizendo, porque ao mesmo tempo em que o pressiona para seguir seu rumo, também ficou “morrendo de saudade” quando o filho foi morar em outra cidade, durante seis meses, por conta do trabalho de corretor de imóveis.
Paulo teve muitos empregos depois que se formou: estágio em agência de publicidade, em banco, depois como assistente financeiro em empresa de contabilidade, até tirar a habilitação do Conselho Regional de Corretores de Imóveis (Creci) para trabalhar com venda imobiliária. Enquanto isso, fez preparatório e prestou concursos. De tudo que passou, tirou uma lição de vida: pretende levar muito a sério a empresa que vai abrir e, em 2015, alugar uma sala e contratar empregados. Ele se acha acomodado e acredita que devia ter sido criado de outra maneira.
Georgia, mãe de Roberto, 30 anos, também se arrepende da criação que deu ao filho, “que foi muito protegido”. Não só por ela, mas por toda a família: as cinco tias por parte de pai adoravam o menino e sempre o cobriram de mimos. O pai, médico, nunca poupou despesas nem com Roberto, tampouco com a irmã mais nova, a quem sempre deu tudo do bom e do melhor, inclusive a faculdade, particular e cara (o filho formou-se em administração aos 22 anos). A mãe conta que, logo depois de formado, ele começou a trabalhar, em banco como estagiário e depois numa multinacional. Mas, pouco antes de ser efetivado, sofreu um acidente e ficou seis meses sem poder colocar o pé no chão.
Mal sarou, conheceu uma moça e um mês depois resolveu morar com ela, no Guarujá, litoral paulista, afastado da família, que mora em São Paulo. Mesmo sem capital, abriu uma confecção de maiôs, quimonos etc., e começou já com dez funcionários; fez um financiamento e comprou um ponto comercial no shopping. Alugou uma casa em condomínio fechado, com quatro suítes, piscina e sauna. O aluguel quem pagava era o pai. Georgia, por sua vez, sempre que visitava o filho fazia uma enorme compra de supermercado e abastecia a geladeira e a despensa. Mas não conseguia agradar a nora, que mesmo assim não falava com ela.
Roberto ficou fora de casa por quatro anos. Nesse tempo, se endividou até a raiz dos cabelos. Georgia conta que ele fazia empréstimo num banco para pagar outro (“papagaio”), e acabou pendurado em dez financeiras – fora os onze cartões de crédito. Uma conta de celular de R$ 1.500 foi paga por uma tia – que ainda colaborou com outros R$ 10 mil. Para pagar uma pequena parte das dívidas, o rapaz vendeu o carro. Depois, Georgia ficou a pé e lhe deu o próprio carro para que fosse vendido com a mesma finalidade. Não adiantou: era uma gota no oceano.
Um belo dia os pais se cansaram de ajudar o filho: “a gente acaba atrapalhando”, lamenta Georgia. “O pai mandou ele se virar”. Fácil de falar, difícil de fazer. Tanto que, em plena viagem de férias com o marido, quando o garçom trouxe para a mesa o prato predileto do filho, Georgia lembrou-se que ele podia estar passando fome e caiu no mais sentido, irrefreável e constrangedor choro. A situação era mesmo para chorar: Roberto enredou-se nas garras de agiotas, perdeu tudo, fechou a loja, os cobradores batiam à porta, ele e a namorada se escondiam dentro de casa para escapar daquilo tudo – até que foram despejados.
O pai de Roberto voltou atrás e recebeu o filho e a nora em casa. No final, o casal se separou e o rapaz continua vivendo com os pais, já há dois anos. Está com o nome sujo porque continua atolado em dívidas, mesmo o pai assumindo o pagamento de trinta promissórias de R$ 5 mil cada. Em miúdos: por questões óbvias, Roberto não consegue emprego. Por enquanto, recebe mesada do pai e está trabalhando informalmente como representante de suplementos energéticos.
(Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.)