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Aposentados, mas ainda no batente
Por: MARCELO SANTOS
A rotina do recifense Mario, 76, não mudou quando se aposentou, há 11 anos. E, no que depender dele, não irá mudar. “Espero nunca parar de trabalhar, espero morrer com a caneta na mão.” O administrador e escritor Carlos Damberg, 73, é outro que não gosta do termo aposentadoria. Para ele, a palavra só tem sentido para identificar uma situação legal perante a Previdência Social, mas jamais como sinônimo de inatividade. Michel, 68, está oficialmente aposentado há oito anos, mas nunca deixou de pegar no batente. Nos últimos anos, aliás, tem trabalhado num ritmo especialmente intenso. Edi tem 77 anos, e, depois que se aposentou, passou de empregado a empregador: fundou uma empresa de vegetais congelados e faturou R$ 52 milhões em 2014. Está ampliando a fábrica e planeja iniciar as exportações para países da América Latina, em 2017.
A ideia de aposentadoria, como o próprio conceito de trabalho, tem se transformado bastante nas últimas décadas. A tecnologia permite hoje formas de trabalho impensáveis há pouco mais de 15 anos, mas uma coisa não mudou: o tempo continua passando, as pessoas envelhecendo e a energia para o trabalho diminuindo. O engenheiro metalurgista Michel Chebel Labaki cultivou uma carreira de sucesso. Ocupava na década passada o cargo de diretor da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Quando completou 60 anos, já somava 35 de contribuição à Previdência e resolveu requerer a aposentadoria. “Na verdade nunca me senti como um pensionista, estava muito bem de saúde na época e meu ritmo de trabalho não mudou”, afirma. Além da boa disposição, Michel precisa continuar gerando renda extra, uma vez que ainda paga parcelas de uma dívida tributária adquirida durante o período em que teve empresa própria. “Não quero deixar nada para trás, quero pagar tudo, além do fato de que também gosto de trabalhar.”
Mas, se não tivesse esses compromissos, ficaria em casa? “Não veria problema nenhum em parar. Saberia bem o que fazer com meu tempo livre.” Na agenda sairiam reuniões profissionais e entrariam visitas aos seus cinco netos, tocar mais violão e dedicar mais tempo para a literatura. Aproveitaria ainda para ir mais à praia, já que possui casa em Caraguatatuba, litoral paulista.
Edi Luiz Deitos, por sua vez, aproveitou a aposentadoria para dar um grande salto, transformando-se num empresário de sucesso. Esse gaúcho natural de Serafina Corrêa (220 quilômetros a noroeste de Porto Alegre) trabalhou por mais de 40 anos como executivo em frigoríficos da região. Perto dos 60 anos, dirigia uma fábrica da Perdigão na sua cidade natal e nem pensava em passar os anos seguintes sentado no sofá de frente para a televisão. Mas a empresa oferecia incentivo financeiro à aposentadoria dos funcionários que atingissem aquela idade, o que o instigou a aproveitar a oportunidade para criar uma empresa. Aos 58 anos iniciou suas pesquisas. Nas férias de 1996, foi à Europa com a esposa, onde participou de duas das principais feiras mundiais de alimentos. Lá conheceu a técnica de congelamento de vegetais. “Dei-me conta de que não existia isso no Brasil. O pouco que havia de vegetais congelados era importado, e essa atividade tinha muito em comum com os processos dos frigoríficos que eu conhecia tão bem”, afirma.
De volta ao Brasil, iniciou o projeto da sua futura empresa, que incluía, assim como acontece com a indústria de carnes, trabalhar em parceria com pequenos produtores rurais da região, garantindo a compra de sua produção. Hoje, aos 77 anos, Deitos está à frente da Grano, que faturou R$ 52 milhões em 2014 com a venda de itens como brócolis e ervilhas congeladas. “Todo o nosso sucesso se baseou num projeto bem planejado e bem executado”, explica. “Quando apresentamos ao prefeito da cidade nossas ideias, ele ficou muito animado, pois percebeu que seria uma forma de estimular a economia da região”, diz. Deitos recebeu do município uma série de incentivos, como o terreno para a instalação da fábrica. Em troca, gerou renda e fixou no campo pelo menos 150 famílias hoje associadas à Grano. “Produzimos 2 mil quilos de vegetais congelados por hora, e estamos adaptando a fábrica para chegar a 3,5 mil por hora. A ideia é começar a exportar em breve”, revela.
“Trabalhar não mata”
Faz parte da rotina de Deitos acordar todos os dias às 5 horas e 30 minutos e caminhar uma hora antes do café. O segredo para tanta disposição “é fazer o que você gosta, não dando margem para o estresse e o cansaço. Outra coisa: a pessoa deve ter sempre alguma meta na vida, um objetivo a ser alcançado. Isso ajuda a ganhar força para viver”. Outro conselho desse quase octogenário bem-humorado é não levar trabalho para casa. “Quando saio da Grano eu me desligo de tudo e só religo no dia seguinte, quando retorno à fábrica.”
Carlos Fernando Damberg também não freou sua vida profissional com a aposentadoria. Não que lhe faltassem motivos. Até mesmo de saúde. Antes de se tornar coaching de executivos e consultor na área de Recursos Humanos (RH), trabalhou por 45 anos numa importante multinacional, onde se aposentou como diretor de RH. Nesse período seu corpo pifou. Teve uma amnésia parcial e foi obrigado a se medicar e descansar forçadamente por um mês. A experiência fez com que mudasse a forma como encarava sua compulsiva rotina. “Comecei a pensar como seria minha vida fora da empresa quando fiz 60 anos. Eu e minha esposa conversamos muito.” Parar de trabalhar estava fora dos planos. “Costumo dizer que trabalhar não mata ninguém. O que mata é não repor a energia.” As reflexões geraram três livros: Diagnostiko: Qualidade nas Relações de Trabalho, Uma Só Flecha e A Oportunidade dos 40.
Já o nordestino Mario Ernesto Humberg, radicado em São Paulo, formou-se em química pela Universidade de São Paulo (USP), no início dos anos 1960. Trabalhou por alguns anos em empresas do ramo, mas aos 27 foi convidado para dirigir uma revista. Apaixonou-se pelo mundo das palavras e, em 1981, fundou sua própria assessoria, a CL-A Comunicações. Após se aposentar, foi aos poucos diminuindo a intensidade. De uma empresa com mais de uma dezena de funcionários, que atendiam a diversas grandes empresas, atualmente trabalha basicamente sozinho. “Hoje opero de forma mais simples e prática.” Mas não é só por gosto que Mario persiste trabalhando, aos 76 anos. “Com o salário que recebo do INSS eu teria muitas dificuldades para sobreviver dignamente.”
O engenheiro aposentado Nelson Costa Guimarães, 71, natural do município paulista de Bauru, gostaria de ter continuado a trabalhar também, mas aposentou-se para ficar mais perto da esposa. Nelson foi um dos pioneiros da informática no Brasil. Em 1973, quando começou a trabalhar na Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão, na Baixada Santista, na época ainda uma empresa do governo do estado de São Paulo, computadores com memória de poucos megabytes ocupavam salas inteiras da empresa. Ele trabalhava na área de engenharia mecânica, mas, com a mente ativa e ideias inovadoras, estudou por conta própria e começou a dar pitacos ao setor de informática daquela produtora de aço. Em pouco tempo impressionou os especialistas da companhia ao desenvolver novos métodos para registro de relatórios de obras em computadores, usando as linguagens de programação da época, como Fortran e Assembly. Ficou na empresa pública até 1991, pouco antes da sua privatização, que ocorreu em 1993. Iniciava-se ali um período difícil para sua família, que teve seu ponto mais crítico após a crise de 1998. Em meio a grandes dificuldades financeiras, resolveu apelar para os concursos públicos e, no ano 2000, foi aprovado nos Correios. Seu cargo, porém, era de auxiliar administrativo, com um salário bem inferior ao que recebia na Cosipa. Fez novos concursos na empresa até chegar a engenheiro sênior, cargo em que se aposentou, em 2010, após atingir o tempo mínimo necessário para ter direito ao valor integral do salário. “Não queriam que eu me aposentasse. Tinha 66 anos e pediam para que eu ficasse pelo menos até completar 70”, relata Guimarães. Mas a vontade de estar ao lado da esposa, Virgínia, falou mais alto. “Eu morava em Brasília e ela em Bauru. Virgínia padece de alguns problemas de saúde e nós gostamos muito de animais, temos muitos cachorros. Eu senti que o melhor seria me aposentar e ficar ao lado dela”, justifica-se o especialista em informática. Seus dias, atualmente, são preenchidos com caminhadas, palavras cruzadas e o computador. Como se aposentou por uma estatal, o total recebido mensalmente de certa forma desestimula voos em outras direções.
Falta planejamento
A forma de cálculo das aposentadorias pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) passa por um momento de discussões importantes em Brasília. Em maio, o Congresso aprovou uma alternativa ao fator previdenciário, fórmula criada pelo governo Fernando Henrique Cardoso que reduz o valor pago para aqueles que se aposentam mais cedo. O objetivo do fator previdenciário é aumentar o tempo médio de contribuição, reduzindo o déficit da Previdência. A nova fórmula ficou conhecida como 85/95 e permite que o segurado se aposente com os vencimentos integrais – respeitado o teto do INSS – quando a soma da idade e do tempo de contribuição atingirem 85 anos para as mulheres e 95 anos para os homens. Assim, uma mulher pode se aposentar sem perdas financeiras aos 55 anos, se atingir 30 anos de contribuição, e um homem com pelo menos 60 anos de idade e 35 anos de contribuição.
A presidente Dilma Rousseff, usando como justificativa o rombo na Previdência, vetou as alterações e enviou ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que mantém a fórmula 85/95, mas só até o fim de 2017. A partir daquela data, o mecanismo será gradativamente acrescido em 1 ponto até 2022, quando exigirá que a soma da idade com o tempo de contribuição seja de 90 anos para as mulheres e 100 para os homens. Com a fórmula progressiva, o governo estima economizar R$ 50 bilhões até 2026. Ela, na realidade, já está valendo desde junho, mas a MP ainda pode ser modificada ou mesmo rejeitada no Congresso Nacional, que tem até o final de outubro para decidir sobre o assunto.
Pouco mais de cem anos atrás, não havia nenhum tipo de proteção para a pessoa que ficasse impedida de gerar renda por conta da idade avançada ou problemas de saúde. A primeira menção à pensão por idade surgiu em 1889, na Alemanha, durante o governo de Otto Von Bismarck. Em resposta às ideias socialistas que se espalhavam pelo continente na época, Bismarck estabeleceu um sistema nacional garantindo o pagamento de um valor mensal aos trabalhadores do comércio, indústria e agricultura que tivessem mais de 70 anos de idade. A medida foi considerada demagógica e surtia pouco efeito prático, uma vez que a expectativa de vida à época era baixa e poucas pessoas chegavam a viver até sete décadas.
No Brasil, o primeiro registro de algum tipo de aposentadoria data de 1923, com a criação de uma pensão para os ferroviários, medida mais tarde estendida aos trabalhadores marítimos e portuários. Nas décadas seguintes, esses benefícios foram lentamente alcançando outras categorias de trabalho urbano até chegar aos trabalhadores rurais, no final dos anos 1960. Finalmente, a Constituição de 1988 garantiu a previdência social como um direito fundamental do cidadão.
Uma ampla pesquisa do banco HSBC feita em escala mundial mostrou que os brasileiros não se preparam adequadamente para a aposentadoria, apesar de terem clara a importância disso. “Quando analisamos esse tema e o relacionamos ao perfil do brasileiro, vemos que ainda há uma considerável distância entre a percepção da necessidade de se planejar financeiramente para o futuro e a efetiva preocupação de se colocar em prática um plano de formação de reserva”, diz o CEO do HSBC Seguros do Brasil, Alfredo Lalia, responsável por aquele estudo no país. Ficou-se sabendo, por exemplo, que 64% dos brasileiros nunca pouparam para a aposentadoria e 69% deles, na faixa de 45 a 54 anos, ainda não guardaram sequer um centavo para o futuro. E mais: entre aqueles que já estão poupando, 59% acham que não estão fazendo isso bem o bastante.
Risco à saúde
O levantamento revelou que existe uma cultura de curto prazo no país, focada na satisfação mais imediata das necessidades. Segundo o levantamento, 49% dos brasileiros preferem poupar para férias a guardar o dinheiro para a aposentadoria. “Entendo que o brasileiro ainda possui a forte característica de analisar horizontes de curto prazo, e isso se deve muito à nossa história recente em que, devido aos altos índices inflacionários e às constantes necessidades de mudanças nos planos econômicos, era mais inseguro planejar visando o longo prazo. Ainda assim, também é preciso considerar que existe um certo excesso de confiança do brasileiro de que o Estado irá prover suas necessidades”, diz Lalia.
Pouco se fala sobre o tema, mas a aposentadoria pode representar um importante fator de risco para a saúde. Um estudo comandado pelo Centro de Pesquisa em Envelhecimento e Trabalho (CPET) da Faculdade de Medicina da USP mostrou que os problemas são principalmente decorrentes da instabilidade emocional provocada pela expectativa gerada nos anos que precedem a aposentadoria, que incluem apreensões sobre queda no nível de renda e da condição social, e do choque causado pela mudança na rotina. De acordo com a pesquisa, quanto mais cedo a pessoa se aposentar, maior será o impacto sobre a saúde. Profissionais com maior escolaridade e nível de autoridade têm melhor adaptação à mudança e capacidade de lidar com as dificuldades na transição. Outro levantamento, realizado pelo centro de pesquisas inglês Institute of Economic Affairs (IEA), chegou praticamente aos mesmos resultados. Foi apurado que após a aposentadoria a chance de desenvolver depressão pode aumentar em 40% e a possibilidade do aparecimento de um problema físico sobe para 60%. Os dados mostram que há uma pequena melhora na saúde imediatamente depois da aposentadoria, mas um declínio significativo do organismo após o período inicial. “É um problema que acomete principalmente os homens, que costumam ter na empresa ou organização onde atuam seu principal ‘sobrenome’ e cultivam menos relações sociais fora do trabalho do que as mulheres”, explica o presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil, Alexandre Kalache, que presidiu por 14 anos o Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, na Suíça.
Kalache é um dos destaques do recém-finalizado documentário Envelhescência, dirigido por Gabriel Martinez. O longa apresenta seis exemplos de idosos que fogem do estereótipo normalmente associado à velhice. Aos 73 anos, Judith fez sua primeira tatuagem. Hoje, aos 84, já soma 60 tatuagens e 25 piercings. Edson tem 87 anos e se formou em medicina aos 84. Ono desafia o conhecimento médico ao passar o dia de pé dando aulas de artes marciais, apesar de sofrer de uma artrose que tecnicamente o impediria de andar. “Filmando eu surfei, fui a bares e baladas, pratiquei artes marciais, subi em aviões com paraquedistas, corri parte de uma maratona. E tudo isso acompanhando a rotina de idosos. Depois, com o material em mãos, fui finalizar o filme dentro de escritórios, sentado o dia todo ao lado de pessoas jovens”, brinca Gabriel. “Entendi que a velhice é um estado de espírito e que é possível ser muito ativo na terceira idade se a pessoa não aceitar o estigma de ‘velho’ que normalmente lhe é imposto socialmente.”