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De volta para a escola
Por: HERBERT CARVALHO
Após a Guerra da Independência contra a Inglaterra, no final do século 18, o governo da jovem República dos Estados Unidos da América engajou-se numa campanha pela “ampla difusão do conhecimento”, o que, guardadas as devidas proporções de tempo histórico e condições socioeconômicas, se assemelhava à ideia do slogan de Pátria Educadora, adotado a partir deste ano no Brasil.
Desde os primórdios da industrialização, porém, uma polêmica se instalou no país fundado por George Washington para ser a “terra das oportunidades”: Qual o objetivo da educação? Mergulhar os alunos nas ciências e nas humanidades para seu crescimento intelectual ou prepará-los para disputar colocações no mercado de trabalho?
As respostas a essas perguntas estão plasmadas na história educacional norte-americana, por meio de uma distinção institucionalizada no ensino médio no início do século 20: um currículo profissionalizante preparava os alunos para o mundo do trabalho – em especial para ocupações de nível técnico, prestação de serviços e tecnologia de nível básico –, enquanto o currículo acadêmico enfatizava artes, ciências e o cultivo do pensamento.
Esta divisão espelhava outra, mais antiga e profundamente enraizada no mundo ocidental, entre atividade física e mental e entre o trabalho manual e o intelectual. Em A República, Platão já observava que a alma do artesão é “torta e mutilada”. Aristóteles, por sua vez, propõe em A Política que artesãos e comerciantes tenham a cidadania negada porque o trabalho deles é “ignóbil e prejudicial à virtude”.
Preconceitos como esses encontraram terreno fértil num país recém-saído da escravidão por meio de sangrenta guerra civil, em 1858, que negava direitos elementares aos afrodescendentes e acolhia imigrantes para funções indesejadas pela elite wasp, ou seja, branca, anglo-saxônica e protestante, de acordo com o acrônimo em inglês.
Assim, o teste de QI (Quociente de Inteligência) foi mais uma invenção tipicamente estadunidense para identificar e destinar ao ensino superior os alunos “propensos à abstração” (quase sempre brancos e oriundos das camadas endinheiradas da sociedade), vedando-se aos demais, na prática, as oportunidades que apenas as universidades renomadas podem proporcionar.
Dessa forma, os alunos, privados de três refeições por dia, sujeitos à instabilidade de emprego e moradia, de famílias muitas vezes desestruturadas e que por essas e outras razões – como delinquência juvenil e uso de drogas – apresentavam dificuldades de aprendizado, foram ficando à margem da escolaridade tradicional. Em pleno século 21, tornaram-se adultos que não conseguem um lugar ao sol na “sociedade do conhecimento”, marcada por vertiginosas transformações culturais, socioeconômicas e geopolíticas que, entre outras consequências, eliminaram empregos industriais nos Estados Unidos, transferindo-os para uma Ásia hoje liderada pelo dinamismo da China.
“Dois anos empacado”
Como dar suporte a essas pessoas que buscam não apenas ascender economicamente, mas também resgatar a autoestima abalada por anos de desemprego ou funções de baixa qualificação, proporcionando, ainda, um modelo para seus filhos? Esse é o foco do livro De Volta à Escola: Porque todos Merecem uma Segunda Chance na Educação, publicação da Editora Senac São Paulo e do Senac Nacional, direcionada a profissionais da área de educação, educadores, pedagogos, professores, pessoas que queiram retomar os estudos e todos os interessados em saber mais sobre a educação de adultos.
Com base em depoimentos e na realidade do sistema educacional norte-americano, o autor Mike Rose – educador especializado em alfabetização de adultos e programas de capacitação profissional – analisa políticas públicas, estuda grades curriculares antigas e inovadoras e repensa a divisão entre os currículos acadêmico e técnico, sugerindo melhorias para a educação de adultos.
“Graças aos paralelos possíveis com o sistema de ensino brasileiro, pelas histórias que conta e pelos exemplos de soluções, é uma obra fundamental para aqueles que se dedicam à educação de jovens e adultos, nas suas mais variadas formas”, garante no prefácio Naira Franzin, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e responsável pela aproximação do estudo com a realidade brasileira, por meio de notas explicativas de termos e conceitos ao longo do texto.
“Quando o autor fala de sua própria trajetória entendemos porque há tanta vitalidade no que escreve”, comenta Naira, citando o depoimento de quem ela considera ser um militante, mais do que um acadêmico: “Meus tios eram funcionários das indústrias poluentes da Costa Leste estadunidense – segmentos automotivo e ferroviário – e minha mãe foi garçonete a vida inteira”, relata Mike Rose. “Esses trabalhos nos sustentavam e pareciam poderosos para mim. Quanto à escola, eu era um aluno mediano, e quando entrei no ensino médio passei dois anos empacado.” Antes o autor escreveu outro livro, também traduzido e publicado pela Editora Senac São Paulo, intitulado O Saber no Trabalho, fruto de extensa pesquisa com trabalhadores manuais.
Empregos do século 21
Em De Volta à Escola ele demonstra o mesmo respeito pela inteligência, ética e valores que permeiam o universo dos que não tiveram formação adequada nos ensinos básico e fundamental. “Por causa da formação deficitária anterior, essas pessoas precisam de assistência em diversas disciplinas, como em leitura e escrita, matemática e ciências. Nos Estados Unidos essa educação preparatória é conhecida como ‘desenvolvimentista’, ‘compensatória’, ou ‘básica’; no Brasil, esse tipo de educação é oferecido dentro dos programas e projetos de Educação de Jovens e Adultos (EJA)”, explica em sua apresentação à edição brasileira.
Definida pelo artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases como a modalidade de ensino “destinada àqueles que não tiveram acesso ou à continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”, o EJA tem por objetivo fazer valer o artigo 208 inciso I da Constituição Federal de 1988, que garante o acesso e a permanência no ensino fundamental a todos.
De acordo com o livro de Rose, há cerca de 10 milhões de estudantes em 4 mil programas de educação de adultos nos Estados Unidos. Eles variam de estado para estado e os mais característicos incluem cursos de aperfeiçoamento (artesanato, computação, cozinha, ginástica e história e geografia locais) e de qualificação profissional, e curso de inglês como segunda língua, dirigido a imigrantes. Em geral, são ministrados nas community colleges, instituições de ensino superior comunitárias que oferecem cursos de dois anos dos tipos vocacionais e técnicos nas áreas de administração de empresas, artes, comércio, ciências, educação, enfermagem, engenharia, línguas, negócios e saúde, entre outras. Surgidas em 1901, elas se expandiram rapidamente para dar formação aos veteranos das muitas guerras em que os Estados Unidos se envolveram no século 20; todavia, ainda são insuficientes para atender os 40 milhões de americanos adultos que não têm diploma de ensino médio, nem certificado GED (General Education Development), equivalente ao nosso exame supletivo.
Ao discursar em uma community college, Troy, Nova York, em 2009, o presidente Barack Obama afirmou: “O poder dessas instituições é preparar estudantes para empregos do século 21”. Apesar desse reconhecimento e de custar por aluno de quatro a cinco vezes menos do que no ensino tradicional, a educação de adultos recebe pouca atenção da mídia e dos legisladores em solo americano e vive sob constante ameaça de cortes de verbas, como relata Mike Rose, apontando para o risco de que a desigualdade que se alastra pelo país desde a eclosão da crise financeira de 2008 venha a se acentuar ainda mais.
A entrada da palavra “austeridade” na pauta nacional americana teve ainda outra grave consequência, segundo o educador: a biblioteca pública, instituição emblemática daquele país, que fornece o único acesso gratuito à internet em diversas comunidades, está fechando agências locais e reduzindo o número de horas e de funcionários.