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A proteção que faltava

A mentalidade mudou. Hoje é chique ser fotografado com as tartarugas / Foto: Arquivo/Projeto Tamar
A mentalidade mudou. Hoje é chique ser fotografado com as tartarugas / Foto: Arquivo/Projeto Tamar

Por: CARLOS JULIANO BARROS

“Gospel das tartarugas” é a definição que o oceanógrafo carioca Guy Marcovaldi dá, em tom de brincadeira, às músicas que compôs e foram gravadas recentemente por um dos maiores ícones da música popular brasileira, o cantor mineiro Milton Nascimento. O álbum faz parte das comemorações dos 35 anos do Projeto Tamar – uma abreviação de “tartarugas marinhas” – do qual Marcovaldi é um dos fundadores. Presente em dez estados do litoral brasileiro e movimentando cerca de R$ 30 milhões por ano entre recursos públicos e privados, o Projeto Tamar é reconhecido internacionalmente por seu trabalho de educação ambiental e de conservação das cinco espécies de tartarugas que, quatro décadas atrás, corriam sério risco de extinção no Brasil. Hoje, mais de 2 milhões de filhotes ganham o mar todos os anos.

Desde 1982, Marcovaldi vive na Praia do Forte, no litoral da Bahia. Lá fica instalado o “quartel-general” do Projeto Tamar que comanda um exército de 1.300 pessoas e, ao longo de quase 40 anos, transformou radicalmente a relação de pescadores e turistas com as tartarugas marinhas. “O glamour de ver e ser fotografado com tartarugas e as centenas de pessoas fabricando e vendendo camisetas transformaram esse animal anfíbio em uma espécie de herói do rock”, define. Aos 60 anos, além de conduzir o Projeto Tamar, Marcovaldi hoje se divide entre duas paixões: os mergulhos no fundo do mar e os passeios com a neta.

Problemas Brasileiros Uma tragédia marcou o nascimento do Projeto Tamar: a matança de tartarugas marinhas por pescadores do Atol das Rocas, no Rio Grande do Norte, testemunhada por um grupo de oceanógrafos do qual o senhor fazia parte, no final da década de 1970. Como aquela experiência contribuiu para a criação do projeto?
Guy Marcovaldi – Quando estudantes, nós tínhamos o hábito de fazer viagens para praias distantes e desertas, organizadas pelo Museu Oceanográfico Professor Eliézer de Carvalho Rios, do Rio Grande do Sul. Numa dessas viagens, encontramos as tartarugas sendo massacradas pelos pescadores no Atol das Rocas. Tiramos fotografias e fizemos um relatório, em 1977, que acabou sendo lido pelas autoridades ambientais brasileiras da época. O início de tudo deu-se com um pedido do Museu Oceanográfico, por intermédio dos estudantes de oceanografia, que queriam ver a região protegida pelo Estado. O governo brasileiro acatou aquele pleito e, em 1979, transformou o Atol das Rocas em uma reserva biológica para proteção das tartarugas e de outros animais. Em 5 de junho daquele ano, dia do meio ambiente, o Projeto Tartaruga Marinha foi incluído no orçamento da União. Ou seja, passaram-se dois anos entre a matança do Atol das Rocas e o reconhecimento da importância da nossa proposta.

PB Um dos principais desafios do Projeto Tamar foi a conscientização de pescadores para evitar a caça predatória das tartarugas marinhas. Essa atividade ainda é um problema atualmente?
Marcovaldi – Não, mudou completamente. Hoje, 35 anos depois, a população de tartaruga marinha é bem maior. Matar tartaruga, agora, só por acidente. Venda de produtos de tartarugas é uma coisa raríssima que só se vê em vilarejos perdidos. Nesse sentido o Brasil mudou para melhor. Não existe mais matança de tartaruga.

PB Um dos pilares do trabalho do Projeto Tamar é a educação ambiental. Sensibilizar pescadores, comunidades litorâneas e turistas para a causa da conservação das tartarugas marinhas é até mais importante do que reprimir a caça predatória?
Marcovaldi – Quando, eventualmente, a repressão se faz necessária, a ação da polícia é de responsabilidade do governo. Na equipe do Projeto Tamar não existe fiscal e ninguém usa arma. A nossa arma foi conseguir recursos – por exemplo, em 1982, com a Petrobras – que permitiram através da Fundação Brasileira para Conservação da Natureza [FBCN] contratar os pescadores que viviam da matança das tartarugas. Fizemos o seguinte acordo com eles: “vocês param de matar e vender tartarugas e passam a trabalhar para nós, protegendo os animais na praia, ok?” Eles imediatamente aceitaram, passando a propagar a educação ambiental no seio de suas famílias. Eles pensavam: “agora tenho um emprego honroso, a tartaruga vale mais viva do que morta”.

PB Algumas comunidades que habitam o litoral brasileiro há diversas gerações tinham o hábito de usar tartarugas marinhas em sua alimentação, assim como peixes. É possível um consumo sustentável de tartarugas ou a exploração é sempre predatória?
Marcovaldi – Algumas comunidades utilizavam o animal como complemento alimentar. Mas hoje a legislação ambiental não permite o consumo da tartaruga. É como perguntar: é possível abater parte dos ursos pandas ou dos micos-leões? A tartaruga se transformou numa espécie de bandeira. A maioria das pessoas a veem como um animal de estimação, apesar de ser selvagem. Além disso, não existe a menor probabilidade de a tartaruga vir a ser oficialmente criada para servir de alimento. Mesmo porque ela tem uma taxa de conversão baixíssima, pois precisa comer muito para ganhar peso.

PB Quando vocês começaram a pedir para os pescadores deixarem de caçar as tartarugas, qual foi a reação deles?
Marcovaldi Eles reagiram, é claro, mas a troca por um emprego compensou. À medida que o Tamar foi crescendo, gerou mais trabalho. Hoje, ele ocupa mais de mil pessoas com carteira assinada, um pequeno exército de colaboradores com uma influência muito grande sobre as pessoas que eventualmente gostariam de matar tartarugas. A mentalidade mudou. Hoje, na Bahia, em Sergipe, o glamour de ver e ser fotografado com tartarugas, e as centenas de pessoas fabricando e vendendo camisetas relacionadas com a nossa proposta transformaram a tartaruga em uma espécie de herói do rock.

PB A maior parte desse pequeno exército de mil pessoas está alocada em que função?
Marcovaldi – A maioria é simples e ganha salários pequenos. Elas trabalham nas praias protegendo as tartarugas, nas confecções arrematando camisetas, nos grupos produtivos fabricando artesanato, nos centros de visitantes fazendo a manutenção e no atendimento às lojas vendendo os produtos. Em bem menor quantidade, há os pesquisadores – desde bacharéis em biologia até pós-doutores em estatística.

PB Quando o Projeto Tamar teve início, havia pouca informação sobre as espécies de tartarugas marinhas existentes no Brasil. Quais foram as principais descobertas científicas desde então?
Marcovaldi – Basicamente, conseguimos provar através de publicação científica que das sete espécies de tartarugas marinhas conhecidas no mundo, cinco se reproduziam no Brasil. Trinta anos atrás, isso tinha um valor científico muito grande, porque nada sabíamos sobre as tartarugas que habitavam aqui. Eu mesmo aprendi na faculdade que tartaruga marinha não se reproduzia no Brasil. Eu disse para o meu professor: “mas eu vi as tartarugas desovando no Atol das Rocas”. E ele me respondeu: “então, escreva um trabalho e publique numa revista científica. No dia em que sair um documento provando que a tartaruga desova no Brasil, podemos, então, dizer isso oficialmente. Eu sei que a tartaruga desova, mas não posso dizer em sala de aula porque não há nenhum livro, nenhuma publicação comprovando o fato”. O curso na faculdade se baseava nas publicações dos Estados Unidos, que diziam que as tartarugas desovavam em junho, julho e agosto – que é o verão de lá. Depois descobrimos onde as tartarugas desovam. Elas começam a desovar no norte do estado do Rio de Janeiro e continuam no Espírito Santo, na Bahia e em Sergipe. Depois, começam a decair em Alagoas e têm uma recuperação no Rio Grande do Norte. Por pouco não perdemos o tempo e quase chegamos tarde. Se tivéssemos entrado em ação uns dez ou 20 anos depois, não encontraríamos mais matrizes. É como começar um galinheiro com uma galinha só: você nunca vai conseguir reproduzir a espécie.

PB – Que outras descobertas o senhor destacaria?
Marcovaldi – Nós descobrimos quais eram as tartarugas, onde elas desovavam e quantas eram. Foi o que nós chamamos de “levantamento qualiquantitativo”, através dos marcadores, que são aquelas plaquinhas de metal colocadas nas nadadeiras das tartarugas. A partir daí, por conta de patrocínio e do consequente aumento da disponibilidade financeira do projeto, conseguimos ampliar as nossas praias de proteção também. Então, o número de tartarugas descobertas e protegidas foi crescendo. Também descobrimos quanto tempo uma tartaruga no Brasil demorava incubando na areia – tempo que varia dependendo da temperatura. No Espírito Santo e no Rio de Janeiro, as tartarugas demoram mais para nascer. Na Bahia, consomem menos tempo por causa do calor. Nesse estado nascem mais fêmeas, já no Espírito Santo e no Rio de Janeiro mais machos, porque a temperatura influencia o sexo das tartarugas.

PB – E o que de mais relevante ainda não se sabe sobre elas?
Marcovaldi – Existem muitos mistérios. Por exemplo, ainda não conseguimos fazer um mapa geral, apesar das tentativas, para saber de onde as tartarugas vêm, se rumam para o Norte ou para o Sul, se vão atrás de alimento ou apenas nadar e se exercitar. Enfim, os mistérios são muitos.

PB – Mas vocês desenvolveram uma tecnologia de rastreamento de tartarugas por chip. Isso não dá conta para desvendar tais mistérios?
Marcovaldi – Ela dá um norte, mas não fornece uma resposta definitiva. Por exemplo, que a espécie Chelonia mydas [tartaruga-verde] coloca 123 ovos em média, com tempo de incubação de 55 dias. Repetimos esse modelo matemático muitas vezes até ter certeza. No caso dessas migrações, o volume de dados não dá robustez para garantir uma resposta definitiva.

PB – Então, o número de indivíduos rastreados por chip não é suficiente para mapear o fluxo migratório?
Marcovaldi – Não. Não só por chip, mas pelas velhas marcas metálicas nas nadadeiras – porque elas ajudam muito e nem sempre se necessita do satélite. Existem tartarugas que vão ao Ceará se alimentar e voltam para desovar na Praia do Forte, na Bahia, todos os anos. E tem outras que tomam o caminho de Santa Catarina e não voltam mais, ou retornam cinco anos depois. É possível que umas encontrem comida, outras não. Quanto mais uma tartaruga come, mais ela desova; quanto menos come, menos desova. O animal pode ficar cinco anos sem desovar caso não consiga engordar.

PB As tartarugas fazem longas rotas de migração e atingem diferentes países e continentes. Existe alguma articulação em nível global para proteger as tartarugas?
Marcovaldi Existe uma cooperação entre os principais pesquisadores brasileiros, americanos, ingleses, australianos e africanos para compartilhar dados e chegar a conclusões mais precisas. É uma mistura dos marcadores metálicos, com marcadores de satélites, com marcadores genéticos. Por exemplo: nós descobrimos que a tartaruga-de-pente do Brasil tem a mesma sequência genética da tartaruga-de-pente da Austrália. Parece que é a mesma população, mas não conhecemos a sequência genética da espécie na África. Então, não sabemos se essas três populações se juntam de fato. Há poucos dados, é preciso fazer mais pesquisas. Já a tartaruga-cabeçuda da Flórida tem uma sequência genética completamente diferente da brasileira, apesar de serem da mesma espécie.

PB Quais são os principais vetores que as colocam em risco?
Marcovaldi – Os principais inimigos das tartarugas, em primeiro lugar disparado, são as redes. Na medida em que a população vai crescendo, mais barcos são colocados no mar, com cada vez mais redes. Antigamente, matavam tartaruga de propósito: colocavam uma rede, matavam a tartaruga e comiam. Depois, houve um período em que as pessoas pegavam as tartarugas, colocavam no gelo com os peixes, levavam para casa ou vendiam, mas de forma escondida. Agora é uma nova fase: quando uma tartaruga vem acidentalmente numa rede, ela é jogada fora para evitar um flagrante. E aí a tartaruga vai dar morta na praia, um número que tem aumentado muito.

PB Quais são as outras causas de mortalidade?
Marcovaldi – A segunda causa é a luz. As tartarugas marinhas, nas áreas de reprodução, se orientam pela luz. O mar tem mais luz que a terra. Mas, se no continente houver casas e postes com luzes mais fortes do que as do mar, elas caminham terra adentro tal qual mariposas. E acabam morrendo às centenas, principalmente os filhotes. Isso se chama fotopoluição. A terceira causa é a poluição genérica, pela ingestão de lixo, mas num nível bem abaixo dos outros dois fatores. É que o lixo provoca mais alarde porque as pessoas têm um contato visual maior com tartarugas mortas por causa da ingestão de materiais como as sacolas plásticas. As outras causas acontecem no mar ou em locais mais escondidos, portanto, muitas vezes longe dos olhos dos humanos.

PB É possível estimar o número de tartarugas marinhas que foram salvas ao longo do Projeto Tamar?
Marcovaldi – No primeiro ano de trabalho organizado de proteção das tartarugas marinhas, entre 1982 e 1983, salvamos 2 mil tartarugas. Hoje, colocamos por ano no mar mais de 2 milhões de filhotes. Mas isso demorou 35 anos: eu era um menino; hoje sou um coroa.

PB Se não existisse o projeto, algumas espécies já poderiam estar extintas?
Marcovaldi – Com certeza. Como afirmei anteriormente, quase chegamos tarde. É o caso do peixe-boi: os protetores chegaram na mesma época e se dividiram: uns abraçaram a causa do peixe-boi, outros das tartarugas. O peixe-boi não conseguiu se recuperar. Na realidade, a recuperação foi incipiente e assistimos à domesticação do peixe-boi marinho, em Alagoas e Pernambuco. Mas a quantidade de peixe-boi ainda é muito pequena. Não houve a multiplicação que ocorreu com as tartarugas. Até porque o peixe-boi é mamífero, tem um filhote a cada três anos, tem que amamentar por um ano ou dois. É bem diferente.

PB Do ponto de vista da conservação das tartarugas marinhas, o Projeto Tamar é reconhecido como um caso de sucesso. Por que esse modelo deu certo? É possível replicá-lo na preservação de outras espécies de animais?
Marcovaldi – Sim, poderia ser replicado. Uma equipe com o mesmo pensamento, com a mesma organização e com menos brigas poderia montar projetos para proteger outras espécies. A diferença do Tamar para outros projetos é que ele atua com uma equipe única, do Oiapoque ao Chuí.

PB Os grupos que protegem outras espécies de animais são divididos?
Marcovaldi – São divididos. São menores, dependem de pequenos recursos, encerram atividades, depois recomeçam. Nós formamos um exército no litoral brasileiro. O Tamar conseguiu ter essa força porque é um grupo coeso. E temos também os nossos fantásticos centros de visitação, que recebem quase 2 milhões de pessoas por ano. Então, isso nos dá uma força financeira e de credibilidade muito grande. Hoje, aqui na Praia do Forte, recebo 500, 600, talvez mil pessoas que ficarão felizes por verem as tartarugas. Daí, elas compram uma camiseta, pagam R$ 15 de ingresso. Isso ajuda o projeto a crescer.

PB O Projeto Tamar faz parte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade [ICMBio], órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente [MMA] do governo federal. Mas também busca recursos privados através da Fundação Pró-Tamar. Bradesco e Petrobras são alguns dos apoiadores do projeto. Como funciona esse modelo híbrido?
Marcovaldi – Na verdade, a parte do governo chama-se Centro Tamar. A parte não governamental da Fundação Tamar é denominada Projeto Tamar. São estruturas físicas e financeiras separadas, mas que têm cooperação científica. O governo é que dá o norte da política. O ICMBio determina as políticas públicas e a Fundação obedece e vai atrás dos recursos necessários para proteger as tartarugas na praia, fazer pesquisa. Apesar de existirem recursos federais, eles são insuficientes para fazer o que nós fazemos.

PB Então, a maior parte dos recursos que bancam as atividades do Projeto Tamar vem dos patrocínios captados no mercado e não do orçamento federal?
Marcovaldi – A nossa principal fonte de renda vem da produção e venda dos produtos do Projeto Tamar. Depois vêm os recursos da Petrobras, do Bradesco. Mas é uma “vaquinha” de sucesso: dinheiro do governo federal, misturado com a venda dos produtos da marca e com o apoio da Petrobras e do Bradesco.

PB A Advocacia-Geral da União [AGU], órgão do governo federal, acusou o Projeto Tamar de fraude na obtenção do título de entidade de assistência social, o que renderia à organização uma redução milionária de impostos, principalmente os encargos recolhidos ao INSS [Instituto Nacional do Seguro Social]. A AGU chegou a pedir o bloqueio de bens, o cancelamento do certificado de filantropia e a condenação da entidade por improbidade administrativa. Como o Projeto Tamar respondeu a essas acusações?
Marcovaldi – Isso se passou em 2005. O mais importante é o seguinte: o juiz que analisou o caso indeferiu o pedido da AGU. Disse que o Tamar não tinha se beneficiado de nenhum recurso financeiro da União. Provamos que, nessa estrutura mista, nós, da Fundação, não recebemos nenhum recurso federal – todo recurso aqui é particular. Então, era descabido o pedido de cancelamento de bens.

PB A AGU questionava o certificado de entidade de assistência social que o Projeto Tamar obteve.
Marcovaldi – Costumo resumir essa história na seguinte frase: estávamos numa blitz e fomos confundidos com bandidos. A Polícia Federal estava fazendo uma batida num escritório que por acaso tínhamos contratado. Era um escritório muito famoso do Rio Grande do Sul. Muitas empresas estavam pedindo o certificado de filantropia, algumas corretamente e outras nem tanto. Nós, naturalmente, fazíamos isso de forma correta. Tanto é que obtivemos nosso certificado de filantropia, mas nunca utilizamos esse documento para obter desconto de imposto. Continuamos a pagar os tributos normalmente. Tanto é que não aconteceu nada. Isso foi entre 2005 e 2006, ou seja, está fazendo quase dez anos. Todos os nossos documentos estão em ordem e são perfeitos.