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Novas portas para o futuro
Por: EVANILDO DA SILVEIRA
Quando falamos das impressoras 3D, um tema tão em voga, é difícil não cometer exageros. Ou, melhor dizendo, é muito fácil cometer exageros. E não podia ser mesmo diferente, considerando que a imaginação é o limite para o que elas podem “imprimir”. Qualquer imagem virtual em três dimensões – de um feto a uma turbina de foguete espacial, de um biquíni a uma casa ou medicamento – pode ser transformada num objeto concreto, palpável e – mais do que isso – funcional. Não é à toa, portanto, que esses equipamentos estão no centro do que muitos estão chamando de quarta revolução tecnológica e, outros, de pós-revolução. Eles substituem o conceito fordista de produção em massa pela fabricação individualizada, conforme o gosto de freguês. Alguns entusiastas da nova forma de produção acreditam que num futuro não muito distante as fábricas como são conhecidas hoje serão coisas de museu condenadas a figurarem nos livros de história.
A primeira fase da Revolução Industrial começou por volta de 1760, na Inglaterra, e teve como principal característica a mecanização. Ou seja, a substituição do trabalho artesanal, feito em casa, pelo assalariado, exercido nas fábricas que começavam a espocar, com o uso de máquinas – como os teares mecânicos – muitas delas a vapor. A segunda fase da Revolução Industrial teve início mais ou menos em 1870, nos Estados Unidos, e se baseou na metalurgia e na química, sendo o aço um material fundamental. A indústria automobilística, tendo como um de seus fundadores o empresário americano Henry Ford, exerceu papel primordial no período. Foi quando surgiu o fordismo, em referência ao método de trabalho nas linhas de produção das fábricas de Ford, na qual os bens são produzidos em série e em grandes quantidades.
Um século depois, na década de 1970, surgiu a terceira fase, cujo ponto de partida foi o Japão. Ela teve como base a alta tecnologia – daí a expressão que se popularizou, high-tech – o que incluía a microeletrônica, a informática, os robôs, o sistema integrado à telemática (telecomunicações informatizadas) e a biotecnologia. O conceito chave foi o “toyotismo”, criado pela gigante da indústria automobilística japonesa Toyota, que exigia de seus funcionários criatividade e elevada qualificação e, em contrapartida, permitia horários flexíveis. A ideia era substituir os trabalhadores profissionais especializados por especialistas multifuncionais.
Finalmente, em 1984, começou a quarta revolução, com a invenção da primeira impressora 3D, pelo norte-americano Charles W. Hull, conhecido também como Chuck Hull, nascido em 12 de maio de 1939, em Clifton, no estado do Colorado. Ele denominou sua tecnologia de impressão de objetos físicos a partir de dados digitais de “estereolitografia” e a patenteou dois anos depois. Também em 1986, Hull criou a empresa 3D Systems, que até hoje é uma das líderes do mercado, e produziu sua primeira impressora 3D comercial, que foi chamada de Stereolithography Apparatus. Desde então, novas companhias surgiram e a tecnologia não parou de evoluir.
Um dos marcos recentes dessa evolução ocorreu em 2005, quando a companhia Z Corporation, mais conhecida como Z Corp, lançou a Spectrum Z-510, a primeira dessas máquinas de alta definição e em cores. Em 2006, surgiu um projeto open source – programa de pesquisa aberto, que conta com a colaboração de pessoas de vários lugares do mundo – com o objetivo de desenvolver uma impressora 3D autorreplicável, ou seja, que imprimisse as peças para construir outras iguais àquelas. Chamado de Reprap, o projeto apresentou a primeira versão da novidade em 2008. Ela consegue fabricar cerca de 50% das partes de um objeto, por exemplo, de uma moto – ficam de fora componentes eletrônicos e elétricos.
Curiosamente, a expressão “impressora 3D” foi usada pela primeira vez apenas em 1996, 12 anos depois de sua invenção. Apesar de o nome ter se popularizado, ele não é o mais correto para definir esse tipo de máquina. Em termos técnicos, o que esses equipamentos fazem é a chamada prototipagem rápida ou manufatura aditiva. “Essas definições incluem todas as tecnologias de fabricação ou prototipagem baseadas na deposição ou solidificação sucessiva de camadas de material”, explica a arquiteta Gabriela Celani, criadora e coordenadora do Laboratório de Automação e Prototipagem para Arquitetura e Construção (Lapac), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O material, a tecnologia de deposição ou de solidificação e o tamanho da impressora podem variar muito, no entanto”.
Açúcar e chocolate
No começo, segundo Gabriela, que usa a técnica para produzir maquetes, a única tecnologia de fabricação aditiva chamada de impressão 3D era a desenvolvida pela Z Corp, no final dos anos 1990, que lançava mão de um cabeçote comercial de impressora a jato de tinta para papel. “Com o desenvolvimento de máquinas economicamente mais acessíveis, o termo ganhou o mercado, ainda que elas não utilizem nenhuma peça de suas congêneres para papel”, explica. “Na verdade, as mais baratas disponíveis atualmente utilizam uma tecnologia conhecida como FDM (Fused Deposition Modeling), em que um filete de plástico é derretido e depositado camada por camada para formar o objeto”.
Existem, no entanto, inúmeras outras técnicas de fabricação aditiva. No mundo todo, incluindo o Brasil, operam cerca de 40 fabricantes de impressoras 3D, que se enquadram em uma de pelo menos dez principais categorias de tecnologia de impressão disponíveis atualmente. Entre as mais usadas estão Stereolithography Apparatus (SLA), que é a estereolitografia por solidificação de resina líquida, a mais antiga. Por essa técnica, os objetos são moldados em uma resina líquida, como o plástico epóxi, que depois se solidifica.
A Selective Laser Sintering (SLS) ou Sinterização a Laser Seletivo, é outra técnica, só que mais recente e versátil. O material usado nesse caso tem a consistência de um pó ultrafino, que pode ser de plástico (poliamida, poliestireno, nylon e ABS, este um tipo de polímero bastante rígido e leve) ou outros elementos, como fibra de carbono, alumínio, ferro, aço, gesso, cerâmica e até açúcar e chocolate. Esse pó é fundido por um laser de alta potência a fim de que seja depositado em camadas dando origem ao objeto que está sendo impresso. Há ainda a técnica chamada de Laminated Object Manufacturing (LOM) ou Fabricação de Objeto Laminado, na qual uma peça é construída pela sobreposição de camadas finas de papel.
Em todas elas o processo de prototipagem ou impressão 3D é semelhante. Tudo tem que começar num computador, com o objeto que se quer imprimir construído virtualmente, em três dimensões, por um software específico (há vários no mercado). Para quem não sabe manejar um programa desses (a grande maioria das pessoas desconhece), a solução é fazer um curso. A outra alternativa é usar modelos já prontos, que existem em grande número disponíveis em vários sites na internet. O passo seguinte é dar o comando para a máquina imprimir o objeto, o que ela vai fazer camada por camada, trabalho que pode consumir de alguns minutos a várias horas, dependendo de seu tamanho e de sua complexidade.
O mercado disponibiliza impressoras de vários portes, desde as pequenas que imprimem brinquedos e miniaturas, até máquinas com área de impressão de cinco metros de lado por três de altura. “A mais baratinha é um pouco maior que uma caixa de sapatos”, diz a especialista da Unicamp. “Uma máquina de sinterização seletiva a laser, por sua vez, é do tamanho de uma van”. O professor de engenharia industrial e de sistemas Behrokh Khoshnevis, da Universidade do Sul da Califórnia (USC), por exemplo, quer construir uma do tamanho de uma casa, para imprimir a moradia inteira. O preço dessas máquinas também oscila muito. “As mais simples, que trabalham com filamentos plásticos derretidos, custam de R$ 800 a R$ 5 mil”, diz o designer Jorge Roberto Lopes dos Santos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). “As mais avançadas podem sair até por US$ 500 mil”.
Especialista em manufatura aditiva, Santos é coordenador do Núcleo de Experimentação Tridimensional do Departamento de Artes e Design (Next) daquela universidade. Junto com o arqueólogo Antônio Brancaglion Jr. e o geólogo Sérgio Alex Kugland de Azevedo, ambos do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o médico ginecologista e obstetra, Heron Werner Jr., organizaram o livro Tecnologias 3D – Desvendando o Passado, Modelando o Futuro. Na obra, eles mostram que a utilização das tecnologias digitais 3D poderá revolucionar áreas tão diferentes quanto arqueologia, medicina, design, paleontologia, moda, indústria aeronáutica e automobilística, entre tantas outras.
Orelha humana
Para Santos, é certo afirmar que as impressoras 3D representam efetivamente uma revolução tecnológica. “É um processo inovador, que podemos considerar revolucionário, pois impactará muito a cadeia de produção atual, devido à dispensa de itens como moldes, e matrizes, tão essenciais no processo de fabricação convencional”, explica. “A possibilidade de customização digital de produtos (ao invés de produção em massa) e principalmente a possibilidade de materialização física de objetos com completa liberdade geométrica (sem ângulos de extração de moldes, sem impossibilidades de geometrias) são outros aspectos que podem ser considerados revolucionários”.
Alguns exemplos de produtos já feitos com essas máquinas e outras possibilidades que estão sendo pesquisadas mostram que a revolução tecnológica em curso já é um fato e dão uma ideia de até aonde ela poderá chegar. Um dos maiores objetos já impressos até hoje é um carro, embora apenas a carroceria tenha sido feita por uma impressora 3D. Batizado de Urbee, o primeiro automóvel confeccionado com a técnica da prototipagem rápida foi idealizado e produzido pelo engenheiro mecânico Jim Kor, da Universidade de Manitoba, no Canadá, e criador da empresa Kor Ecologic. Sustentado por apenas três rodas, duas na frente e uma atrás, o Urbee levou 2.500 horas para ficar pronto. Ele pesa apenas 544 kg e mede 3,04 metros e é equipado com um motor elétrico. O carro poderá transportar duas pessoas, a uma velocidade de até 65 quilômetros por hora.
Recentemente, a Nasa – a agência espacial norte-americana – anunciou outro feito da impressão 3D: um injetor de motor de foguete movido a oxigênio líquido que passou pelo teste de calor no seu centro de pesquisa, em Cleveland. Segundo a agência, a tecnologia economizará tempo e dinheiro na construção dessa modalidade de motores. Pelo processo tradicional, seria necessário um ano para construção do injetor, enquanto que com a impressora 3D ele foi concluído em menos de quatro meses e, além disso, com uma redução de 70% do custo final. No futuro, a tecnologia da manufatura aditiva poderá ser usada para fazer, por exemplo, uma espaçonave inteira.
Na área biológica, a chamada bioimpressão também vem progredindo a passos largos. Cientistas da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, usaram uma impressora 3D comum para criar uma orelha humana artificial. Essa parte do corpo é uma das mais difíceis de ser recriada por meios cirúrgicos, daí a opção dos pesquisadores pela prototipagem rápida. Eles depositaram células de bezerro sobre uma base de material polimérico, e elas viraram cartilagem. Simultaneamente, a máquina inseriu partículas de prata na estrutura, formando uma antena capaz de “ouvir” variadas frequências.
Na Bélgica, médicos pesquisadores da Universidade Biomédica de Hasselt usaram uma impressora do gênero e titânio para construir uma mandíbula artificial sob medida para uma paciente de 83 anos. O implante foi um sucesso e ela voltou a respirar, falar e mastigar apenas um dia após a cirurgia. “Em uma reconstrução normal, ela ficaria internada por dez dias, pois o procedimento é mais complexo”, disse na ocasião o chefe da equipe, Jules Poukens. “Com o 3D, ela ficou no hospital apenas três dias, tendo sida exposta a um risco quase nulo de rejeição. O titânio tem boa biocompatibilidade, sendo o material geralmente usado em implantes de quadril”, informou ele.
No Brasil, vários profissionais e pesquisadores já vêm aplicando a impressão 3D em suas atividades. É o caso do médico obstetra Werner Jr., que imprime fetos para estudar casos de malformação congênita. Mas sua clínica também usa a tecnologia para prestar um serviço às gestantes com deficiência visual, pacientes que, por razões óbvias, não podem ver o desenvolvimento dos seus bebês no útero pela ultrassonografia. “Nós imprimimos gratuitamente os fetos das grávidas que se encontram naquela circunstância”, conta ele, que é especialista em medicina fetal. “Fazemos esta impressão em todas as fases da gestação, ou seja, no primeiro, segundo e terceiro trimestre. Fazemos também impressão 3D para as gestantes que assim o desejarem, mas esse serviço é cobrado e o preço varia em função do tamanho do feto. Os modelos mais baratos ficam em torno de R$ 800”.
Robôs humanoides
O geólogo Sérgio Alex de Azevedo, colega de Werner Jr. na organização do livro citado nesta matéria, Tecnologias 3D – Desvendando o Passado, Modelando o Futuro, também usa o método de prototipagem para reproduzir fósseis, numa impressora que opera com um polímero semelhante ao gesso industrial, infiltrado com resina. “Imprimo o crânio de um fóssil, por exemplo, a partir de um arquivo digital obtido por escâner 3D do material original e modelado (corrigido ou completado)”, explica. “Os protótipos impressos são utilizados para diversos fins tais como, pesquisa científica, educação e ensino, exposições, permuta entre instituições e reconstruções”.
O engenheiro elétrico Alexandre da Silva Simões, do curso de engenharia de controle e automação, do campus de Sorocaba da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), também usa a impressão 3D em seu trabalho. “Nosso grupo de pesquisa vem, desde 2012, aplicando a nova tecnologia na produção de protótipos de robôs humanoides e seu estudo”, ele relata. “As pesquisas passaram a ficar mais rápidas e fáceis. Se uma peça produzida não for a ideal para uma determinada aplicação, imediatamente podemos corrigi-la e partir para uma nova impressão”. Em parte isso se deve, segundo ele, porque a tecnologia da impressão 3D elimina a necessidade da produção de peças por meio de técnicas como a usinagem, na qual um material é necessariamente desgastado até atingir a forma desejada. “A mudança desse processo traz muitas vantagens em termos financeiros, temporais e ecológicos”, diz.
Com esses exemplos conclui-se que a impressão 3D pode ser empregada nas mais variadas áreas da atividade humana. E essa versatilidade só tende a se ampliar no futuro. O que está por vir já pode ser antevisto pelas pesquisas e experimentos em andamento, mas que ainda estão no começo. Já foram impressos itens de roupas e comidas. Na área biológica já foram feitas experimentalmente com essa nova técnica, partes do corpo humano como bexiga, vasos sanguíneos, ossos e mãos. A previsão é de que num futuro não muito distante qualquer órgão poderá ser impresso e implantado no corpo humano, inclusive o coração.
Na área espacial pode-se dizer que o céu é o limite. Para reduzir ao mínimo os materiais levados da Terra para construir bases na Lua ou em outros planetas, como Marte, a Nasa e a Agência Espacial Europeia (ESA na sigla em inglês) estão pesquisando o emprego da impressora 3D fora da Terra, tendo como “tinta” o material recolhido por lá mesmo. Recentemente, pesquisadores financiados pela Nasa demonstraram que é possível construir estruturas rígidas usando poeira lunar – material conhecido como regolito – com a técnica da manufatura aditiva. Embora os primeiros objetos feitos não tenham nada de espetacular, já que não passam de cubos e cilindros, serviram para comprovar que é possível usar material de outros mundos e uma impressora 3D para construir o que quer que seja. Daí para erguer uma base espacial é um pulo.
Para quem, no entanto, entende que a impressão 3D é o ápice da imaginação e tecnologias humanas para fabricar objetos uma simples novidade, vem aí a impressão 4D. Pesquisadores do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) desenvolveram uma técnica com a qual é possível criar objetos impressos em 3D que podem mudar de forma com o correr do tempo. Ainda incipiente, a nova tecnologia precisa de um tipo de tinta especial que, na presença de água, reage. Ao serem molhados, os produtos impressos com a tinta sofrem transformações físicas que alteram suas formas e dimensões. O objetivo é que, no futuro, a tinta e a água sejam dispensadas e os objetos se alterem e se formem sozinhos.