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O flagelo da dor de cabeça
Por: MILU LEITE
São apenas 10% os felizardos no planeta. Não ganharam na loteria, não foram premiados com uma viagem ao redor do planeta e muito menos entraram na lista dos milionários da revista “Forbes”. Esse é o percentual de pessoas que, ao longo de toda uma vida, nunca reclamarão de dor de cabeça. Esse grupo de privilegiados só vai se referir a uma cefaleia no sentido metafórico: “Meu filho vive me dando dor de cabeça”, “Essa reunião vai ser a pior dor de cabeça do ano!”. Não vão chegar nem perto de conhecer a dor torturante que pelo menos uma vez na vida vai afetar os outros 90% da população mundial, segundo estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Atualmente, conhecem-se cerca de 250 tipos diferentes desse sofrimento físico, sendo a enxaqueca (ou migrânea) o mais frequente deles.
Por si só um problema com implicações graves (as crises de dor de cabeça crônica limitam a vida pessoal e profissional do doente, chegando a ser responsáveis em média por quatro dias de trabalho perdidos no ano), a enxaqueca é uma das doenças que mais deflagram a prática de automedicação. De acordo com estudo publicado para o Projeto Diretrizes em 2009, pela Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), apenas 56% dos pacientes com migrânea buscam atendimento médico e, dentre estes, meros 16% chegam a se consultar com um especialista, no caso, o neurologista.
Costume arraigado entre os brasileiros, a automedicação é uma prática insalubre, portanto, deveria ser combatida como doença. Mas não é o que acontece. Quando o assunto é dor, há muito tempo os chazinhos foram deixados de lado e os analgésicos comprados sem receita médica passaram a habitar os armarinhos das residências, muitas vezes comprados especialmente para abrigar uma coleção deles: ácido acetilsalicílico, dipirona, paracetamol e outros. O setor farmacêutico não tem do que se queixar. Um levantamento realizado em 2013, a pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” junto à consultoria IMS Health, revelou que a venda de analgésicos puros chega a movimentar R$ 2,6 bilhões ao ano. É bom lembrar que durante um curto período (entre 2010 e 2012), a venda desses medicamentos no país ficou restrita à apresentação de receita médica, mas o governo federal não suportou a pressão e voltou atrás. Livrou-se dessa dor de cabeça, deixando o ônus para a população.
Na hora da enxaqueca nada disso conta. Enfrentar fila na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do bairro, com a cabeça latejando, ninguém quer. As manifestações de migrânea podem ser avassaladoras e pioram em ambientes iluminados e barulhentos. Para 15% das pessoas, ela não chega sem aviso, é precedida de uma aura premonitória com sintomas bem conhecidos por aqueles que sofrem do mal: embaçamento da visão com pontos luminosos em zigue-zague.
As causas da enxaqueca estão em constante reavaliação e, vez por outra, um novo elemento pode ser incluído. Entretanto, os médicos são unânimes em afirmar que a exposição a certos fatores externos é fundamental para desencadear uma crise. Açúcar, alterações hormonais, certos perfumes, chocolate, consumo excessivo de café e de bebidas alcoólicas, embutidos, estresse, fumo, insônia, jejum prolongado e queijos fortes são os principais vilões dessa história de sofrimento, que começou a ser reportada milhares de anos atrás. Os primeiros tratamentos datam de 7 mil a.C., no Egito. “Não é uma doença moderna. É uma doença de base hereditária ou genética e acomete todas as raças sem distinção”, informa a neurologista Thaís Rodrigues Villa, responsável pelo Comitê de Cefaleias na Infância da Sociedade Brasileira de Cefaleia (SBCefaleia).
O comitê ressalta que a enxaqueca afeta 15% da população brasileira e que boa parte das pessoas portadoras do mal são do sexo feminino. “A explicação para o aumento das taxas entre as mulheres, que já foi constatado em outros países, baseia-se na genética, na flutuação hormonal e no estresse”, diz Juliane Prieto Peres Mercante, doutora em ciências pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e psicóloga do Instituto de Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein e do Centro de Cefaleia São Paulo. Para piorar, a dor de cabeça crônica afeta homens e mulheres em sua fase mais produtiva, entre 30 e 50 anos de idade. No Brasil, a enxaqueca é mais comum em pessoas da raça branca, seguida pela raça negra, e menos comum em orientais.
As crianças e os adolescentes não escapam do problema. A doença atinge de 3% a 10% das crianças, afetando igualmente ambos os gêneros antes da puberdade, mas com predomínio em meninas após essa fase. Cerca de 50% das crianças terão remissão espontânea após a puberdade.
Pesquisas avançadas
Um controle efetivo dos fatores desencadeantes e a adoção de medidas específicas ajudam a prevenir as crises, que em certos casos chegam acompanhadas de náuseas e até vômitos. A doença é atacada, portanto, a partir de duas frentes. Primeiro, deve-se evitar o consumo de determinados alimentos e eliminar alguns hábitos, além de não dormir mais nem menos do que o necessário. Se a crise ainda ocorrer, a investida é direcionada para a diminuição dos sintomas com o uso de medicamentos.
Na atualidade, as pesquisas sobre as razões que fazem a dor surgir e como ela deve ser tratada estão avançadas. Até pouco tempo atrás, o tratamento enfocava antes de tudo o alívio da dor quando ela aparecia. O uso dos analgésicos era, por essa razão, a principal conduta orientada pelos médicos. “Atualmente, porém, o conceito principal de tratamento é mais racional, tem como objetivo a prevenção, a perspectiva de evitar que a dor apareça, a chamada profilaxia. Existem tratamentos medicamentosos e não medicamentosos para enxaqueca. Normalmente eles sao associados”, esclarece Juliane.
O tratamento não medicamentoso pode ser particularmente adequado para indivíduos que sofrem de enxaqueca e não podem se submeter a farmacológicos específicos, caso das gestantes e mulheres que amamentam, além das pessoas que não toleram os efeitos colaterais dos remédios, idosos e indivíduos com doenças crônicas. Os objetivos do tratamento, tanto farmacológico quanto não farmacológico, buscam reduzir a frequência e a intensidade das crises de enxaqueca, melhorar a tolerância e a aceitação da farmacoterapia e evitar a intensificação aguda da medicação.
Medicamentoso ou não, ambos os tratamentos devem ser orientados por um médico, de maneira individualizada. “A automedicação é muito prejudicial, já que o uso excessivo de sedativos pode aumentar a frequência das crises”, explica Thaís. Ou seja, o uso repetido de analgésicos e a elevação progressiva das doses necessárias para o alívio da dor podem ser um tiro na água, já que não é raro gerarem um efeito rebote, cujo resultado é a piora dos sintomas.
Um tratamento não medicamentoso comprovadamente eficaz na prevenção da enxaqueca é a prática de exercícios aeróbicos regulares sob supervisão, como a caminhada e a corrida. Aprender a relaxar, evitar o estresse, o esgotamento e a tensão física também são bons aliados no combate às manifestações da doença, de acordo com a médica homeopata Eliene Sobreiro Couto.
No atendimento a alguns pacientes em seu consultório em Niterói, ela também costuma indicar certos suplementos vitamínicos, além de passar as orientações necessárias no que tange à alimentação. “Pessoas predispostas a dores desencadeadas por certos alimentos e bebidas devem abster-se do seu consumo”, observa. Quando o paciente não sabe que alimento desencadeia a crise, Eliene sugere que seja feita a eliminação gradual dos suspeitos, por cerca de quatro semanas. Depois, deve-se proceder a sua reintrodução paulatinamente, pois assim é possível avaliar o comportamento do organismo passo a passo. Nas mulheres, se a enxaqueca piora nas proximidades da menstruação, a dica é fazer refeições mais leves no período, evitando comidas muito salgadas e gordurosas, leite e derivados, chocolate, cafeína, frutas cítricas, assim como bebidas alcoólicas.
As pessoas com propensão à migrânea devem abandonar o tabagismo e parar de tomar anticoncepcionais, além de evitar o uso de perfumes fortes ou produtos com odor pronunciado. Quando as trombetas anunciarem a chegada das dores, é interessante borrifar água gelada no rosto e fazer repouso em ambiente escuro e silencioso. Mas encarar a possibilidade de uma crise com tranquilidade talvez seja um dos aspectos mais inovadores no modo de lidar com a enxaqueca. Por essa razão, as psicoterapias têm desempenhado papel importante na prevenção, podendo ser combinadas à terapia farmacológica. “As técnicas de relaxamento treinam o paciente para controlar a tensão muscular e ensinam a usar relaxamento mental ou visualização para atingir os objetivos do tratamento”, destaca Juliane. Não se deixar levar por quadros de ansiedade que colocam o paciente numa condição de constante espera pela próxima crise é fundamental, e a psicoterapia fornece práticas comportamentais para tornar isso possível.
A homeopatia como opção
Em seu trabalho com programas de terapia cognitivo-comportamental para enxaqueca, ansiedade e redução de estresse, Juliane Prieto põe em prática o que observou em sua tese de doutorado em 2008. “Em minha pesquisa, percebi que os pacientes com ansiedade tinham uma chance maior de apresentar enxaqueca, e suas crises eram mais frequentes, mais fortes e duradouras que as de pessoas não ansiosas. Por isso, o trabalho terapêutico com emoções como irritação e ansiedade pode prevenir e reduzir a dor”, salienta.
A homeopatia, por sua vez, vem sendo cada vez mais procurada como alternativa aos remédios da medicina alopata, sobretudo quando se trata de alguma doença crônica. Fundamentado na ideia de cura similia similibus curentur (os semelhantes curados pelos semelhantes), o método consiste em tratar as doenças por meio de substâncias em doses diluídas, a ponto de se tornarem, por vezes, em indivíduos sãos, quadros clínicos semelhantes aos que apresentam as moléstias a serem tratadas.
As enxaquecas persistentes são interpretadas pelos homeopatas como um sintoma de desequilíbrio do organismo em sua totalidade e para obter êxito no tratamento o indivíduo deve ser examinado em seu todo, isto é, levando em conta fatores físicos, mentais e emocionais que possam gerar o distúrbio. “Durante a avaliação são considerados os sinais e sintomas apresentados, assim como constituição física e emocional e fatores ambientais que possam corroborar, tais como: condição de vida, hábitos higiênico-dietéticos, ocupação e preparo físico, entre outros”, explica Eliene.
Existem aqueles casos, todavia, em que nada parece dar resultado. Seja ingerindo analgésicos de uso habitual seja recorrendo à homeopatia dinamizada especialmente para o paciente, as dores de cabeça surgem e, algumas vezes, persistem por tempo considerado acima do comum. Em média, o número de crises de enxaqueca é de uma vez e meia por mês, com duração de 48 horas. A intensidade das dores é bastante variável. Quando uma crise se estende por mais de 72 horas, diz-se que o paciente está em estado enxaquecoso e, nesse caso, há enorme comprometimento das suas condições físicas e emocionais. Em geral, tais crises são causadas pelo uso excessivo de medicamentos. Quando ocorrem mais de duas vezes ao mês, causam incapacitação por dor e afetam fortemente a execução de atividades corriqueiras. Os analgésicos e os anti-inflamatórios não hormonais são uma boa alternativa para as crises moderadas. Mas quando elas se tornam frequentes e muito intensas, a medicina alopática recorre à combinação desses medicamentos com isometeptenos ou até mesmo dipirona injetável associada com metoclopramida.
A acupuntura também é indicada, mas preferencialmente na profilaxia. Segundo boletim médico do Ministério da Saúde, existe “um conjunto de evidências de que há melhora na frequência e na intensidade das crises” quando se recorre às agulhas. Há um outro tratamento, porém, que vem sendo utilizado para aplacar as crises: a aplicação de Botox®, medida que pode diminuir a incidência de episódios de migrânea, segundo estudo financiado em 2006 pela American Society of Plastic Surgeons (ASPS). O índice de sucesso, de acordo com a avaliação daquela entidade, é da ordem de 90%. Na prática, o que acontece é o seguinte: a toxina botulínica é aplicada em determinados pontos da face e do pescoço. A paralisação dos músculos da fronte e das têmporas (consequência natural da aplicação da toxina) vai revelar quais deles estão contribuindo para o desencadeamento das crises. De posse dessa informação, o paciente escolhe se quer ou não se submeter a uma cirurgia para a remoção de porções desses músculos a fim de reduzir a compressão nervosa e amenizar a inflamação.
Outras novidades estão a caminho e serão apresentadas entre os dias 3 e 5 de setembro de 2015, em Curitiba, durante o XXIX Congresso Brasileiro de Cefaleia. “Vamos levar ao evento o resultado do estudo que realizamos sobre a intervenção comportamental de relaxamento em pacientes com enxaqueca, que obteve excelente resposta na redução da frequência, intensidade e duração das crises. E também uma pesquisa sobre a relação entre otimismo e pessimismo em pacientes com cefaleias”, adianta Juliane.