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A mestre dos vitrais
Por: HERBERT CARVALHO
Se não fosse por ela, o plantel dos criadores e embelezadores de Brasília – composto pelo urbanista Lucio Costa, o arquiteto Oscar Niemeyer, o artista plástico Athos Bulcão e o paisagista Burle Marx – seria exclusivamente masculino e brasileiro. Seu toque, não apenas feminino, mas também europeu, distingue-se em obras monumentais abrigadas na Câmara dos Deputados, no Memorial Juscelino Kubitschek, no Palácio Jaburu e no Senado Federal, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, no Superior Tribunal de Justiça, no Teatro Nacional e naquela que é considerada sua obra-prima, a Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida, de Brasília.
O fato é que antes de Marianne Peretti a arte do vitral – que abraçou quando já pintora e escultora consagrada –, inexistia na trajetória de nosso patrimônio histórico e artístico, colonial, eclético, modernista e até mesmo contemporâneo, de acordo com Joaquim Falcão, vice-presidente do Instituto Itaú Cultural. “Nossos sobrados, públicos ou privados, eram fechados sobre si mesmos. Nossa arquitetura tinha medo da luminosidade”, ele analisa.
Apesar de toda essa contribuição e de ter dezenas de obras (executadas não apenas em vidro, mas também em aço, bronze, ferro e diversos outros materiais) espalhadas pelo país e pelo mundo, boa parte delas em Pernambuco, onde fixou residência em 1964, seus trabalhos, pouco conhecidos e divulgados, foram mantidos à margem dos livros sobre a História da Arte Brasileira.
Para corrigir esse vazio, foi idealizado em 2010 o projeto Documento Marianne Peretti que objetiva, por diversos meios, registrar e dar visibilidade ao papel desempenhado na arte moderna por esta artista nascida em 1927, em Paris, de pai pernambucano e mãe francesa, radicada no Brasil desde a década de 1950.
Como resultado da iniciativa, em 2013 aconteceu na Caixa Cultural Recife uma exposição comemorativa de seus 60 anos de carreira. E no ano passado foi lançado o livro Marianne Peretti – A Ousadia da Invenção, uma não menos ousada edição bilíngue (português e francês) das Edições Sesc São Paulo e B52 Desenvolvimento Cultural, com 348 páginas de depoimentos, fotos, desenhos e croquis, que tem por objetivo dar conhecimento, aos leitores franceses e brasileiros, da existência do “vitral dos trópicos”, termo adotado pelos editores para designar o estilo da escultora.
Desafio aceito
“Oscar já tinha dito várias vezes que a catedral precisava de vitral, e eu fazia de conta que não ouvia aquele tipo de conversa, porque tinha um certo medo do tamanho daquela construção, e sempre respondia: ‘O céu de Brasília é tão bonito, não precisa de nada mais que vidros...’”, conta Marianne, que iniciou em 1976 sua participação nas obras da capital brasileira, com um painel de vidro transparente para o Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente da República.
Em 1986, na solenidade de inauguração do vitral de sua autoria no Panteão da Pátria e da Liberdade, ela finalmente aceitou o desafio de criar os vitrais da catedral. Foram dois anos de intenso trabalho, que lhe valeram um deslocamento da coluna, terrível escoliose que a persegue até hoje, por desenhar no chão, à mão, todos os 16 vitrais de um conjunto que, por sua monumentalidade (2.240 metros quadrados) e qualidades estéticas, ocupa um lugar único na história da arte do vitral do século 20, segundo a pesquisadora especializada Véronique David.
Até que a catedral escura e triste, construída entre 1958 e 1960, ganhasse as “ondas azuis e verdes que sobem e se expandem em vagas siderais monumentais em torno da coroa de concreto”, nas palavras da pesquisadora. Marianne teve que superar toda a sorte de dificuldades. Os vidros de que precisava não existiam no Brasil e sua importação estava proibida. Causou escândalo quando pediu que as colunas internas fossem pintadas de branco, mas depois, diante do resultado, Niemeyer gostou tanto que resolveu pintar as colunas externas na mesma tonalidade, cor que a partir daí passou a ser frequente nas obras em concreto do arquiteto. Para dispor de um espaço semelhante ao da catedral que lhe permitisse alinhar os papéis nos quais desenhava em tamanho natural, obteve a cessão de um ginásio esportivo da cidade, que tinha de desocupar quando da realização de eventos no local.
Ao final a epopeia, semelhante à dos construtores das catedrais europeias durante a Idade Média, produziu-se um resultado assim resumido por Joaquim Falcão: “Trata-se de uma catedral feita não para as sombras dos réquiens, mas para a luz dos magnificats. Por fora é arquitetura de Oscar Niemeyer. Por dentro é arte de Marianne Peretti”. Para o próprio arquiteto, os vitrais “são comparáveis, pelo seu valor e esforço físico, às monumentais obras da Renascença”. Já Lucio Costa disse à artista que “dar à luz” o interior da Catedral de Brasília era “um problema difícil, que somente uma alma como a sua e um saber como o seu seriam capazes de resolver”.
Essa alma e esse saber são esmiuçados no livro pelos textos de Joaquim Falcão, sob o ângulo do patrimônio cultural, e Véronique David, intitulado “E o Vidro se Fez Poesia”. Além deles escreve o jornalista, escritor, crítico e editor de arte Jacob Klintowitz. Seu ensaio “O Rastro do Pássaro – Gênese do Método Marianne Peretti” elucida ao final o enigma do título: o rastro do pássaro foi deixado na alma de quem o contemplava. Pássaros que, por sinal, ela colocou sobre duas colunas no Centro Cultural de Le Havre, na França, e que são irmãos de poliéster de outro, feito em bronze maciço, instalado no saguão do Teatro Nacional Claudio Santoro, em Brasília.
“Coragem e fantasia”
As aves também são símbolos da liberdade que ela sempre prezou no trabalho e na própria vida desde quando, na juventude, foi expulsa de dois colégios por cabular aulas para desenhar em museus, o que levou a mãe a se curvar à vocação da filha, colocada aos 15 anos na École Nationale Supérieure des Arts Decóratifs, onde aprendeu os princípios do desenho e da pintura. Aos 21 anos tornou-se ilustradora de livros e revistas, e, aos 25, fez a primeira exposição individual, na Galeria Mirador, Place Vendôme, Paris. Presente, o pintor Salvador Dalí comentou: “Você não é uma artista burguesa”.
Em 1953, Marianne casou-se com um empresário inglês radicado no Brasil e vem morar em São Paulo. Mas logo se separou e passou a ter que trabalhar para sustentar a filha. Foi então que criou vitrines para as lojas da joalheria H. Stern. Na década de 1960, após uma viagem de carro por diversos países europeus em companhia de dois arquitetos, voltou sua atenção à criação de painéis, dando início às intervenções na arquitetura moderna.
“Percebi que é possível inventar a modernidade no vidro e criar uma linguagem que pudesse ser incorporada à nova arquitetura de então”, explica ela ao falar de seu primeiro vitral, instalado no refeitório do Centro de Formação de Aprendizes de Equipamento Elétrico de Paris, em 1972. Ao contrário dos vitrais figurativos – que desde a Idade Média desempenhavam a função de narrar a Bíblia para quem não podia ler – as criações de Marianne Peretti não obedecem qualquer cânone. Seguindo a trilha aberta por Chagall, Matisse e Braque, que adaptaram a linguagem contemporânea abstrata à técnica dos vitrais, os de Marianne se caracterizam, na visão de Niemeyer, pelo “desenho magnífico, livre, solto, coberto de coragem e fantasia”. Palavras que descrevem com precisão a fachada concebida em 1994 para o Superior Tribunal de Justiça: são diversas colunas em concreto e vidro, cada qual diferente da outra, compondo o painel que ela chamou, poeticamente, de Floresta Imaginária.
Moradora em um sítio histórico de Olinda desde 1987, em sua casa-ateliê há um enorme e antigo cajueiro, que toma conta da parte frontal do quintal e aparece em todo seu esplendor na foto que ocupa duas páginas do livro, em seguida ao sumário. “Em seu trabalho, também a natureza é o motivo central, representada pela visão cósmica e sideral do céu, pela vegetação, pelo pássaro e pelo voo do pássaro”, sintetiza Klintowitz. Ao que a deputada federal e ex-prefeita de Olinda, Luciana Santos, acrescenta, em texto de apresentação: “Na obra de Marianne Peretti existe uma implícita e inegável declaração de amor à vida, ao Brasil e à luz que aclara e faz única a beleza dos trópicos”. Em plena atividade aos 88 anos, ela prepara a obra A Árvore da Vida, em aço, ferro e vidro, com 12 metros de altura, para a cidade do Recife.