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Antes só do que acompanhado

Idosos da Afai: colaboradores contam histórias, leem jornal e tocam violão / Foto: Regina Abreu
Idosos da Afai: colaboradores contam histórias, leem jornal e tocam violão / Foto: Regina Abreu

Por: REGINA ABREU

Deu no jornal: após 65 anos de feliz união, casal morre junto e de mãos dadas. Italvino Possa, 89 anos, partiu às 15h; Diva, a esposa, 40 minutos depois. O fato ocorreu em Porto Alegre, no dia 3 de outubro de 2014, e, de tão raro, mereceu reportagem na “Folha de S. Paulo”. Na realidade, poucos indivíduos têm a felicidade de conviver tanto tempo com o mesmo parceiro e ainda partir bem acompanhados como levaram seus dias em vida. Nossa existência na Terra é um presente, e é uma sorte poder envelhecer. Por isso, há pessoas que decidiram se manter donas de suas vidas, mesmo depois de passarem a engrossar as estatísticas da terceira idade, como se convencionou denominar quem tem mais de 60 anos. Elas perderam a cara-metade em algum momento da vida, mas não necessariamente entregaram os pontos quando a solidão bateu à porta. Moram sozinhas, mantêm a independência e descobriram novos interesses ou cultivam prazeres já quase esquecidos.

Pesquisa da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em 2005 em 130 países, apontou que um em cada sete idosos ao redor do planeta mora sozinho. No Brasil, entre 1992 e 2012, o número de idosos que levam uma vida a sós triplicou, passando de 1,1 milhão para 3,7 milhões, um incremento da ordem de 215%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, a população de brasileiros com mais de 60 anos passou de 11,4 milhões para 24,8 milhões, um crescimento de 117%. Ou seja: 13,2% da população idosa reside sozinha, especialmente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Entre os idosos hoje morando nessas condições, 65% são mulheres, porque elas, em geral, vivem mais tempo que os homens. Mas, mesmo entre os homens, há sinais de uma maior independência. O porcentual dos que vivem sozinhos pulou de 31% para 35% nas últimas duas décadas. Jaime Pereira da Silva, 62 anos, jornalista aposentado, integra essa relação. Mas morar sozinho não é novidade para ele, que vive dessa maneira desde os 25 anos, e de lá para cá tornou-se um solteirão convicto. Vindo de família grande e barulhenta, Jaime diz que sua maior conquista é a paz – e ainda assim, mesmo tendo desmanchado o namoro com uma médica, não é solitário: tem amigos com os quais pode contar, irmãos e sobrinhos, além da Mimi, sua gatinha de estimação. Jaime se cuida: faz exercícios todos os dias na praça perto de sua casa, local equipado com aparelhos de ginástica ao ar livre, e onde também aproveita para fazer novas amizades. Ele faz alguns trabalhos de revisão para complementar a aposentadoria e voltou a estudar violão. Prioriza a qualidade de vida e gosta de fazer programas culturais, tais como cinema, exposições e teatro.

O modo de vida de Jaime pode levar a outra explicação para o aumento de idosos que moram sozinhos: os “velhos” de hoje não se parecem nem de longe com as pessoas da terceira idade de antigamente (basta olhar uma foto de seu avô ou avó com a sua idade de hoje e comparar). O progresso da medicina, o acesso à educação, o aumento da renda levaram a um crescimento fantástico da expectativa de vida, que era de apenas 43 anos em 1940 e hoje alcança quase 75. É interessante notar que idosos que vivem sozinhos gastam mais com consumo de lazer e bem-estar do que aqueles que moram com a família – como demonstram as pesquisas que acompanham as mudanças de hábitos dos indivíduos com 60 anos ou mais no Brasil. Livres de “obrigações orçamentárias” impostas pela vida com familiares, os idosos vão frequentemente a shoppings, viajam rotineiramente, enfim, se divertem mais. Estão mais propensos a consumir do que a poupar.

“Sarou tudo”

Veja-se o exemplo de Rosa Maria Camata Rodrigues, 68 anos, que acabou de comprar um carro (“tenho que aproveitar o hoje”). Qual é seu breviário? “A gente vive tão bem sozinha: faço o que quero, não dou satisfação a ninguém”, ela diz. Viúva há nove anos, dois filhos casados, Rosa Maria recebe a pensão do marido, tem sua própria aposentadoria e trabalha em casa como depiladora, atendendo com hora marcada há 23 anos. É feliz com o que faz: as clientes contam histórias e ela ri, chora junto, e às vezes dá conselhos como se fora uma psicóloga.

A alegre Rosa Maria viaja sempre que dá: já foi com as amigas para Cancún, Fortaleza e Miami, e, uma vez por semana, também com as amigas, sai para jantar e curtir um cinema. Recentemente, ela trocou a grande casa em que morava em Santo André, no ABCD paulista, por três apartamentos: um para ela e um para cada filho. Um deles mora no prédio em frente ao dela. Não que a vida tenha poupado Rosa Maria de perrengues: teve câncer de mama, extraiu parte do seio, mas sarou e colocou prótese. Hoje tem boa saúde e cuida dela. Tem uma alimentação regrada, faz caminhada três vezes por semana, adora sol, praia e piscina, mas não quer namorado nem compromisso: “Se encontrar alguém que vale a pena, tudo bem, senão, tchau!”

Morar sozinho beneficia os idosos. Um estudo realizado no âmbito do Projeto Epidoso, mostrou que esse estilo de vida estimula a manutenção mais prolongada da capacidade de realizar tarefas. Criado em 1991 com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Projeto Epidoso tem contribuído para a formulação de políticas públicas voltadas para a terceira idade, visando o envelhecimento saudável da população. Outras pesquisas também verificaram que morar só pode ser um fator de proteção para a dependência moderada/grave e para o comprometimento da capacidade funcional. E exemplos não faltam. Maria Francisca Santos, 68 anos, separada e sem filhos, mora em Diadema, no ABCD, conta que trabalha como copeira há 24 anos na mesma empresa, mas que sentia muitas dores na coluna. “Depois que entrei na ginástica, tudo melhorou”, relata satisfeita. Ela faz os exercícios pertinentes no Centro de Referência em Homeopatia, Medicinas Tradicionais e Práticas Integrativas em Saúde, no bairro Bosque da Saúde, em São Paulo, com aulas de lian gong orientadas pela voluntária Magnólia Pereira Belmont, 64 anos, divorciada, analista de informática e funcionária pública aposentada.

Praticante da modalidade há mais de dez anos, Magnólia também mora sozinha desde que o filho se casou, há alguns meses. Quem lhe faz companhia é sua cachorrinha, que no momento está doente. Por isso, Magnólia tem viajado pouco, mas gosta de passear ao ar livre, em parques e jardins. Dentro de casa, usa muito a internet, principalmente para pagar contas. Foi se acostumando a morar sozinha aos poucos, porque o filho trabalhava e fazia faculdade quando era solteiro e ficava fora praticamente o tempo todo. Agora, ela conta, satisfeita, que, finalmente, consegue até fazer dieta, coisa impensável em outros tempos.

Odinea Evrard Pinto Martins, 74 anos, dona de casa, também é outra brasileira idosa que vive sozinha – mas não muito. Extremamente apegada à família, cuidou da tia, com Parkinson; da mãe, com Alzheimer (que nos últimos cinco anos de vida nem andava nem falava); além do próprio marido e dos dois filhos; depois, ajudou a cuidar também dos netos. Hoje, reside em um apartamento bem pertinho da filha. Para não perder o jeito, faz questão de ir para lá dirigindo seu carro, todas as manhãs, logo após o genro já ter saído para trabalhar, voltando para seu cantinho no fim do dia. Não que não se dê bem com o marido de sua filha, ao contrário, mas é assim que ela faz para não interferir na vida do casal. Passa o dia com a filha (“uma faz companhia para a outra”). Confessa que detesta ficar sozinha o dia inteiro, explicando as escapadinhas diárias. A filha gosta da visita e diz que tem cuidados com a mãe. Ela faz uma planilha mensal com todos os oito remédios que Odinea toma diariamente “para que ela não se esqueça de nenhum”.

Perto da vizinhança

Para o médico Eduardo Canteiro Cruz, chefe da residência em geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o maior número de idosos vivendo sozinhos é resultado do próprio processo de envelhecimento populacional. A menor taxa de fecundidade resulta em maior proporção de idosos na população. Além disso, as novas conformações familiares e a defesa da autonomia pelos próprios idosos fazem com que, uma vez viúvos, eles conservem o desejo de manter-se residindo na própria casa, perto da vizinhança com a qual estão acostumados, sem a intervenção de filhos, genros e noras em suas rotinas. Canteiro Cruz observa que o fenômeno do idoso que vive sozinho é cada vez mais comum no consultório, sendo cada vez mais frequente a presença de pacientes de idade avançada desacompanhados nas consultas. Todavia, o geriatra faz um alerta importante: “Os indivíduos que moram sozinhos estão mais propensos a não perceberem pequenas alterações no seu estado de saúde, especialmente em relação à memória e à cognição. Por isso, nesses casos, as visitas médicas regulares são importantíssimas para o diagnóstico precoce de doenças, garantindo o prolongamento da independência e da autonomia da cada um”.

A assistente social Naira de Fátima Dutra Lemos, especialista em gerontologia e doutora em ciências da saúde, é coordenadora do Programa de Assistência Domiciliar ao Idoso da Unifesp. Questionada sobre se viver sozinho na terceira idade é bom ou ruim, ela responde: “Depende: a vida encaminha para o tipo de velhice que a pessoa vai ter”. Para ela, é preciso estar preparado para a inevitável perda de renda, de pessoas queridas, da funcionalidade do próprio corpo. Há os dois lados da moeda: morar só pode significar idosos mais saudáveis, melhor desempenho funcional e maior grau de independência. Mas também idosos em condições desfavoráveis de saúde, ausência de suporte familiar, situação de vulnerabilidade e eminente risco social.

É que existem dois aspectos fundamentais a serem considerados: a capacidade funcional, que é o grau de independência e autonomia nas atividades da vida diária, e o suporte social. Naira divide o suporte social em: informal (família, amigos, vizinhos e grupos sociais) e formal (serviços de saúde, programas governamentais etc.). Ela aponta ainda que já existe outro tipo de suporte: tecnologias, como o serviço de teleassistência, que acode em casos de emergência. Uma das empresas que fornecem essa modalidade de atendimento é a Telehelp, que tem como serviço-base um painel com uma tecla de emergência remoto, um colar antialérgico e um relógio à prova de água, permitindo que o cliente solicite ajuda em qualquer situação de emergência ao simples toque de um desses aparelhos. A empresa oferece ainda sensor de fogo e fumaça, câmeras de vídeo que podem ser monitoradas via internet, celular com GPS, entre outros. Segundo a diretora geral da Telehelp, Juliana Barbiero, os serviços estão disponíveis em 230 cidades de 20 estados.

Ao mesmo tempo, alguns municípios começam a se organizar para oferecer serviços públicos de teleassistência. A cidade catarinense de Joinville, por exemplo, já implantou o sistema, e a paulista Santos desenvolve um projeto-piloto na mesma linha. Além disso, a Telehelp lançou o guia “Morar Sozinho” que reúne dicas de gerontólogos, arquitetos, advogados e enfermeiros e tem por objetivo ajudar o idoso nas situações do dia a dia. O guia é disponibilizado, gratuitamente, em formato e-book nas lojas Kobo, Kindle Store, iBook Store, Google Play e no site: http://www.telehelp.com.br/midia-center/guia-morar-sozinho.aspx.

Com inacreditáveis 93 anos, Lilly Grossmann esbanja energia. Cabelo arrumado, brincos e colar, unhas com esmalte vermelho (que ela mesma fez), Lilly mora sozinha no Residencial Santa Catarina, na capital paulista, mas, segundo diz, muito bem acompanhada. “Aqui eu tenho comodidade, privacidade e liberdade”, afirma. O gerente administrativo-financeiro do lugar, Fernando Nunes de Brito, descreve o local: “São 122 apartamentos mobiliados e privativos com sala, cozinha americana, quarto e banheiro adaptado; refeitório que serve quatro refeições ao dia orientadas por nutricionista; atividade física conduzida por profissionais especializados na sala de ginástica e na piscina coberta e aquecida, e, ainda, dança e caminhada, além de programação de lazer diferente para cada dia da semana”. Enfim, o paraíso na Terra.

De alto padrão, o residencial onde Lilly mora fica nas imediações da bela Avenida Paulista e perto de muitos hospitais. No Santa Catarina a pessoa pode morar ou permanecer apenas durante o período de convalescença, como após uma cirurgia ou durante um tratamento, já que o local conta com acompanhamento médico e enfermagem 24 horas por dia, tem quatro pontos de emergência em cada apartamento e providencia remoção caso isso seja necessário.

Trabalho estressante

Infelizmente, dona Lilly é exceção. Só 30% dos idosos com mais de 80 anos têm um envelhecimento tido como “ótimo”, sem problemas funcionais ou cognitivos. A constatação foi feita por estudo inédito da Universidade de São Paulo (USP) a partir de projeto que monitora o envelhecimento há 14 anos, avaliando 363 idosos de várias regiões.

Aparecida de Jesus Oliveira, enfermeira especializada, trabalha no programa Saúde da Família, do governo federal, no distrito do Jardim Ângela, bairro de Piraporinha, região que enfrenta grandes problemas ligados à violência, evasão escolar, tráfico e usuários de drogas. Há quatro equipes do programa na região; cada equipe compreende um médico, um enfermeiro-generalista, 12 auxiliares de enfermagem e cinco ou seis agentes comunitários de saúde. Cada equipe, na realidade, acompanha 3.500 famílias e cobre determinado número de ruas do bairro. O médico e a enfermeira visitam as prioridades, entre elas a do programa Mãe Paulistana. Junto aos idosos, o trabalho é feito com base em dados da municipalidade resumidos na caderneta do idoso, com informações sobre medicamentos e doenças. A prefeitura ainda faz o registro de todos os integrantes da família do idoso.

Nas visitas que faz, Aparecida, entre outras ações orienta sobre a tomada correta dos remédios, alimentação, disposição de móveis e objetos pela casa. Mas ela conta que apenas 5% – e olha lá – têm barra no banheiro. O mais comum é a pessoa não se cuidar e um dia ficar cega, aleijada. A prefeitura fornece fraldas para quem sofreu derrame ou ficou paraplégico. Às vezes, é preciso comentar com a família que o abandono de idosos é crime e, se necessário, a assistente social será chamada.

O Grande Conselho Municipal do Idoso (GCMI), de São Paulo, existe há 22 anos – surgiu antes até do Estatuto do Idoso, em 2003. Rubens Casado, presidente da entidade, explica que atualmente concentra esforços para fazer o ajuste de sua lei de criação, transformando-o de Conselho Consultivo em Conselho Deliberativo. Hoje, o órgão encaminha propostas de políticas públicas e faz denúncias, trabalhando diretamente com o gabinete do prefeito e com a Secretaria dos Direitos Humanos e Cidadania. Casado comenta que o Fundo Municipal do Idoso, que já existe, ainda não está disponível porque não foi regulamentado. “Esse Fundo, implantado em 2010, é formado por doações de empresas que destinam 1% de seu Imposto de Renda – e sua regulamentação favoreceria muito às instituições, que lutam com dificuldade para se manter”, lamenta Edelmar Ulrich, presidente da Associação dos Familiares e Amigos dos Idosos (Afai). Ele mantém o Centro-Dia do Idoso Fragilizado (CDIF) e semidependentes, sem fins lucrativos. A mensalidade, no valor de R$ 1.450, paga apenas metade dos custos. Para cobrir a diferença, além de doações, são realizados bazares e bingos.

A instituição não tem ajuda oficial, mas conta com a colaboração de voluntários, estagiários e universitários de diversas áreas – e de muita gente com boa vontade que vai lá para contar histórias, ler jornal ou tocar violão para os idosos. Ulrich é um dos fundadores da Afai, que existe há nove anos. Teve essa iniciativa para ajudar sua sogra, portadora de Alzheimer e diante da dificuldade de conseguir ajuda por parte do poder público e de instituições privadas. Reuniu algumas pessoas com o mesmo problema e abriu a entidade – que recebe os idosos, de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h. Ali, com assistência integral, eles participam de atividades multidisciplinares, com refeições ao longo do dia, devidamente acompanhados por cuidadores. A família do idoso também é atendida – psicólogas ouvem as queixas auxiliando no trabalho estressante e exaustivo que é cuidar de um idoso com Alzheimer, por exemplo. Como se sabe, a doença não tem cura e piora com o tempo. “Mas o doente merece ser tratado com carinho e dignidade”, justifica Ulrich.

 


 

Bons conselhos

O médico-chefe da residência em geriatria da Unifesp, Eduardo Canteiro Cruz, vê o envelhecimento como um processo que começa já na mais tenra idade. Por isso, dá os seguintes conselhos:

– Planeje sua velhice desde a juventude: construa um capital financeiro e de saúde para envelhecer bem. Construa boas relações sociais e, se possível, forme uma família.

– Pratique atividade física regularmente caminhada, corrida, natação, ciclismo e musculação.

– Alimente-se de maneira saudável, dando preferência a alimentos frescos, reduzindo a ingestão de açúcar, gorduras de fonte animal e sal, bem como consumindo proteína regularmente (carnes, laticínios, leite e ovos).

– Faça acompanhamento médico regularmente, tome as vacinas recomendadas e não se esqueça dos exames de rotina. Não use medicações nem polivitamínicos sem uma clara indicação médica. Não fume e consuma bebida alcoólica com moderação.

– Aprenda sempre coisas novas e leia para que o cérebro envelheça bem.

– Cultive o perdão e o otimismo para envelhecer de maneira positiva.