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Campeão em reciclagem
Por: SUCENA RESK
O Brasil está chegando bem perto da meta de desperdício zero. Esse, pelo menos, é o resultado colhido até o momento pelo setor de latinhas de alumínio utilizadas para envazar bebidas, que já alcançou a marca de 98% de reciclagem, o correspondente a 18,4 bilhões de unidades, anualmente. Se todo esse material fosse empilhado equivaleria a 21,3 vezes a circunferência da Terra. O sucesso ocorre à revelia do panorama geral da coleta seletiva e reaproveitamento de outros tipos de materiais, que não avança na mesma dimensão e faz com que o país perca R$ 8 bilhões, todos os anos, com o resíduo sólido que poderia ser reutilizado, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O ciclo de reaproveitamento das latinhas chegou a movimentar R$ 1,8 bilhão, em 2012, de acordo com o Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre). Deste montante, só a etapa da aquisição do material usado resultou em R$ 645 milhões, gerando emprego e renda para 251 mil pessoas e economia de 4 mil gigawatt-hora de energia, equivalente ao consumo de 2 milhões de residências. O bom desempenho nessa área faz com que o Brasil figure, desde 2001, na liderança mundial do setor à frente, portanto, de nações que também atuam fortemente com a reciclagem, como Japão, Alemanha, Argentina, Estados Unidos e Países Escandinavos.
O reconhecimento dessa conquista é destacado no relatório “Indicadores de Desenvolvimento Sustentável 2010”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o levantamento, isso se deve ao fato de o porcentual atingido com as latinhas ser muito superior a qualquer outro tipo de embalagem, mesmo em comparação com os números que chegam do exterior. Em 2012, o marco de quase 100% de reaproveitamento foi homologado pelo Rank Brasil, uma empresa independente que se dedica ao registro exclusivo de recordes brasileiros.
Qual é o segredo para esse bom desempenho? Uma das possíveis respostas é que não é de hoje que o segmento produtor de latinhas investe no reaproveitamento, uma modalidade com três décadas de existência, segundo explica o administrador de empresas Carlos Roberto de Morais, coordenador da comissão de reciclagem da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). “Inclusive, estamos à frente das exigências ditadas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída em 2010, e que serviu de modelo para a estruturação da logística reversa na lei”, esclarece Morais, que também é diretor de reciclagem da Novelis, uma das maiores companhias do ramo. A logística reversa foi criada como um instrumento para envolver ações a fim de viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial. Dessa forma, promovendo o reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada.
Ainda segundo o executivo, a reciclagem de latinhas de alumínio começou com trocas promovidas por instituições de ensino com o intento de angariar fundos para o desenvolvimento de atividades da comunidade escolar. O processo de educação ambiental foi simultâneo, facilitando a absorção da prática, que resultou no envolvimento das famílias. “Gerações de brasileiros foram adquirindo consciência da importância da reciclagem, e daí para o início da coleta de rua como complemento de renda dos catadores de materiais recicláveis autônomos, também organizados em cooperativas, foi um pulo”.
Apelo ambiental
A pesquisa Ciclosoft 2012, do Cempre, aponta que a latinha de alumínio, neste contexto, corresponde a somente 1% do total da coleta seletiva municipal no país, gerando uma economia de cerca de R$ 106 milhões anualmente ao poder público. “É um case de sucesso inspirador, porque tem um aspecto socioambiental relevante e que incentiva a formação de redes que dão escala para a participação de cooperativas. Isto sem falar na redução de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE)”, diz André Vilhena, diretor executivo do Cempre. Explica-se: a reciclagem reduz as etapas de processamento para a produção de latinhas novas, contribuindo diretamente para a diminuição da carga de agentes poluidores lançados na atmosfera.
O apelo ambiental é significativo, porque a reciclagem tem reduzido a exploração da bauxita, o consumo de energia elétrica e o de água nas diversas fases de fabricação. O Brasil posiciona-se entre os cinco maiores produtores mundiais de bauxita, a matéria-prima utilizada na produção do alumínio, e os principais locais de extração no país ficam no município mineiro de Poços de Caldas e na Serra do Oriximiná, no Pará, estado que detêm praticamente 75% das reservas nacionais do minério, calculada em 3,6 bilhões de toneladas, 10% do estoque mundial conhecido. O bom desempenho do Brasil na reciclagem de latinhas de alumínio permite o reaproveitamento anual de 267 mil toneladas da matéria-prima, dispensando no período a extração de mais de 1,2 milhão de tonelada de bauxita. Ao mesmo tempo, reduz grandemente os impactos ambientais, considerando que a matéria-prima é encontrada a profundidade média de 4,5 metros. Segundo a Abal, toda essa economia gera significativo ganho de conservação, porque para se produzir uma unidade de alumínio primário, são necessários cinco quilos de bauxita. “A mineração precisa se preocupar em restabelecer os elementos endêmicos da região e o ecossistema. O sustentável é fazer preservando o que tem ao lado”, diz Morais.
Outro ganho está relacionado ao consumo energético. Para reciclar uma tonelada de latas consome-se somente 5% da eletricidade necessária para produzir a mesma quantidade de alumínio pelo processo primário. São mais de 2,9 mil GWh/ano economizados, energia suficiente para abastecer uma cidade como Guarulhos, na Grande São Paulo, com cerca de 1,2 milhão de habitantes. Mais: de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), se as latinhas de alumínio fossem jogadas diretamente na natureza, o seu tempo de decomposição seria de pelo menos cem anos.
Os catadores de materiais descartados se tornaram os atores principais da cadeia de reciclagem. Roberval Prates, da equipe de articulação estadual em São Paulo do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), diz que a experiência altamente positiva da Rede Cata Sampa, integrada por cooperativas na capital paulista e municípios adjacentes e também na Baixada Santista, é um exemplo do dinamismo do setor. “Começamos a agregar as latinhas de alumínio que chegam às cooperativas para ter um volume maior e ainda promovemos ou participamos de eventos para, assim, juntar um número superior de unidades, tornando o negócio mais rentável”, aponta.
Novos atores
Um dos melhores resultados já obtidos, segundo Prates, envolveu a participação de 70 catadores da rede durante os jogos de futebol da Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol (Fifa) 2014 realizados na Arena Corinthians, em São Paulo. Esse grupo integrou um contingente maior de 840 catadores de materiais recicláveis que atuaram nos trabalhos de coleta nos 12 estádios das cidades-sede daquele torneio de futebol. A iniciativa teve origem com a parceria firmada entre Fifa e a Coca-Cola Brasil, que gerenciou os resíduos sólidos durante a competição. “Em São Paulo, coletamos cerca de 7,5 toneladas, investida que abriu espaços para outras parcerias e o início de um novo trabalho: o atendimento das necessidades da Latasa Reciclagem, importante empresa do setor e a pioneira nos anos 1990 na fabricação de latinhas de alumínio”, informa Prates. Uma curiosidade: cada latinha pesa, em média 14,5 gramas – só a tampa representa 25% de seu peso –, ou seja, para atingir uma tonelada são necessárias 68 mil unidades.
O representante da Rede Cata Sampa observa, entretanto, que a maior parte dos catadores que trabalham com latinhas de alumínio é formada por autônomos. “São milhares de pessoas que enfrentam o desafio de driblar a exploração imposta pelos atravessadores, que pagam valores inferiores aos praticados, normalmente R$ 1 por quilo, quando o preço médio pelo mercado é de R$ 3. Mas com a logística reversa em curso no país, a tendência é que esses trabalhadores passem a atuar de maneira organizada, permitindo maior rastreabilidade da coleta e um rendimento mais digno”, sustenta Prates.
Novos atores também entraram na cadeia da reciclagem. “Há grupos de bares, de empresas e até de condomínios que juntam o material para abater os valores pagos nas contas de água e de luz”, diz Morais, coordenador da comissão de reciclagem da Abal. É uma relação de custo-benefício que estimula a crescente participação da sociedade na responsabilidade compartilhada, uma experiência que vem desde o início do século, quando a prática da separação das latinhas de alumínio obteve um salto quantitativo e ganhou espaço no cotidiano doméstico. Cada brasileiro consome, anualmente, em torno de 54 latinhas, embalagens que não chegam mais ao aterro sanitário. Ao mesmo tempo, por apresentar uma característica favorável à condução da temperatura fria e não enferrujar, seu consumo não para de aumentar no país.
Os números expressivos que medem o mercado de reciclagem do alumínio, apesar de a matéria-prima ser, no aspecto financeiro, inferior ao bronze (material considerado nobre), acabam valorizando a latinha como fonte de renda de pessoas que escolheram viver da coleta seletiva. “Por isso, acabou se tornando carro-chefe do setor, puxando outros produtos de menor valor”, explica o executivo da Abal. Isso poderia significar um fator negativo do ponto de vista ecológico, mas a montanha de latinhas de alumínio coletadas, que assusta à primeira vista e agride o meio ambiente, logo desaparece porque a embalagem, prensada, encolhe e perde massa.
Reaproveitamento infinito
Esmagadas, o volume de cada lata diminui em até 18 vezes, de acordo com Morais. É assim que elas são encaminhadas às principais empresas recicladoras concentradas no estado de São Paulo, e à algumas outras menores em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.
Esse é um aspecto que favorece na hora do transporte, pois, devidamente prensadas, as latinhas dispensam o emprego de um número elevado de caminhões, ao contrário das embalagens cheias deslocadas pelo país, que exigem um pelotão de veículos de carga para chegar até às mãos dos consumidores. Dezesseis caminhões com latinhas cheias viram somente um com as mesmas prensadas. Quanto às distâncias a serem cobertas também há um ganho, porque 56% do consumo de bebidas está em São Paulo, além do fato de que as regiões sul e sudeste participam com mais de 70% de consumo de latas do país. Mesmo assim as empresas de reciclagem mantêm cerca de 20 grandes depósitos distribuídos pelo Brasil para absorver as demandas regionais.
Quando o material chega às recicladoras, as latinhas são esterilizadas e depois enviadas aos altos-fornos das fundições, onde o material incandescente se funde a 660°C e se transforma em lingotes de alumínio. Neste formato, é comercializado aos fabricantes de lâminas de alumínio que vendem as chapas às fábricas de lata. “São apenas três as empresas que atuam nesse ramo”, esclarece Renault de Freitas Castro, diretor executivo da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alta Reciclabilidade (Abralatas). “Por causa desse alto grau de segurança, não há perigo de contaminação. Além da exposição à alta temperatura, há alguns outros processos de purificação, como, por exemplo, a lavagem que remove a pintura com jato de ar quente (temperatura em torno de 550°C) e o sistema magnético que retira eventual contaminação por materiais pesados ou químicos existentes”, ele explica.
No Brasil, o tempo de vida da latinha de alumínio no mercado é de 30 dias, contados da aquisição da bebida pelo consumidor, passando pela coleta, reciclagem e posterior retorno às prateleiras do comércio, tempo que, nos anos 1990, girava ao redor de 45 dias. O reaproveitamento pode se dar infinitas vezes, sem prejuízo da qualidade do material. Vale dizer que as latinhas recicladas também têm sido utilizadas para outros fins, como a confecção de panelas e de outros utensílios domésticos.
O país festeja a incrível marca de 98% de reaproveitamento das latinhas de alumínio, mas, pergunta-se, o que falta para chegar aos 100%? Resposta: a ampliação das facilidades para o trabalho de coleta em todo o território nacional mediante a ampliação do número de pontos de entrega voluntária, locais que também se destinam a receber outros tipos de embalagens. Curiosamente, apesar do sucesso da reciclagem, ainda são importadas 40 mil toneladas de latinhas usadas de bebidas por ano, aquisição que ajuda a cobrir as necessidades do mercado, de acordo com a Abal. “E nossos principais fornecedores são África do Sul, Albânia, Alemanha, Coreia do Sul, os Estados Unidos, Nicarágua e a Polônia”, esclarece a entidade.