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Passei dos 100 e quero mais
Por: CLEIDE SALES
É comum que, ao entrar numa barbearia, você seja recepcionado por um simpático profissional, quase sempre sorridente, com a tesoura e a navalha nas mãos. O incomum, no caso, é que o atendimento seja feito por um barbeiro com 100 anos de idade. Parece devaneio, mas este é o cenário para quem utiliza os serviços do Salão Ideal, em São Paulo, onde é possível cortar o cabelo, fazer a barba e, de quebra, bater um papo descontraído com o centenário Pedro Coutinho, sócio do estabelecimento – e que, apesar da longa existência, ainda exerce a função como se moço fosse. E, como tal, ele diz que faz o que mais gosta e o torna alegre: cortar os cabelos dos clientes. Engana-se quem pensa que “trabalho” é um sacrifício ou uma obrigação para Coutinho. “Que nada! Isto aqui é pura diversão. É no salão que me distraio, conheço pessoas, escuto e conto histórias. Passar horas aqui é um passatempo para mim”, sustenta.
Natural de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, Coutinho trabalhou na lavoura de café antes de aprender a manusear a tesoura e a navalha: “Comecei cedo, aos 10 anos, puxando enxada, e, por isso, não tive a oportunidade de estudar”, diz. Relata que se dedicou à roça por longos 20 anos até que, um dia, por recomendação de seu pai, foi aprender a cortar cabelo. E que, quando se sentiu um craque no ofício, na década de 1950, mudou-se para a capital paulista, iniciando sua caminhada no Salão Ideal.
O local, no andar térreo de um edifício residencial, faz parte da história do sofisticado bairro de Higienópolis: aberto em 1938, teve cerimônia solene e corte de fita inaugural, um acontecimento que, passado tanto tempo, ainda emociona Coutinho. Ali ele cumpre uma rotina de trabalho que causa inveja aos profissionais mais novos: “faço, em média, quatro cortes de cabelo por dia. Mas atendo até seis pessoas quando o salão está mais movimentado. Também aparo barba, mas em número bem menor”, explica esse ex-lavrador que pega no batente às 8 horas da manhã e só deixa a barbearia depois das 18h30, isto, religiosamente, de segunda e sábado. “Detesto os domingos e não vejo a hora de a segunda-feira chegar para voltar à ativa”. Coutinho fica em pé cerca de oito horas por dia e argumenta que, devido a essa vitalidade, tem clientes que utilizam seus préstimos há mais de 30 anos. “Não sei se vou parar um dia, isso não está nos meus planos! Prefiro trabalhar em pé, horas seguidas, do que ficar sentado em casa de papo para o ar”, diz.
Como explicar essa disposição apesar da idade? “O conselho que eu dou para quem quer chegar aos 100 anos e permanecer saudável, é não deixar de trabalhar”, declara Coutinho. “Os humanos não são máquinas, mas se parecem com os carros: duas semanas parado, e a partida some porque nesse espaço de tempo a bateria descarrega. Então, a melhor coisa que as pessoas devem fazer para ter uma velhice com saúde é se manter em franca atividade”, ensina o barbeiro. E ele ainda faz questão de dizer que come de tudo e não abre mão de doces.
Ainda vou ser tataravó
Será que essa receita vale para todos? O médico geriatra Leonardo da Costa Lopes, de São Paulo, explica que cerca de 30% da longevidade, segundo estimativas, é determinada pela herança genética e que os 70% restantes são fruto das influências do ambiente e dos hábitos de vida. Diversos estudos demonstram que o envelhecimento com saúde – ou bem-sucedido, como define a Organização Mundial da Saúde (OMS) – está fortemente associado à manutenção de uma vida ativa. “É um grande desafio, pois vemos atualmente muitos idosos que, por não organizarem suas tarefas diárias, consomem a maior parte do dia sentados diante da televisão ou, não é raro, deitados, quando poderiam estar em movimento, caso reunissem condições para isso”, explica Costa Lopes.
Ana Efigênia de Queiroz, a dona Aninha, passou boa parte de seus 106 anos na roça, e, a exemplo de Coutinho, esbanja vitalidade e uma formidável vontade de viver. Mãe, avó e bisavó, a centenária Ana lembra que plantou muita mandioca no tempo em que morava com os pais e irmãos na zona rural, em Minas Gerais, e não foram poucas às vezes em que se viu diante de um tacho fumegante preparando rapadura. “Plantávamos o alimento que ia à nossa mesa. Não existia esse negócio de ir ao mercado, à quitanda ou à padaria; tudo vinha de nossa terra e do gado”, acentua.
A despeito da idade, dona Aninha tem uma memória privilegiada. Ela se recorda, animada, dos tempos da “mocidade” quando, bonita, era cobiçada pelos rapazes da pequena cidade onde residia. “Eu adorava ir à festas e amava dançar, e foi em um desses encontros que conheci meu falecido marido”, conta. Era comum, ainda nos primórdios do século passado, que os pais arranjassem o casamento dos filhos, exatamente como se deu com Ana Efigênia, que contraiu matrimônio aos 16 anos e viveu feliz por mais de 50 com o homem que haviam escolhido para ela. Dessa união nasceram, na roça, 13 filhos, todos pelas mãos de parteiras e sem os recursos médicos de hoje. “Ele foi o grande companheiro de minha vida. Ele era bom, o amor entre nós era forte e verdadeiro e só saíamos de casa juntos. Até que, certo dia, um ataque do coração levou embora meu amado, deixando um vazio que nunca foi preenchido. Uma perda que quase me colocou a pique, tanto que achei que não conseguiria prosseguir”, diz emocionada.
Não fosse pela fraqueza própria da velhice que a impede de manejar a enxada e fazer uma horta (um de seus maiores sonhos), Ana Efigênia não se daria conta de quão avançada é a sua idade. “Acredito que ainda vou viver muito, espero ser tataravó”, diz, feliz com os 62 netos e os 50 bisnetos. Almas que, indiretamente, ajudou a gerar. E não está com brincadeira quando diz que quer viver mais. Ela acredita piamente nessa possibilidade, mostrando como argumento o fato de que nunca ficou doente e de poder comer de tudo, pois nada lhe faz mal. “Adoro feijoada e toicinho, gosto demais de gordura”, diz, animada. Ou seja, alimentos que a medicina combate porque danificam a saúde, fazem a felicidade de dona Aninha. Eles até podem estar ajudando a esticar a sua existência, mas, é sabido, têm a desvirtude de abreviar a vida das pessoas.
A paulista Celina Pires Martins, de 105 anos, não está nem um pouco preocupada com os riscos à saúde. Tanto que também não abre mão de comida forte, gordurosa, mas, em contrapartida, faz caminhadas matinais para manter o equilíbrio do organismo e compensar possíveis exageros gastronômicos. Celina tem um segredo: conta que para chegar tão longe e com saúde – além da sorte, ela sobressai –, é preciso considerar duas prerrogativas: não reclamar da vida e ser otimista. “Evite o negativismo porque ele atrai coisas ruins que atravancam o seu caminho”, observa.
Natural de Jacareí, no interior de São Paulo, filha de professora e pai farmacêutico, Celina lecionou por 30 anos antes de se aposentar em 1958. “Graças à educação e aos esforços de meus pais, me tornei independente financeiramente ainda muito jovem”. Ela conta que era festeira e não perdia um baile. “Dançar me fazia relaxar, me deixava feliz e eu aproveitava para namorar bastante. Haja valsa, haja tango. O estilo musical da época era muito diferente do atual: rodopiávamos pelo salão, coladinhos, e, para tornar o momento inesquecível, tínhamos aulas de dança antes do baile”, recorda-se a outrora animada bailadeira.
Adoro feijoada
Assim que se casou, aos 30 anos, Celina trocou o bailado pela família, mas a música continuou a fazer parte de sua vida. “Aprendi a tocar vários instrumentos, tais como bandolim, piano e violão; todavia, confesso, as canções de agora não me sensibilizam porque não são melodiosas, são insossas e, para piorar, parte delas é uma barulheira só”. Viúva há mais de 30 anos, Celina encontrou nas viagens um lenitivo para a dor do vazio que a falta do marido lhe faz. Na companhia de um grupo de amigos já esteve na Alemanha, China, Estados Unidos e Japão. “Hong Kong, principal centro comercial chinês, foi o destino que mais me encantou”, ela conta.
Mãe de 2 filhas, com 5 netos e 2 bisnetos, Celina, destaca que não tem uma alimentação especial por causa da idade, sendo pouco crítica em relação a comida. “Não gosto de frango e de carne, mas não dispenso o feijão com arroz, um prato para todos os dias. Também não renego uma boa feijoada”. Ela admite, entretanto, que não tem intimidade com as coisas da cozinha e que o fogão não é a sua praia. “Na verdade, acho que nunca cozinhei”, revela.
Celina, que mora com a filha, na capital paulista, diz que está em paz com o mundo que a cerca. “Quero chegar aos 150 anos, e, para isso, além das caminhadas diárias, tenho aula de pilates e faço fisioterapia, semanalmente.” E conta que tem pedido a Deus mais um tempinho aqui na Terra, “simplesmente porque amo a vida”. O desejo de Celina de continuar indefinidamente por aqui combina com o esclarecimento do geriatra Costa Lopes. Ele explica que “o otimismo, assim como a fé religiosa e a sensação de gratidão em relação à vida são aspectos sempre presentes entre os indivíduos centenários, da mesma forma que o bom humor”. E vai mais além, afirmando que a depressão é bem menos frequente em pessoas que vivem muito.
A palavra morte, por exemplo, nunca é recitada por Nair Fonseca Gonzalez, de 101 anos, mas que aparenta 90, uma moradora do interior de São Paulo acostumada a cultuar a vida com a mesma disposição como tricoteia mantas, toalhas e, ultimamente, também blusinhas e macacões para bebês, uma atividade que há décadas ocupa parte de seus dias. Nair passou poucas e boas em outubro de 2014, com a saúde repentinamente abalada, mas nem por isso admitiu a possibilidade de dar um adeus a esta existência. Não que ela tenha esbravejado contra a situação; sua luta pela vida, que comove a família e os amigos, explica tudo.
É certo que a força que contribui para a manutenção da saúde da idosa senhora vem de todos os lados, em especial dos netos que moram perto e se desdobram para que a avó tenha uma vida longa, mas com qualidade. “Não medimos esforços. Se ela luta pela vida, seremos então sua fortaleza”, diz a neta Mônica Martucci, que ao lado das irmãs Bernadete e Rita, e do irmão Francisco zelam pelo bem-estar de Nair. “Não abaixamos a guarda nunca, pois ela é o nosso norte”, fala Rita. “É mais do que isso, é a nossa amada matriarca”, enaltece Bernadete. “Ela é a joia rara da família”, pontifica Francisco.
Restabelecida, depois de um mês de convalescência, Nair retomou a rotina: de manhã, depois do café, aboleta-se na poltrona da sala, de frente para a televisão, e, com a agulha e o novelo de lã, passa horas confeccionando peças que presenteia ou vende. Sim, ela continua aceitando encomendas de enxovais para recém-nascidos. Depois do almoço, repete o mesmo ritual, parando apenas ao anoitecer, quando, então, assiste os noticiários pela TV, e, vez por outra, os capítulos da novela da noite. Depois, se recolhe. A artesã pouco se movimenta porque faz uso de andador, equipamento que virou seu inseparável companheiro depois que, anos atrás, quebrou o fêmur. Com medo de ir novamente ao chão, Nair levou seu cérebro a criar uma espécie de bloqueio à livre locomoção. A saída, então, foi lançar mão daquele aparelho.
“Não gosto de arroz”
Boa de cabeça e de conversa, sua casa nunca fica vazia: quando não são os parentes, são os amigos que passam por lá para uma um dedinho de prosa. “Quer um cálice de licor?”, ela oferece aos visitantes, um agrado que soa como uma recompensa pela atenção das pessoas. “Ninguém compra amigos, eles vêm de brinde”, diz.
Assim como Nair Gonzalez, a mineira Brazilina Moreira de Barros, residente no município de Ubaí, também tem 101 anos, mas seu estilo de viver é diametralmente oposto. Ela diz que não gosta de depender de outras pessoas para realizar suas atividades domésticas ou sair de casa. “Faço meus passeios todos os dias, vou à igreja, visito minhas filhas e dou uma esticada ao supermercado. Saio quase sempre sozinha, me sinto saudável, forte, independente”, garante. Com problema de audição e um pouco debilitada, Brazilina não segue uma dieta recomendada para a idade. “No meu cardápio não tem arroz e alimentos salgados, mas a carne de porco, meu prato preferido, não pode faltar”. Essa brasileira centenária vaidosa, que gosta de se maquiar, manter os cabelos sempre penteados e fazer as unhas; que perdeu os pais, ainda pequena; que labutou na roça antes de contrair matrimônio com o primeiro namorado com quem teve sete filhos, e que se diz reconfortada quando é paparicada pelos netos, 48 ao todo, não diz, mas se comporta como quem está preparada para viver outros 101 anos.
O alagoano Agenor Silva Lima, de 102 anos, residente na capital paulista desde a adolescência, talvez não tenha essa pretensão, mas, feliz com a idade, saboreia cada minuto de sua vida agitada. Ele mora só, cozinha, lava e passa, e, quando vai ao supermercado, dirige seu próprio carro. Combatente da Revolução Constitucionalista de 1932 e ex-policial civil, Lima tem o hábito de tomar chá de camomila enquanto corre os olhos pelo álbum de fotos antigas da família. “Fiquei viúvo há seis anos, e, sei, jamais encontrarei uma companheira com os predicados de minha mulher”, ele diz. “Por isso, prefiro continuar sozinho”.
Duas vezes por semana, invariavelmente, Lima faz uma caminhada até o Museu do Ipiranga, na proximidade de sua residência, e garante que não sente cansaço nem dores pelo corpo. “As pessoas ficam surpresas com a minha saúde, achando que não bebi e fumei. Ledo engano”, fala o alagoano arretado. “Aproveitei o melhor da vida, ia a bailes, bebia, e, ainda hoje, fumo charutos”.
Dizem que longevidade não distingue sexo e muito menos o estado civil do indivíduo, não importando, em princípio, que ele seja casado, solteiro e tenha ou não filhos, isto apesar de uma pesquisa conduzida pela Universidade Duke, dos Estados Unidos, ter concluído que manter um relacionamento amoroso ao longo da vida aumenta a sobrevida de homens e mulheres. Isabel de Almeida Rodrigues não se casou e, na falta dos filhos, dispensa atenção integral aos sobrinhos, uma rotina que, ela diz, só lhe trouxe felicidades e a fez chegar, saudável, aos 100 anos. Bel, como ela é chamada, uma técnica de laboratório que se aposentou depois de 40 anos de trabalho, e que, em casa, ganhou muito dinheiro tricotando (“paguei a faculdade de uma sobrinha com as peças de roupa que fazia”), gosta de comer pão com vinho e, vez por outra, macarrão ao molho branco com bastante queijo gratinado. Alguma reclamação? “Não, não tenho nada o que lastimar. Tenho saúde e pessoas que me amam. Sou muito feliz”, sustenta.