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Onde a quietude fez morada
Por: JOSÉ PAULO BORGES
Quem chega a Serra da Saudade precisa ficar atento. A placa à beira da estrada, que indica o início do perímetro urbano, está quase integralmente encoberta pelo mato. Se não prestar atenção, o visitante será levado a pensar que se trata de mais um desses vilarejos escondidos entre as montanhas do centro-oeste de Minas Gerais, e seguir viagem deixando para trás a menor cidade do Brasil em número de habitantes. São apenas 17 ruas, duas praças, uma avenida e um beco, cenário que cabe com folga num único cartão-postal. A cidadezinha foi batizada assim em homenagem às montanhas que se espalham ao redor e que, desde um tempo muito antigo, levam o nome de Serra da Saudade.
Há mais de 20 anos, Serra – como os moradores locais gostam de chamar o lugar – vem disputando, habitante por habitante, o título de centro urbano menos populoso do país com Borá, minúsculo município do interior de São Paulo. No último censo de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou 805 habitantes em Borá, contra 815 em Serra da Saudade. Em 2012 as duas estavam empatadas, com 807 moradores cada uma. Em 2014 veio o desempate. Naquele ano, a estimativa do IBGE apontou Serra da Saudade com 822 habitantes e Borá com 835. O motivo do crescimento de Borá foi o boom habitacional atribuído à chegada de novos moradores atrás de empregos oferecidos por uma usina de açúcar e álcool instalada no município. Em Serra, como as fazendas de gado e a lavoura de subsistência ocupam pouca mão de obra, o maior empregador continua sendo a prefeitura. O salário médio dos servidores da cidade é de um salário-mínimo e meio. Pelo sim, pelo não, os dois pequenos aglomerados urbanos aguardam com expectativa o próximo censo, marcado para 2020.
Serra não tem estação rodoviária. Assim, o visitante que, por exemplo, embarcar em um ônibus em São Paulo – a mais de 650 quilômetros de distância – com destino ao município, tem de descer em Dores do Indaiá, centro urbano vizinho, e lá arrumar uma carona ou tomar um táxi. São outros 36 quilômetros de viagem, pelo menos, mas compensa. A estrada asfaltada é pouco movimentada e a paisagem montanhosa enche os olhos. E, no topo das árvores, volta e meia, pousa um tucano.
Quem não tem onde se hospedar em Serra pode ficar tranquilo: todos os taxistas de Dores do Indaiá sabem onde fica a pensão de Maria José Ricardo – que todo o mundo conhece mesmo como “a pensão da dona Lia”. Não precisa fazer reserva, a vaga é quase certa. É a única hospedaria do local e costuma ficar até 20 dias sem receber um único hóspede. Magra e ágil, 84 anos de idade – sempre com um “uai” ou um “trem” na ponta da língua, expressões típicas dos mineiros –, dona Lia vai logo avisando que o lugar é simples, sem luxo. “Aqui não tem dessas coisas de suíte, o banheiro fica no corredor, mas a água do chuveiro é quente, uai.” O almoço, caseiro, ela mesma prepara, e sempre tem um cafezinho coado na hora. O queijo feito pelo genro e uma das filhas da dona da pensão, que moram na roça, é cortesia da casa. O portão na entrada do estabelecimento não tem cadeado e o hóspede pode sair e voltar à hora que quiser, sem se preocupar com essa história de trancar a porta do quarto.
No início de junho, quando a reportagem de Problemas Brasileiros passou por ali, os únicos clientes da dona Lia eram dois ou três técnicos de uma empresa de telefonia móvel, que prestavam serviços de ampliação da rede em Serra. Não demorou muito, a pensão se agitou com a chegada de um grupo de doze moças e rapazes alegres e barulhentos. Eram os “estradeiros do oeste”, uma comitiva de cavaleiros do vizinho município de Luz, que estavam fazendo um passeio a caminho de Abaeté, na região. À noite, o grupo assou alguns pedaços de carne e linguiça numa churrasqueira improvisada na calçada da pensão, cantou e bebeu cerveja à vontade, mas às 22 horas todos se recolheram. Depois que os “estradeiros” foram embora, logo cedo, na manhã seguinte, a pensão da dona Lia voltou ao sossego de sempre. “Cavalgada é uma das diversões por aqui”, contou Braguinha, filho de Lia, enquanto os cavaleiros dobravam a primeira esquina. Segundo ele, outra diversão na cidade, principalmente entre as crianças, é andar de bicicleta. Seu sobrinho, Paulinho, de 8 anos, quando não está na escola passa o dia pedalando, pra lá e pra cá.
Itamar Ricardo, o Braguinha, é um dos melhores cicerones da cidade. Basta pagar alguns trocados que, aboletado num veículo com muitos anos de uso, é verdade, ele leva o visitante para conhecer o que há de interessante no local. A começar pelos dois túneis, um com 850 metros de extensão e o outro, com mil metros, cavados num morro existente a poucos quilômetros do centro. São passagens de uma estrada de ferro desativada e que fora construída a partir de 1922 para ligar Dores do Indaiá a Serra da Saudade, cujo último destino – que nunca foi atingido – seria Paracatu.
Livre de gatunos
A estação da linha férrea foi inaugurada em 22 de julho de 1925 e, ao redor, surgiram as primeiras casas, de funcionários da ferrovia e de posseiros. Batizado à época de Melo Viana, o povoado cresceu, foram surgindo pontos comerciais e alguns restaurantes. Pelos trilhos, Serra embarcava gado e escoava a produção de café e milho, além de madeira extraída na região. Em 1963, foi instalada a prefeitura, quando então Serra deixou de pertencer a Dores do Indaiá, ganhando status de município. O lugarejo fervilhava. No final dos anos 1960, Serra chegou a ter em torno de 2.200 habitantes, portanto, quase o triplo da população atual. Mas, com a construção da BR-262, o movimento pela estrada de ferro foi minguando até ela se tornar antieconômica aos olhos do governo, seu proprietário. Em 1969, os trilhos foram arrancados para dar passagem ao transporte rodoviário. Hoje, os túneis e a antiga estação, no centro, são os últimos vestígios daquele passado de glória.
Serra da Saudade viveu um outro momento marcante durante a construção de Brasília. A partir do sudeste o caminho mais próximo para o transporte das toneladas de tijolos, cimento e aço com os quais a nova capital estava sendo erguida, no meio da selva amazônica, passava por ali. Gente de todo lugar aportava em Serra. Quem lembra muito bem dessa época é o morador mais antigo da cidade, o aposentado Odilon Costa, 90 anos. Quando anoitece, às vezes ele esquece de fechar as amplas janelas do sobrado da praça Ademar Ribeiro de Oliveira, onde mora, uma herança do sogro. “Não precisa se preocupar, aqui ninguém mexe nas coisas dos outros”, garante. Ele chegou a Serra da Saudade há 69 anos, em busca de oportunidade. “Vim trabalhar no posto de gasolina do meu primo. O movimento era grande, ia até tarde da noite.” Depois de um dia de trabalho, Odilon e os rapazes da cidade tinham um destino quase certo, o antigo cassino da cidade.
Ele ainda se recorda de Maria Balofa, a prostituta que trabalhava no cassino e que acabou entrando para a história de Serra da Saudade. “Maria Balofa se apaixonou por um homem casado”, conta o aposentado. A prostituta foi muito hostilizada por causa disso. Desiludida, acabou se matando numa nascente de água que existe perto da cidade e onde ela costumava lavar suas roupas. Quando o corpo foi encontrado, ao lado havia uma lata de veneno. A história se espalhou, muita gente se comoveu. Foi em 1948. O local é conhecido como nascente da Balofa. Não é que a triste sina de Maria Balofa poderá servir como alavanca para ajudar no desenvolvimento da cidade, baseado em seu potencial turístico? Acontece que a nascente da Balofa faz parte do circuito turístico Caminhos do Indaiá. Formado por oito cidades, o circuito, criado em 2008, é denominado assim em referência ao Rio Indaiá, que corta a região. Em alguns trechos desse curso de água é possível praticar canoagem e outros esportes aquáticos e pesca.
A rua principal de Serra, a Luís Machado, tem menos de 500 metros, de ponta a ponta, espremida entre as praças Ademar Ribeiro de Oliveira e Nossa Senhora do Carmo. Trata-se, na verdade, de uma ladeira estreita e um tanto íngreme que se estende da igrejinha de Nossa Senhora do Carmo, morro acima, ao Jesuíno’s Bar, descida abaixo. Na Luís Machado e nas duas praças – além de vizinhos conversando tranquilamente na porta das casas, alguns cães sonolentos e galinhas ciscando sem pressa –, encontram-se as repartições públicas e os pontos comerciais que dão vida à cidade: o Baratão do Renato, a Lotérica Megamilhão, a Panificadora e Lanchonete Sabores da Serra, a Escola Municipal Luís Machado Filho, a prefeitura, o correio, o Centro Cultural “Zé Mestre” e o Supermercado do Faustino, entre poucos outros estabelecimentos. Nenhum semáforo para orientar a frota local de 222 carros e oito caminhões (números de 2014), nenhuma faixa de segurança para proteger os escassos transeuntes. Inesperadamente, numa ruazinha perto da igreja, à direita de quem desce, o visitante se depara com uma placa de trânsito que adverte: é proibido estacionar.
Contas equilibradas
Posto de gasolina a cidade não tem, farmácia só a que funciona no posto de saúde – que, por sinal, fornece de graça à população medicamentos de uso mais comum. Na verdade, quem banca boa parte do atendimento fornecido aos moradores é a prefeitura. Dentista, fisioterapeuta, acupunturista, psicólogo e exames de “vistas” são por conta da municipalidade. O poder público também oferece internet sem fio para todos, academia de musculação, pilates e aulas de música e artes no ginásio de esportes. Como se não bastasse, o custo do transporte de estudantes universitários que cursam faculdades em municípios vizinhos também é coberto pelos cofres municipais; e se o curso for a distância arca com a metade das despesas.
Como explicar tantos benefícios, já que o orçamento é limitado e a cidade depende basicamente da transferência de recursos federais e estaduais? A prefeita Neusa Maria Ribeiro, reeleita em 2012 com 86,7% dos votos válidos – era candidata única –, revela o segredo: manter equilibradas, a ferro e fogo, a receita e a despesa. Tem dado certo. Em 2013, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a partir de informações do próprio município, a receita total chegou a R$ 9,59 milhões, enquanto as despesas somaram R$ 8,53 milhões. Não são raras as vezes em que a prefeita vai a Brasília em busca dos “bons serviços” de um deputado federal majoritário na região. Foi assim que ela obteve R$ 800 mil utilizados na compra de equipamentos, como uma pá carregadeira, e na revitalização de uma praça, na reforma do prédio da antiga prefeitura e na iluminação do campo de futebol. Para reforçar a arrecadação e não depender apenas da ajuda oficial, a municipalidade incentiva o pagamento em dia dos impostos municipais (os moradores adimplentes concorrem ao sorteio de brindes, como televisão, geladeira e fogão).
“Política em Serra é um consórcio de famílias”, ironiza um morador. Uma passada de olhos nos resultados das últimas eleições avaliza o comentário. O atual vereador Renato Adriano, o Renatinho (PP), é irmão de Anderson Ricardo Gomes, que foi candidato em 2008 a vice-prefeito na chapa de Luiz Donizete (DEM). Este já foi prefeito, mas teve a candidatura impugnada por problemas nas contas públicas. Os elos políticos familiares não param por aí. Geraldo Batata (PP), cunhado do ex-prefeito Alaor Machado, foi reeleito para mais um mandato na Câmara. Sebastião Ribeiro (PSDB), o Sebastião da Jenuína, atual presidente da Casa, vem a ser tio de Luiz Donizete.
Quando o assunto é saúde, a população parece que não tem muito do que se queixar. O mosquito da dengue, por exemplo, não tem feito voos rasantes por lá devido às ações preventivas levadas regularmente a cabo pelo serviço de vigilância sanitária e epidemiológica, envolvendo no mais das vezes crianças das escolas e o pessoal da prefeitura. O último foco do mosquito na cidade foi detectado em março deste ano e eliminado imediatamente. “O controle da dengue é rigoroso e o da raiva também graças à sequência de vacinações em animais realizadas no município”, conta a prefeita. O laboratório de análises clínicas do centro de saúde faz todos os exames de rotina, tais como hemograma, colesterol, triglicérides e ácido úrico. “Os exames que não podem ser feitos na cidade são encaminhados para Dores do Indaiá ou Belo Horizonte. Quando o paciente não pode ir ao centro de saúde, faz-se a coleta no domicílio. Para nós, o importante é preservar a saúde”, diz a prefeita.
Nada de indústrias
Na Escola Municipal Luís Machado Filho estudam mais de 200 alunos, boa parte deles moradores da zona rural. Por isso as aulas começam às 9 horas, para dar tempo aos quatro ônibus escolares de percorrer as fazendas da região por mais de uma hora, trazendo todos os estudantes. Ao chegarem à escola eles são recebidos com um café da manhã reforçado, com direito a iogurte, frutas, leite, pães e bolos. Às 11 horas é servido um almoço acompanhado de sobremesa – em geral um doce ou uma fruta – e preparado sob a supervisão de uma nutricionista. Em seguida, os alunos retomam os estudos, que se encerram às 13h15. A escola desenvolve, regularmente, projetos de incentivo à leitura e oferece oficinas de música, dança e violão, entre outras atividades. Todos os anos é realizado um sarau poético-literário. “É para levar os alunos a se encantarem com o mundo da leitura”, explica a professora Silvânia Fernandes. Em 2015 o homenageado foi o escritor Monteiro Lobato.
Como a escola oferece aulas apenas até o 3o ano do segundo grau, concluído o curso, a muitos jovens não resta alternativa senão ir embora da cidade. “Infelizmente, há pouco interesse do setor privado em trazer empresas para Serra. Por isso, a juventude tem de correr atrás de um futuro melhor em outras paragens”, afirma em tom de lamento o secretário da Educação, Ivan Hernane de Oliveira.
A segurança de Serra, que não tem delegado, fica por conta de um efetivo formado por três policiais militares. É comum em pleno dia de semana a delegacia permanecer fechada. Os policiais trabalham em regime de plantão, ou seja, se acontecer alguma coisa – em geral desinteligências miúdas por causa de bebida – eles são acionados por celular. Não há mesmo necessidade de expediente policial em um lugar cujo último homicídio aconteceu há mais de 50 anos. Se bem que, meses atrás, foram registrados alguns furtos, à noite, de óleo diesel subtraído dos veículos da frota da prefeitura. A vigilância na garagem foi reforçada e quase não se fala mais no assunto.
A cidade, porém, não está livre do flagelo das drogas, mais especificamente o crack. Mas o consumo é discreto. Segundo a Polícia Militar, como não há ponto de venda em Serra, os usuários vão comprá-la em municípios vizinhos. “Quando essa droga chegou, as pessoas tentavam esconder. Ninguém queria admitir que estávamos diante de um problema”, diz a prefeita, que decidiu encarar a questão de frente e contratou psicólogos e assistentes sociais para darem palestras com o objetivo de orientar sobre os danos provocados pelo vício, especialmente entre os jovens. “Não adianta esconder o sol com a peneira”, pondera Neusa.
Em Serra da Saudade, conforme o hino oficial da cidade, “há brisas de segredo e solidão”. Mas há também um festejo de Natal, prestes a completar 20 anos, que para muita gente é um dos melhores daquela região de Minas Gerais. Na noite de Natal, uma mesa de quase dez metros fica exposta e nela, a partir das 21 horas, moradores e visitantes podem se servir à vontade de arroz, frango, salada, tutu de feijão e, de sobremesa, doce de leite com mamão e queijo. Tudo isso começa a ser preparado uma semana antes. Quem ajuda na montagem do evento são voluntários da prefeitura e cozinheiras da escola municipal e do Centro de Educação Infantil Menino Jesus. “É uma ceia de Natal organizada com muito carinho. Além dos moradores, recebemos cada vez mais visitantes e isso nos alegra muito”, entusiasma-se a prefeita. É festa pra cidade grande nenhuma botar defeito.