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A atualidade do Molière dos trópicos
Por: HERBERT CARVALHO
A política do favor como mola social, a corrupção desenfreada, a precariedade e o atraso do aparelho judicial, a exploração exercida por estrangeiros e a má assimilação da cultura importada. Por mais que pareça recolhido do noticiário recente, esse não é um retrato do Brasil atual e, sim, a descrição de nossos vícios maiores, presentes desde os albores da existência desta terra como país independente, e já detectados na primeira metade do século 19 pela obra do criador da comédia brasileira de teatro, Luís Carlos Martins Pena, nascido no Rio de Janeiro em 1815, portanto, há duzentos anos.
“Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinquenta anos deste século 19, que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral de toda essa época”, garante Sílvio Romero em sua História da Literatura Brasileira sobre a importância do autor que, aos 33 anos, teve abreviada uma brilhante carreira de comediógrafo ao contrair tuberculose, doença à época incurável. Uma vida curta, mas suficiente, entretanto, para nos legar 20 comédias, algumas das quais continuam a ser encenadas com êxito, como O Noviço, a mais célebre e uma das mais engraçadas.
É um teatro perene, em razão de tratar de condutas atemporais, como a desonestidade e as fraquezas humanas, avalia Wagner Martins Madeira, professor de Literatura Brasileira para quem o “Aristófanes brasileiro” – de acordo com a definição do crítico Sábato Magaldi – está na raiz da comédia de costumes de tempero nacional popular, um gênero que teve como seguidores Artur Azevedo, na segunda metade do século 19, e Oduvaldo Vianna, nas primeiras décadas do século 20. “Outros desdobramentos foram as chanchadas do cinema brasileiro e programas de televisão como Praça da Alegria. A dramaturgia brasileira contemporânea é tributária desse teatro de índole popular que chega aos nossos dias pelas mãos de Marcos Caruso e sua indefectível Trair e Coçar É só Começar”, explica Madeira, mencionando a peça com maior público de todos os tempos no teatro do país.
Com aguçada veia cômica, Martins Pena mostrou a realidade de um país atrasado e predominantemente rural, fazendo a plateia rir de si mesma ao colocar no palco tipos caricatos com os quais o público se identificava: viúvas e moças namoradeiras; maridos autoritários e ciumentos; filhos insubmissos; sogras detestáveis; velhos gulosos e libidinosos; policiais e fiscais da alfândega corruptos; malandros de toda ordem; maníacos por ópera ou outros modismos; estudantes arruaceiros e irresponsáveis; o paulista, ora fazendeiro bronco, ora advogado inescrupuloso; o fazendeiro mineiro rico, ora aproveitador, ora ingênuo; os noviços sem vocação religiosa; os avarentos e os médicos deslumbrados com as novidades da medicina, como a homeopatia.
Não por acaso João Caetano, o principal ator do período, o considerava um Molière dos trópicos. Tanto nas peças do francês quanto nas do brasileiro, realiza-se o célebre lema clássico do ridendo castigat mores, que traduzido do latim significa “o riso corrige os costumes”. As peças de Pena, porém, são bem curtas, quase todas com apenas um ato e no máximo trinta minutos de duração. Representadas no início, ao final ou durante o intervalo de dramas e tragédias como uma espécie de refresco para as obras ditas mais sérias, pertenciam ao gênero do entremez, termo espanhol que designava encenações de jograis e bufões durante os banquetes da Idade Média. Segundo a pesquisadora Vilma Arêas, na Corte Imperial do Rio de Janeiro os entremezes também eram encenados muitas vezes em casas particulares, competindo com o teatro público.
Corrosivo, mas ao mesmo tempo leve, construído na linguagem coloquial da época, o humor de Martins Pena ainda hoje ecoa em provérbios repetidos pelo povo como Quem Casa Quer Casa, título de uma de suas últimas peças. Considerada por Magaldi “uma escola de ética”, sua verve desnudou a exploração do sentimento religioso, a corrupção das autoridades públicas, a submissão do país a interesses externos, a carestia e os juros abusivos, entre outras mazelas tão atuais, que podem ser sintetizadas nesta fala do salafrário Ambrósio, na cena inicial de O Noviço: “Se em algum tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me-á e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os pobres...”
Teatralidade romântica
Na forma de espetáculos amadores isolados, com fins religiosos ou comemorativos, o teatro chegou ao Brasil junto com a colonização portuguesa, como instrumento de catequese utilizado pelos missionários da Companhia de Jesus, como o padre José de Anchieta. Apenas após a Independência, porém, ganhou uma continuidade de palco, com escritores, atores e público relativamente estáveis.
A mais importante sala de espetáculos da Corte era o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, inaugurado em 1826 e com capacidade para 600 espectadores na plateia (e mais 300 distribuídos em cem camarotes). Iluminado por 220 velas de cera resguardadas em mangas de vidro, foi construído no mesmo local e com características semelhantes ao Real Teatro de São João (projetado, por sua vez, nos moldes do Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa), que entre 1813 e 1824, quando foi destruído por um incêndio, atraíra técnicos e artistas europeus responsáveis pela introdução de uma tecnologia de encenação até então inexistente no país.
Consumido outra vez pelo fogo em 1855 e novamente reconstruído em 1857, o Teatro São Pedro foi demolido em 1928 para dar lugar, na atual Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, ao Teatro João Caetano, assim denominado em homenagem ao criador da pioneira companhia teatral brasileira, em 1833. Seria ele o responsável por levar ao palco, em 1838, pela primeira vez, um texto escrito por um brasileiro, pois até então só eram encenadas por aqui óperas e peças de autores europeus. Esse marco inaugural coube ao drama Antônio José ou O Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, filósofo e poeta amigo íntimo de dom Pedro II que, como dramaturgo, teve reduzida expressão e foi definido como “clássico emperrado”, por Sílvio Romero.
No mesmo ano, no mesmo Teatro São Pedro e também com João Caetano no papel-título estreia a primeira das comédias escritas por Pena, O Juiz de Paz da Roça. Estava inaugurado o ciclo da teatralidade romântica, que de acordo com o Volume I da História do Teatro Brasileiro (Edições Sesc SP e Editora Perspectiva, 2012), organizada por João Roberto Faria, se estende até 1863, ano da morte do maior intérprete brasileiro do século 19.
Integrante do grupo de intelectuais da geração romântica, ao lado de Gonçalvez de Magalhães e Araújo Porto Alegre, aos dez anos Martins Pena era um pobre órfão de pai e mãe, encaminhado para as aulas de comércio por seus tutores. Sem pendores para se colocar atrás de um balcão, porém, contou com a preciosa ajuda da irmã, casada com um graduado funcionário da alfândega, para ingressar na Academia de Belas Artes. Esta contava ainda com alguns professores da Missão Artística Francesa do tempo de dom João VI e com eles Pena absorveu conhecimentos de pintura, estatuária e arquitetura.
Com bom ouvido e elogiada voz de tenor, estudou também música e canto, além de literatura e os idiomas inglês, francês e italiano, nos quais adquiriu fluência. Segundo Vilma Arêas, pesquisadora e professora do departamento de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, essa formação variada e não ortodoxa “facilitou-lhe o desenvolvimento do gosto artístico, aguçando o ouvido e o olhar de observador, qualidades imprescindíveis a quem alimente pretensões teatrais”. Bons olhos e bons ouvidos – ouvido do crítico de música que ele foi –, eis certamente o que não faltava a Martins Pena, assegura o também crítico Décio de Almeida Prado, referindo-se às crônicas escritas pelo dramaturgo para o “Jornal do Commercio”, nos anos de 1846 e 1847, nas quais avaliava as óperas montadas no Teatro São Pedro.
Terra de oportunidades
Aos 16 anos, presenciou os atos de selvageria que se seguiram à abdicação de dom Pedro I e que relataria mais tarde no conto-crônica de estreia literária, intitulado Um Episódio de 1831. Sua primeira comédia é levada à cena sem menção de autoria, para evitar que isso interferisse na conquista do cargo de amanuense, na Mesa do Consulado, obtido graças ao poderoso cunhado e de onde seria transferido para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros, em 1843. Garantia, desse modo, um ganha-pão por meio do emprego público, como depois fariam Machado de Assis, Lima Barreto e mesmo Carlos Drummond de Andrade, até que surgisse o tempo em que um intelectual pudesse viver de seus escritos no Brasil, o que só ocorreria na segunda metade do século 20.
Sobre O Juiz de Paz da Roça, resume Alfredo Bosi, na História Concisa da Literatura Brasileira: “Em Martins Pena, o modo de sentir o social já era bem menos conservador que o do primeiro grupo romântico no qual costuma ser integrado por motivos contingentes. Assim, o ‘juiz de paz’ é composto com uma face venal e arbitrária, não obstante as veleidades de rigor que o cargo lhe faculta. Com a mão direita recruta pobres-diabos para irem lutar contra os farrapos ou perseguir os quilombos; com a esquerda recebe leitões, cestos de laranja e cuias de ovos dos querelantes...”. Convém explicitar, além da referência à Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (uma das muitas rebeliões que quase cindiram o país durante o período da Regência, entre 1831 e 1841), que “da roça” não significava o que hoje entenderíamos como caipira, em oposição à cidade, pois muitas propriedades rurais se situavam, então, a um passo do perímetro urbano.
No início da década de 1840, Martins Pena desistiu dos dramas aos quais equivocadamente se dedicara (chegou a escrever quatro) para mergulhar de corpo e alma em comédias que foram todas encenadas ainda durante seu tempo de vida. Por isso, diante de sua obra, o leitor de hoje precisa dar o devido desconto, de acordo com Wagner Madeira: “O texto deve ser avaliado menos por suas qualidades literárias e mais pelos predicados teatrais, com os respectivos recursos de palco e de interpretação dos atores. Martins Pena reformulava constantemente sua dramaturgia, pois acompanhava as encenações e fazia mudanças para melhorar a comunicação com o público”. Para Vilma Arêas as minuciosas rubricas que nos deixou, com incontáveis variantes, o aproximam do encenador moderno.
Grande impacto causou a estreia, em 1845, da peça Os Dois ou O Inglês Maquinista, que se vale da disputa de dois homens pela mão (e dote) de uma moça rica para colocar no palco figuras emblemáticas da época: o traficante de escravos e o britânico especulador. Imediatamente censurada pela Câmara dos Deputados, a comédia colocava o dedo na ferida do comércio negreiro, clandestino e ao mesmo tempo acobertado pelas autoridades. Em uma das cenas, o contrabandista tira de um cesto um moleque africano recém-desembarcado para oferecê-lo à pretendida. O título parodia jocosamente os títulos duplos dos dramas e melodramas e alude à manipulação dos cordéis econômicos pelos ingleses, pois “maquinista” era aquele que, nos bastidores, controlava os cenários teatrais.
A gananciosa visão de estrangeiros que enxergavam o Brasil como terra de oportunidades fáceis a serem exploradas fica patente neste e em outros textos de Pena, como As Casadas Solteiras, no qual um representante da pérfida Albion sintetiza: “Brasil é bom para ganhar dinheiro e ter mulher. Os lucros... cento por cento. É belo”. Albion é a maneira como a linguagem poética se refere apenas à Inglaterra ou à Grã-Bretanha.
Numa cidade que reunia a maior concentração urbana de escravos no mundo desde o fim do Império Romano – 110 mil sobre 266 mil habitantes –, eles representavam uma assimetria básica no teatro de Pena: ao contrário dos pares que se digladiam na tradição cômica (velhos versus jovens, homens versus mulheres ou nacionais versus estrangeiros), os cativos aparecem isolados em seu sofrimento. Trabalham sem descanso, são chicoteados, empurrados e enganados, mas nada dizem. “Com o silêncio, talvez Martins Pena sugira não haver palavras para descrever tal ignomínia”, pondera Vilma Arêas.
“Pateada” salutar
Além da própria obra, Pena propugnou pela viabilização, no Teatro São Pedro, das condições técnicas e materiais necessárias à encenação do repertório europeu de ópera. Com esse objetivo assinou uma coluna intitulada A Semana Lírica, no “Jornal do Commercio”. Nessas crônicas ele focava temas como a criação e operação da cenografia, a administração dos corpos estáveis (orquestra e coros de cantores e atores) e o comportamento do público, esboçando um autêntico programa para a reforma da cena de seu tempo.
Testemunhou e apoiou rebeliões de artistas submetidos a descasos. Na crônica intitulada A Revolta dos Coristas, sobre uma ameaça de greve, escreveu: “Dinheiro é sangue, dizem os ricos; sem dinheiro não se come, murmuram os pobres, e sem comer não se canta, acrescentam os coristas. Com o pouco que ganham e estes atrasos de pagamento é impossível que não andem com fome, o que talvez explique a razão por que nos coros comem eles a metade das notas”.
Registrou, ainda, uma greve da orquestra que resultou na demissão de todos os músicos, incluindo o maestro. Eles reivindicavam receber também pelos ensaios, e não apenas pelas récitas, o que Pena considerava justo, entre outras medidas essenciais para que o nível técnico não decaísse. No auge da crise, seus conselhos à diretoria do teatro são paradigmáticos: propõe que “escriturem” os músicos por um ano e paguem-lhes os ensaios; que se obriguem os mestres de canto a revisarem as partituras e que se façam os cantores virem com suas partes decoradas; que se aumentem os instrumentos de corda “para que estejam em relação com a considerável força de instrumentos de metal exigida nas óperas modernas”. Palpitava até na disposição da orquestra no fosso do teatro, no tamanho das estantes para as partituras e na maior ou menor intensidade da iluminação.
Tampouco o público escapa de seu olhar crítico. Admitia a “pateada” (o bater com os pés no chão em sinal de protesto ou desagrado durante um espetáculo) como “salutar” para corrigir os “artistas maus”. Mas quando ela se generalizava ou se tornava instrumento dos fãs para hostilizar rivais de seus ídolos, tornavam-se os “pateadores” danosos, a seu juízo: “Para que o teatro possa progredir serão eles corridos pela porta fora, se antes disso não se emendarem, como é de se esperar”. O progresso do teatro brasileiro preconizado por Pena só aconteceria, infelizmente, após sua morte, na década de 1850, quando o Teatro São Pedro volta para a direção de João Caetano, afastado no decênio anterior.
Em 1846 escreve suas últimas peças e no ano seguinte parte para Londres, onde exerceria a função de adido em nossa legação. Essa atividade diplomática, porém, não dura muito. Acometido pela tuberculose, é obrigado a regressar, mas não chega ao destino: morre em Lisboa no dia 7 de dezembro de 1848. Sepultado no Cemitério dos Prazeres, na capital portuguesa, seus restos mortais foram trasladados dois anos depois ao Brasil, onde repousam no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
Quando é criada a Academia Brasileira de Letras, em 1897, um de seus fundadores, o também comediógrafo Artur Azevedo, o escolhe para patrono imortal da cadeira de número 29. Em 1908 é fundada no Rio de Janeiro a Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena, que teve como alunos Procópio Ferreira, Tereza Rachel, Joana Fomm, Denise Fraga e Cláudia Jimenez. Dirigido por Décio de Almeida Prado, o Grupo Universitário de Teatro, da Universidade de São Paulo, encena em 1943 a comédia Os Irmãos das Almas, que se passa no dia de finados de 1844 e tem como sonoplastia recomendada pelo autor um lúgubre dobrar de sinos, durante toda a ação. Foi uma montagem amadora, mas que contou com profissionais como Cacilda Becker. Em 1956 é publicada uma edição crítica da obra completa de Martins Pena, em dois volumes, um de comédias e outro de dramas. Em Brasília, uma das principais salas do Teatro Nacional Cláudio Santoro leva o nome do pioneiro, cujas comédias permanecem no repertório de vários grupos de teatro Brasil afora.