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O homem que conhecia as palavras
Por: CECILIA PRADA
Não há quem desconheça o lexicógrafo e filólogo Antônio Houaiss, que dedicou toda sua vida ao ensino e à estruturação da língua portuguesa. Deixou 19 livros, entre os quais destacam-se o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, tendo ainda participado da elaboração dos dicionários Barsa, em inglês e português [Koogan-Larousse e Webster´s], e da Enciclopédia Mirador. No campo literário, é autor da primeira tradução do Ulysses, de James Joyce, lançada em 1966, na qual trabalhou durante sete anos. Homem de vasta cultura e larga visão intelectual, Houaiss deixou obras que incluem crítica, filologia, bibliografia e ensaios políticos. Foi o principal negociador do Acordo Ortográfico atualmente em vigor e legou-nos também o Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa, fundado em 1997.
Nasceu no dia 15 de outubro de 1915, quinto entre os sete filhos de um humilde casal de libaneses, Habib Assad Houaiss e Malvina Farjalla Houaiss. Formou-se perito-contador, mas preferiu as letras clássicas, que cursou na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Foi professor de português, latim e literatura no nível secundário de 1934 a 1946, quando se demitiu para seguir a carreira diplomática, com a qual teve contato ao lecionar português no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro de Montevidéu.
Foi vice-cônsul em Genebra e participou de representações brasileiras junto à Organização das Nações Unidas (ONU). Colaborou também na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo e foi editor-chefe da Enciclopédia Mirador Internacional. Chegou a ser ministro da Cultura do governo de Itamar Franco, em 1993, e, em 1996, ocupou a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL). Quando assumiu sua cadeira na ABL, em agosto de 1971, foi recebido oficialmente por Afonso Arinos de Melo Franco, grande figura de jurista, historiador e político brasileiro (1905-1990), ex-ministro das Relações Exteriores, que no discurso de boas vindas lembrou suas raízes: “Sois um brasileiro representativo: nascestes no Rio de Janeiro, a mais brasileira das metrópoles, como filho de pais imigrantes, o que representa a outra face do vosso autêntico brasileirismo. Os descendentes dos velhos troncos coloniais, como alguns colegas que diviso desta tribuna, são historicamente brasileiros, mas aqueles que, como vós, não trazem nas veias nenhuma gota do sangue dos fundadores, são brasileiros sociologicamente. E se a obra dos fundadores tornou possível a união nacional, a integração dos imigrantes é que faz, em grande parte, o desenvolvimento do País”. E destacou seu amor pelos livros: “Sois, essencialmente, o homem do livro. Talvez não exista, na atual geração, ninguém mais ligado a ele do que vós, porque viveis para o livro, tanto na sua forma, como no seu conteúdo”.
Ativismo político
Menos conhecida, mas não menos importante, é a sua “biografia política”, pois o menino carioca desde a adolescência até a morte manteria uma luta consciente e constante como ativista político de linha esquerdista, tendo sido principalmente um hábil costurador (não fosse filho de um alfaiate...) de vários movimentos e associações da esquerda brasileira, dos anos 1930 ao final do século 20. Aos 15 anos, influenciado que fora desde a infância pelos anarquistas imigrantes, inscrevia-se, na escola comercial que cursava, na Federação Vermelha dos Estudantes. Poucos anos mais tarde assumiria aberta militância durante o Estado Novo, ao lado dos sobreviventes do velho Partido Socialista que fora fundado em São Paulo em 1902. Permaneceria sempre ligado a ele, que foi dissolvido no período da ditadura militar. Em 1985, após a normalização democrática, Houaiss presidiu a Comissão que o reorganizou.
O jornalista e professor Roberto Amaral, que foi presidente do Partido Social Democrático (PSD) até 2014, em seu artigo “Antônio Houaiss, Modelo de Intelectual de Esquerda” assim o definiu: “Se Antonio Gramsci não houvesse formulado o conceito de intelectual orgânico, Antônio Houaiss o teria construído, com sua vida, sua existência política de intelectual permanentemente engajado, comprometido, ostensivamente comprometido com seu tempo, com sua história”.
Aos 30 anos, após ter trabalhado como professor de ensino médio, ingressou, em 1945, por concurso direto, na carreira diplomática – e nela sofreu duas históricas demissões punitivas.
Em 1953, com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ilegalidade, cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia de colegas, acusados de criar uma “célula comunista” dentro do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Eram eles: Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antônio Houaiss, Jatyr de Almeida Rodrigues, João Cabral de Melo Neto e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira. Foram todos colocados, por decreto de Vargas, em “disponibilidade inativa” – ou seja, sem remuneração. O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a apuração “da responsabilidade criminal dos indiciados”. Mas eles apelaram para o Supremo Tribunal Federal (STF) e conseguiram ser reintegrados na carreira – Houaiss foi o primeiro a voltar à ativa, após somente um ano. Dois deles, porém, Almeida Rodrigues e Houaiss, voltariam a ser cassados e aposentados compulsoriamente depois do golpe de 1964.
A segunda cassação de Houaiss não se deu apenas pela sua fama de “notório esquerdista comunista” – teve um motivo específico que o fez ser individualizado e cassado quase imediatamente, isto é, em julho de 1964. A punição foi exigida pela colônia portuguesa conservadora do Rio de Janeiro, inconformada com a posição anticolonialista defendida por ele na ONU em relação às colônias africanas, que o ditador Antônio Salazar teimava em classificar como “províncias ultramarinas”. Apoiado por Afonso Arinos de Melo Franco, na época chefiando a Delegação Permanente do Brasil junto à ONU, Houaiss trabalhou ostensivamente em prol da libertação dos povos colonizados. No Inquérito Policial Militar (IPM), instaurado logo após a promulgação do Ato Institucional nº 1, foi acusado de “desrespeito em relação a Portugal”, de “ter votado seis vezes contra os Estados Unidos” e de “criar uma célula comunista na Delegação do Brasil junto à ONU”.
Históricas reminiscências
Numa tentativa de proteger Houaiss contra a perseguição promovida pela ditadura militar, o Departamento de Administração do Itamaraty removeu-o às pressas para o Consulado-Geral em Montreal – onde somente permaneceu um mês, se tanto, pois sua presença logo foi exigida no Brasil pelo governo militar, para enfrentar seu processo. Acontecia, no Itamaraty, a mesma coisa que ocorreria nas outras repartições públicas do país. Inevitável a cisão entre os que “aderiam”, os que se calavam ostensivamente e tentavam manter o emprego, e os raros que se revoltavam francamente. Passou à história da Casa de Rio Branco o gesto do embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues, que naquele momento servia na ONU, em Genebra. Ao receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao Itamaraty: “Não sirvo a governos gorilas”. Sua aposentadoria foi publicada no dia 2 de julho de 1964.
Naqueles dias de chumbo, quem estivesse lotado no Itamaraty poderia acompanhar de dentro atitudes comportamentais as mais diversas, características dos períodos de perseguição, pressões de todo tipo, delações de colegas. As máscaras caíam, era o “salve-se quem puder”. Os que haviam pulado no bonde da História apostando no “progressismo” da hora e que então tentavam atirar os colegas para os trilhos – bonde descarrilado, aquele! Muitos desses delatores se deram mal, porque de certa forma o esprit de corps permanecia, na carreira – foram relativamente poucos, em relação à razia no serviço público em geral, os diplomatas perseguidos e cassados.
Nos últimos anos, com a normalidade democrática e a abertura de arquivos relativos ao período ditatorial, começaram a surgir publicações que contavam a verdadeira história desses anos tristes, vividos pelos diplomatas brasileiros. Edgard Telles Ribeiro, por exemplo, que hoje é embaixador e escritor reconhecido principalmente no campo da ficção policial, lançou em 2010 o romance O Punho e a Renda, onde, valendo-se de nomes fictícios e protegendo-se por trás da expressão de praxe, “qualquer semelhança com pessoas vivas ou falecidas é mera coincidência”, elabora na verdade uma denúncia forte, documentada, vivenciada, que permite, para quem foi ligado ao Itamaraty, identificar quase todos os personagens.
Uma reportagem de Claudio Dantas Sequeira para o “Correio Braziliense”, em 23 de julho de 2007, desvenda os bastidores políticos da Casa de Rio Branco no período ditatorial, com a divisão dos diplomatas em três grupos: os “estivadores”, que mantiveram o serviço burocrático e administrativo; os jocosamente denominados “destiladores de alta essência”, por conseguirem dar continuidade, em nível internacional, a trabalhos e estudos de temas econômicos e sociais que muito honram o Brasil, até hoje; e os “lixeiros”, apelido que dá a ideia do grau de rejeição em que eram mantidos pelos colegas – isto é, os que aderiram à “causa revolucionária” e assim encurtaram o prazo normal para se atingir os postos mais altos na carreira, trabalhando no Centro de Informações do Exterior (Ciex), órgão implantado secretamente pelo zelo anticomunista do embaixador Pio Corrêa, em 1967, para, em colaboração com o Serviço Nacional de Informação (SNI) e a agência central de inteligência dos Estados Unidos (CIA), localizar e perseguir “subversivos” no exterior.
O tema é tratado amplamente também pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, que está afastado do Itamaraty por ser contrário à política petista de degradação da carreira diplomática e prefere entregar-se totalmente, no presente, aos livros que escreve sobre problemas internacionais e economia, e aos seus estimulantes blogs jornalísticos. Como www.diplomatizzando.blogspot.com.br, onde lava a alma livremente – a sua e a dos leitores.
Na Casa de Rio Branco
Com justificado orgulho o Itamaraty comemorou, em abril, os 70 anos do Instituto Rio Branco – é a terceira academia diplomática mais antiga do mundo, após a Academia de Viena (Áustria) e a Pontifícia Academia Eclesiástica do Vaticano. E tem desempenhado desde a sua fundação papel dos mais importantes na estrutura do serviço público brasileiro, formando várias gerações de diplomatas capazes de representar dignamente o Brasil no contexto internacional.
No entanto, é amplamente reconhecida hoje a necessidade de uma reavaliação de certos aspectos tradicionais e ultrapassados de sua estruturação. O próprio embaixador Mauro Vieira, atual ministro das Relações Exteriores, escreveu e discursou, em abril deste ano, enfatizando que “o serviço diplomático brasileiro deve ter a cara do país e refletir sua diversidade. Ainda há desafios a vencer para atingir representação na carreira diplomática mais fiel à composição da população brasileira”. E reconheceu “a mudança em curso” na atual administração sobre a participação das mulheres na carreira.
Um trabalho de fôlego
Durante quase duas décadas, Antônio Houaiss dedicou-se à elaboração de sua obra máxima, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fecho de ouro para um brasileiro que, aos 16 anos, começou a ensinar português e não parou mais. Ele esteve à frente do desafio e do compromisso de criar o mais completo dicionário da língua pátria, acompanhando todas as etapas de produção basicamente até sua morte. O trabalho iniciado por Houaiss foi concluído por sua equipe, hoje aglutinada em torno do Instituto Antônio Houaiss (IAH), no Rio de Janeiro, entidade nascida em 1997 com o propósito de levar adiante o projeto de seu mentor, um dicionário que representasse um novo paradigma da língua portuguesa.
É sabido que em torno de 200 pessoas estiveram de alguma forma ligadas àquela proposta, entre elas, segundo o instituto, importantes nomes da inteligência e da cultura brasileiras. “Finalmente, em agosto de 2001, o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa foi publicado e, desde então, nos dedicamos ao desenvolvimento constante desse e de novos produtos de excelência, além de oferecer consultoria na criação de livros de referência”, observa o Instituto Antônio Houaiss, que, no Brasil, já editou livros em conjunto com a Editora Objetiva, a Paracatu Editora e a Publifolha e, em Portugal, estabeleceu parceria com a editora Círculo de Leitores.
Houaiss teria dito, certa feita, que “quanto maior a desinformação do usuário, maior o desamor por aquilo que é o meio mais eficaz de comunicação entre os falantes de qualquer nação, a sua própria língua”. Vai daí que, segundo seu raciocínio, mapear e registrar as palavras usadas na nossa língua se reveste de fundamental importância para a afirmação do Brasil como nação. O Grande Dicionário Houaiss, portanto, cumpre essa função.
Quatro anos depois de seu lançamento, o Instituto e a Editora Moderna celebraram um contrato para o desenvolvimento de um novo dicionário “que guardasse a estrutura e as informações do Grande Dicionário Houaiss, mas com conteúdo e projeto gráfico que permitissem preço final acessível a um número maior de leitores”. Foram dois anos e meio de trabalho e investimentos de mais de R$ 1 milhão, tarefa que teve de ser esticada porque, nesse meio tempo, o governo comunicou a iminente execução do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. “Diante disso, junto com o IAH, montamos uma nova equipe, desta vez para adaptar integralmente a obra às regras da reforma, e este processo levou um ano e dois meses”, relata em seu site a Editora Objetiva.
Para reduzir seu volume sem perder conteúdo, o novo dicionário utilizou técnicas lexicográficas de compressão e síntese de informações que resultaram numa “obra ágil e prática, com todas as qualidades do Grande Houaiss e um número de dados sobre a língua maior do que é possível encontrar em dicionários dessa extensão”, garante o instituto. O trabalho enfim apresentado ao país, de 2.048 páginas, contém 442 mil entradas, locuções e acepções, no formato 21 x 27,5 centímetros. “Ele é acompanhado por CD-ROM com a versão digital integral e informações adicionais, tais como mais de 13 mil elementos mórficos que formam a língua”, esclareceram os responsáveis quando de seu lançamento, seis anos atrás. Eles dizem que o novo dicionário oferece “informações de gramática, usos, etimologias, sinônimos, antônimos, homônimos, parônimos, datação, coletivos e vozes de animais”.