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Inundações e chuva. Ou estiagem

Enchente em União da Vitória (PR) / Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens
Enchente em União da Vitória (PR) / Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens

Por: EVANILDO DA SILVEIRA

Se as previsões dos meteorologistas se confirmarem, o clima do planeta viverá uma fase turbulenta no primeiro semestre deste ano. Tudo graças ao El Niño, fenômeno natural, que ocorre a intervalos irregulares, que podem variar de 2 a 7 anos, com duração de 6 a 18 meses. Ele é causado pelo aquecimento além do normal das águas do Oceano Pacífico à altura da linha do Equador, entre as costas oeste da América do Sul e leste da Oceania. O resultado disso é sentido em todo o mundo, com secas mais intensas em algumas partes, como, por exemplo, na Austrália, Filipinas, Equador e nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, e chuvas torrenciais e inundações em outros, como no sul do país, no México e nos Estados Unidos. Além disso, os verões e primaveras podem ser mais quentes em regiões como o Sudeste brasileiro e os invernos mais intensos em outras, como na Europa, os furacões mais moderados no Atlântico e os ciclones mais fortes no Pacífico.

Para piorar a situação, segundo o Centro de Previsão do Clima (CPC) e a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, e a Organização Meteorológica Mundial, o atual El Niño, que começou a se manifestar em março de 2015, pode ser um dos quatro mais intensos desde que iniciaram seu monitoramento, em 1950. A previsão é que ele se iguale ou supere os registrados em 1972-1973, em 1982-1983 e em 1997-1998. “No atual, a temperatura da superfície do mar (TSM), estava, em setembro passado, de 2ºC a 3ºC acima do normal”, explica o meteorologista Francisco de Assis Diniz, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “As previsões indicam que a maior intensidade do fenômeno deveria ocorrer no final de 2015 e sua permanência poderia se estender por todo o primeiro semestre de 2016”.

Embora os especialistas já conheçam suas causas e consigam prever seus efeitos, o mesmo não acontece com o gatilho que o dispara. Já se sabe que tem a ver com os ventos alísios, que sopram sobre o Oceano Pacífico de leste para oeste. Em seu livro O El Niño e Você – O Fenômeno Climático, o meteorologista Gilvan Sampaio de Oliveira, pesquisador do Grupo de Interações Biosfera-Atmosfera do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apresenta um modelo que facilita o entendimento de seu funcionamento.

Para começar, deve-se imaginar uma piscina (obviamente cheia), na qual em uma das bordas é colocado um grande ventilador, da largura dela. Ao ser ligado, o aparelho irá gerar vento que, por sua vez, causará turbulência na água. Com o passar do tempo, será possível observar um represamento no lado da piscina oposto ao ventilador e até um desnível, ou seja, o nível naquela parte será mais elevado que daquela na qual o ar sopra. Isso ocorre porque ele está “empurrando” as águas quentes superficiais para o outro lado, expondo as mais frias das partes mais profundas da piscina da margem onde o aparelho está instalado.

É exatamente isso o que ocorre, em grande escala, no Oceano Pacífico na situação normal, ou seja, sem El Niño. Os ventos alísios, representados pelo que é gerado pelo ventilador na piscina, sopram de leste para oeste, sobre a sua superfície na região Equatorial, levando as águas quentes da costa oeste da América do Sul e acumulando-as no litoral da Austrália, gerando um desnível que pode chegar a 50 centímetros. Há duas consequências principais disso. A primeira é que com seu acúmulo na costa da Oceania há mais evaporação naquela região. O ar quente próximo à superfície do mar sobe, levando o vapor de água, que forma nuvens, e que se precipita como chuva intensa naquela área.

Corriente de El Niño

O ar que subiu, agora mais seco e frio, retorna, pelo alto da troposfera (região que vai da superfície até 15 quilômetros de altitude), para a costa oeste da América do Sul, onde desce, dando reinício ao processo. Essa circulação – ventos de leste para oeste na superfície e de oeste para leste em altos níveis – é denominada Célula de Walker, em homenagem ao pesquisador inglês Sir Gilbert Walker, que a descobriu. A segunda consequência é um mecanismo que os oceanógrafos chamam de ressurgência. Com o deslocamento das águas superficiais mais quentes da costa oeste da América do Sul para o leste, as mais frias e profundas emergem para ocupar seu lugar. Como elas são mais ricas em oxigênio e nutrientes atraem um maior número de peixes, tornando aquela região uma das mais piscosas do mundo.

O funcionamento de todo esse sistema é alterado em anos de El Niño. Ainda não se sabe por que, mas os ventos alísios reduzem sua velocidade ou até mesmo invertem seu sentido, soprando de oeste para leste. No exemplo da piscina, seria o equivalente a reduzir a potência do ventilador ou mesmo desligá-lo. Como resultado, as águas acumuladas no lado oposto, ou seja, no caso, no oeste do Pacífico, irão refluir, ficando no mesmo nível em toda a sua extensão, que pode chegar a 10 mil quilômetros. Com isso, elas serão aquecidas por igual, de um lado a outro do oceano. O resultado é que a área de maior evaporação e chuva se desloca para leste, estabelecendo-se nas regiões central e próxima da costa oeste da América do Sul.

Com isso, a ressurgência não ocorre e os peixes escasseiam. É justamente a esse fato que se deve seu nome, dado por pescadores equatorianos e peruanos. Ao longo de séculos de atividade, eles notaram que em alguns anos as águas da costa dos dois países ficavam mais quentes em dezembro, na época do Natal, diminuindo a oferta de peixes. Por isso batizaram o evento de Corriente de El Niño, em alusão ao Niño Jesus, ou seja, ao Menino Jesus, em português. Na verdade, esse fenômeno mexe com a circulação atmosférica em todo o mundo, causando as alterações climáticas conhecidas.

Além desse fenômeno considerado “clássico”, há uma configuração chamada de El Niño “Modoki”, que ocorre quando não existe um aquecimento gradual e simultâneo em toda área do Pacífico equatorial. Em outras palavras, ele não consegue aquecer por inteiro todas as regiões do oceano. “‘Modoki’ é um termo que significa ‘parecido, porém diferente’”, explica a meteorologista Danielle Barros Ferreira, do Inmet. “Um exemplo deste tipo deu-se no período 2004-2005, quando era esperado um efeito típico de El Niño, com chuvas acima da média na região Sul do Brasil. Contudo, ocorreram estiagens durante o verão de 2005, que se tornaram mais acentuadas devido a formação de águas mais frias no Oceano Atlântico próximo à costa sul do país”.

Em contraposição ao El Niño, surgiu ainda o termo La Niña (“a menina”, em espanhol) para denominar outro fenômeno, que se caracteriza por ser oposto a ele. Nesse caso, dá-se o que se poderia chamar de uma exacerbação da circulação normal. Os ventos alísios, em vez de reduzirem sua velocidade, a intensificam, deixando a Célula de Walker mais alongada. Assim, do nordeste do Oceano Índico ao oeste do Pacífico, passando pela Indonésia, é a região onde as chuvas aumentam. A área em que o ar desce se desloca para as regiões central e oriental, neste caso sendo mais intenso do que o normal, o que inibe, e muito, a formação de nuvens de chuva.

Em geral, a frequência dos episódios do La Niña é semelhante a do El Niño, ou seja, de 2 a 7 anos. De qualquer forma, ainda não se sabe por que, mas durante as últimas décadas ele tem ocorrido em menor quantidade que o seu antagônico masculino. Além do mais, segundo Oliveira em seu livro, os episódios La Niña têm períodos de aproximadamente 9 a 12 meses, e somente alguns duram mais que dois anos. Os mais recentes aconteceram nos anos de 1988-1989 (foi um dos mais intensos), em 1995-1996 e em 1998-1999. Outro aspecto que o pesquisador destaca é que a diminuição da temperatura da superfície do mar em anos de La Niña é menor que o aumento nos casos de El Niño. Enquanto já foram registradas anomalias de até 4ºC ou 5ºC acima da média em alguns anos do El Niño, em anos de La Niña as maiores variações observadas não chegam a 4ºC abaixo do normal.

Efeitos devastadores

Embora o monitoramento do fenômeno tenha começado apenas em 1950, ele é conhecido há mais tempo. “Os primeiros estudos foram feitos em 1928, por Walker, que descobriu que existia uma diferença de pressão atmosférica ao nível do mar em dois pontos distintos no Oceano Pacífico: Central (Taiti) e Oeste (Darwin/Austrália)”, conta o meteorologista Lincoln Alves, do CCST, do Inpe. “Essa diferença, denominada de Índice de Oscilação Sul (IOS), está relacionado com as mudanças na circulação atmosférica nos níveis baixos, consequência do aquecimento (ou resfriamento) das águas superficiais no mar. Valores negativos e positivos da IOS são indicadores da ocorrência do El Niño e La Niña (resfriamento das águas) respectivamente”.

O fenômeno, porém, começou a ficar bastante conhecido e comentando, mundialmente, a partir de sua ocorrência em 1997-1998, a mais intensa registrada até hoje, com o aumento da temperatura da água em até 5°C em alguns pontos. Os efeitos, sentidos em várias regiões do planeta, foram devastadores. Estima-se que as secas, tempestades, inundações, furacões e outros eventos climáticos extremos causados pelo El Niño tenham afetado cerca de 120 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais cerca de 5 milhões ficaram desabrigadas e 23 mil morreram. Muitas foram vítimas de incêndios florestais de grandes proporções, que ocorreram na Indonésia e Austrália, por exemplo. No Brasil, uma faixa de fogo de 1,6 mil quilômetros se estendeu pelas florestas da região Norte. Os prejuízos materiais e econômicos somados dos 27 países mais atingidos pode ter atingido US$ 45 bilhões.

O evento anterior semelhante em intensidade, que ocorreu em 1982-1983, também teve efeitos consideráveis. Houve tempestades torrenciais e inundações em zonas do Equador, do Peru e do Brasil, principalmente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Assim como nos Estados Unidos, onde foram registradas grandes tormentas e chuvas ao longo da costa da Califórnia, causando prejuízos para toda a economia do país. Em contrapartida, houve redução das precipitações e secas na Austrália, Indonésia e Índia, causando prejuízos à agricultura, com queda nas colheitas e consequente fome, principalmente nos dois últimos países.

Agora, em relação ao atual El Niño, os dados sobre a temperatura das águas do Pacífico equatorial variam conforme os diferentes serviços de meteorologia. O certo é que ela vem aumentando desde março de 2015. De acordo com a NOAA, em setembro estava 2,1 graus acima da média em algumas zonas do oceano. “Prevemos que o El Niño atual pode ser um dos mais fortes”, disse na época Mike Halpert, diretor adjunto do Centro de Previsão do Clima da agência, em entrevista coletiva. Segundo o Boletim de Prognóstico Climático (Progclima), elaborado em conjunto pelo Inmet e o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), do Inpe, e divulgado em setembro último, a TSM estava mais de 3ºC maior do que o normal.

A consequência mais notável em 2015 em termos mundiais foi a redução no número de furacões no Atlântico Norte. No Brasil, de acordo com o Progclima, no decorrer do trimestre de junho a agosto houve acentuado déficit de chuva na maior parte das regiões Norte e Nordeste, com exceção de Alagoas e Pernambuco e do litoral sul da Bahia, onde teve excesso. Na região Sul, o destaque foi uma grande irregularidade na distribuição espacial e temporal “das anomalias de precipitação”, destacando-se o aumento de chuva em julho e a escassez nos meses de junho e agosto. Em outubro, as chuvas voltaram com tudo, causando a maior cheia no Rio Guaíba, que banha Porto Alegre, em 48 anos. Em São Paulo e Rio de Janeiro o que ocorreu foram temperaturas acima da média no inverno.

No primeiro semestre de 2016, efeitos semelhantes deverão ser sentidos no sul, com mais chuvas, e na Amazônia com escassez de precipitação. A região que mais deverá sofrer, no entanto, é a Nordeste. “Ela já está em regime de seca há três anos”, explica o climatologista José Marengo, chefe de pesquisa do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado à Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisas e Desenvolvimento (Seped), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “Se vier a seca que se prevê para 2016, ainda que seja fraca, irá piorar a situação já existente. Em termos nacionais, é possível que o verão deste ano seja mais quente que o normal em todo o país”.

Seca e inundações no Brasil

Se as previsões se confirmarem, os estragos do El Niño em todo o planeta no período compreendido entre 2015-2016 deverão ser de dimensões semelhantes às de 1997-1998. Num prognóstico encomendado pela BBC Mundo e divulgado em agosto passado, William Patzert, especialista em clima do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL, na sigla em inglês), da Agência Espacial Americana (Nasa) e um dos mais importantes estudiosos do fenômeno nos Estados Unidos, relacionou algumas consequências. E começou pela mudança nas correntes de jato, ventos que fluem a grandes altitudes. As mais poderosas são as polares, que ocorrem em torno dos 7 e 12 quilômetros (entre as latitudes de 40°-70°) acima do nível do mar, e as subtropicais que andam à volta dos 10 e 16 quilômetros (20°-30°) de altitude. O norte e o sul do planeta estão à mercê das duas modalidades de vento.

Segundo Patzert, o El Niño faz com que uma das correntes de jato subtropical, a que habitualmente se encontra no sul do México e da América Central, se desloque para o norte. A consequência é um inverno mais chuvoso que o normal no sul dos Estados Unidos. “Contrastando com isso, a polar, que tem sido muito forte na América do Norte nos dois últimos invernos, enfraquece, levando ao registro de invernos mais suaves no norte dos Estados Unidos e no sul do Canadá”, ele observou. De acordo com Patzert, mesmo que o aumento das chuvas possa ser uma boa notícia para o sudoeste americano, devido à seca na região, também poderá causar grandes inundações e deslizamentos.

Na América do Sul, o registro será de invernos muito chuvosos, na região que vai do norte do Chile ao Equador, e na qual se encontram as áreas mais áridas do planeta. “Além disso, nesse local, que conta com os maiores pesqueiros do mundo, se a temperatura da água continuar mais alta do que o normal haverá um colapso na pesca, o que pode ter impacto nas economias desses dois países”, disse Patzert. “No nordeste do Brasil, o El Niño pode provocar seca enquanto que no sul do país e no norte da Argentina haverá inundações”.

Ainda de acordo com o especialista da Nasa, as consequências do El Niño na Ásia também serão marcantes. Patzert esclarece que, quando no Pacífico equatorial a água quente se move até a América do Sul, espocam secas extremas em lugares como Filipinas, Indonésia ou Tailândia. Segundo ele, nesses países, “nos quais a agricultura é responsável por uma grande porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), há o risco da elevação dos preços dos alimentos, afetando o valor de mercado das matérias-primas em escala global”. Ao mesmo tempo, “em nações como Japão e China, os invernos serão mais temperados”.

Quando o El Niño é forte, como deverá acontecer neste ano, conforme Patzert, os invernos são muito frios no leste da Europa e no oeste da Rússia. “Um bom exemplo nos dois últimos séculos foi dado em 1812 e em 1941”, declarou à BBC. “Foram precisamente os invernos em que as tropas de Napoleão e Hitler soçobraram. Por isso, gosto de dizer que um exército não derrotou o outro; foram, isto sim, aniquilados pelo El Niño”.

Além desses lugares, ele causa mudanças climáticas em outras regiões do planeta, como o sul do continente africano e Madagascar, que tendem a sofrer com secas, assim como o norte da Austrália e o sudeste asiático, enquanto áreas da África Subsaariana, muito áridas, podem ter mais chuvas. Patzert diz também que, nos anos em que ocorre o fenômeno “há uma temporada de furacões mais fraca no Atlântico”, pois os ventos nestas situações são favoráveis para a criação de sistemas tropicais. “Ao mesmo tempo, no Pacífico oriental, devido à elevada temperatura da água, é registrado um período de furacões muito ativo, em regiões como a Baixa Califórnia”, conclui.