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A metamorfose necessária

Marcos Troyjo / Foto: Bruno Leite
Marcos Troyjo / Foto: Bruno Leite

Marcos Troyjo, economista, cientista político e diplomata, é diretor do BRICLab, centro de estudos sobre Brasil, Rússia, Índia e China da Universidade de Columbia, em Nova York, onde leciona relações internacionais. Integrante do Conselho Consultivo do Fórum Econômico Mundial, também é colunista semanal da “Folha de S. Paulo” e colaborador regular da CNN em espanhol e do jornal “Financial Times”.
Pesquisador do Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien (CEAQ) da Sorbonne e professor visitante da Academia Russa de Economia e Administração, publicou obras sobre estratégias de desenvolvimento, como
Nação-Comerciante – Poder e Prosperidade no Século XXI, livro escolhido pela revista “Americas Quarterly” como um dos melhores de 2007.
Esta palestra de Marcos Troyjo, com o tema “O Futuro dos Brics”, foi proferida em reunião do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 13 de agosto de 2015.

Os Brics surgiram de um estudo de futurologia. Um dos bancos de investimento mais importantes do mundo, o Goldman Sachs, tem um departamento de pesquisas que era chefiado por um aficionado de futebol, o agora barão Jim O’Neill. Ele coligiu dados demográficos e o tamanho de alguns países, seu potencial de ingresso naquilo que se chamou de economia pós-industrial e sua capacidade de gerar cooperação em suas regiões. Ele argumentou que por volta de 2030 a noção de mercados emergentes, que no começo dos anos 2000 era muito presente, seria liderada pelo quarteto Brasil, Rússia, Índia e China, os Brics. Voltando um pouquinho no tempo, esse destaque dos Brics em relação a outros mercados emergentes se deu sobretudo por conta da arremetida desses países. Também porque, aparentemente, eles conseguiram fazer uma lição de casa importante nos anos 1990.

O cientista político americano de origem japonesa Francis Fukuyama entende que com a queda da União Soviética a relação dialética entre tese, antítese e síntese tinha desaparecido, ou seja, as civilizações liberal-democráticas ocidentais tinham vencido o jogo. E é curioso que o ambiente de maior livre comércio e fluxo internacional de capitais foi muito bom para esses mercados emergentes, particularmente para Brasil, Rússia, Índia e China.

Por que esse cenário foi bom para nós? O país tem um problema virulentíssimo de desconexão de base monetária e capacidade de produção que fez com que nosso processo recente de industrialização (dos anos 1950 até o início dos anos 1990) fosse acompanhado de duas irmãs gêmeas, a dívida externa e a inflação. De repente, nos anos 1990, com uma abundância de capital, tivemos o estoque necessário de ativos, sobretudo de natureza financeira, para compensar nossa baixa capacidade interna de poupança. O Brasil poupa hoje apenas 15% de seu PIB [Produto Interno Bruto], o que não é muito diferente do que acontecia nos anos 1990. Como a onda internacional de capitais se tornou disponível, começamos, sobretudo a partir da metade dos anos 1990, a colocar a casa em ordem. Aí tivemos um dia de sol perfeito, ao contrário da tempestade perfeita que experimentamos hoje. Ou seja, aquele período dos anos 1990 foi muito bom para o país emergente que era o Brasil.

Para a Rússia, o R dos Brics, também foi um período de grandes expectativas. Em dezembro de 1991, Mikhail Gorbachev comunicou a extinção da União Soviética. No início da volta à democracia houve tentativas de golpe. Havia boas perspectivas para a economia em transição, sobretudo pelo fato de que a partir dos anos 1990 começou o vibrante e longo processo de valorização das commodities no mundo. Junte-se a isso o patrimônio de inteligência russa em física, química e matemática. Tudo isso autorizava supor que o país passaria por um processo de equalização de seu nível de desenvolvimento com as nações europeias que compõem a OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] e que têm renda per capita superior a US$ 30 mil por ano.

A Índia, que nos anos 1990 quebrou, pelo menos em parte, com a ideia de uma sociedade atrasadíssima e eternamente refém da característica cultural das castas. Dado o baixo valor relativo da remuneração de mão de obra, esse país passou, cada vez mais, a ser o destino de uma reorientação espacial sobretudo da indústria de tecnologia da informação. E ela conseguiu reproduzir em determinados setores e em determinadas áreas níveis de excelência somente comparáveis àqueles que se encontram, por exemplo, no Vale do Silício americano. Estou falando especificamente de Bangalore, que hoje é uma região do mundo que produz o mesmo número de patentes por metro cúbico que o Vale do Silício. Ou seja, se por um lado isso quebrou a ideia de que a Índia estava para sempre presa aos grilhões de seu passado de castas, por outro, criou uma sociedade muito diferente do que se poderia imaginar. Essa nova sociedade, que cresce cada vez mais na Índia, afetou distâncias sociais, que se tornaram mais graves ao longo dos anos. Por exemplo, hoje na Índia há mais aparelhos celulares do que vasos sanitários e mais bilionários que na Inglaterra e na França juntas. No entanto, o país tem mais miseráveis, pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia, que todo o continente africano. Tudo isso acontecendo em um país que caminha para ultrapassar a China como o mais populoso do mundo, o que se espera acontecer em 2025.

E a Índia é capaz também de fazer coisas absolutamente extraordinárias como acomodar dentro de uma mesma ordem política, e supostamente democrática, civilizações que do ponto de vista internacional encontram-se em conflito há muito tempo. O principal inimigo, adversário ou antagonista geopolítico da Índia é o Paquistão, que hoje deve ter 190 milhões de habitantes. Na Índia há 160 milhões de muçulmanos. Em breve haverá mais muçulmanos lá do que no Paquistão – o que, aliás, é uma das razões pelas quais também atenua-se um dos conflitos geopolíticos com maior potencial de beligerância, que é a disputa pela lindíssima região da Caxemira.

Uma curiosidade: este ano de 2015 será o primeiro, nos últimos 30, em que a Índia percentualmente vai crescer mais que a China. Desde 1985 isso não acontecia. Naquele ano, a renda per capita indiana era igual à da China e hoje a chinesa é 3,5 vezes maior.

Nação comerciante

Quarto país dos Brics, a China é um caso superlativo. É absolutamente inédita na história do homem a dinâmica de ascensão chinesa, sobretudo a partir de 1978, um país que desde a revolução de 1949 até 1978 não ia para lugar algum. Até 1976 passou pelo processo da Revolução Cultural que matou, expulsou ou aleijou uma parte significativa de sua inteligência, de seu talento, o que levou a graves rachas internos. Era um país fraturado, com uma ideologia adversa à do Ocidente e que atingia a marca de 1 bilhão de pessoas.

Em 1978, o Brasil tinha 100 milhões de habitantes e um PIB de US$ 200 bilhões. A China, com seu 1 bilhão de pessoas, tinha um PIB nominal do mesmo tamanho do Brasil. Ou seja, há apenas 37 anos, tínhamos uma renda per capita dez vezes maior que a dos chineses. Neste final de 2015, sobretudo com a pronunciada desvalorização cambial, muito provavelmente o Brasil vai deixar o posto de sétima ou oitava maior economia do mundo e pular para a décima-primeira ou décima-segunda posição. Vamos perder alguns postos na corrida entre as nações mais ricas do planeta porque não conseguimos fazer algumas coisas que os chineses fizeram muito bem. Eles chegaram a 2015 com uma população de 1,3 bilhão de pessoas, um acréscimo de 300 milhões de pessoas em 37 anos. Em parte porque agregou Macau em 1999 e Hong Kong em 1997. E vai concluir 2015 com um PIB de US$ 11 trilhões, enquanto o Brasil muito provavelmente vai chegar ao final deste ano com 204 milhões de habitantes e um PIB de US$ 2 trilhões. Ou seja, enquanto o PIB chinês expandiu-se mais ou menos 50 vezes no período, o nosso aumentou 10 vezes.

O que os chineses fizeram de certo? Nos anos 1980 e 1990 colocaram em prática uma eficientíssima estratégia de nação comerciante. Eram quatro elementos centrais. Primeiro: acesso privilegiado aos principais mercados compradores do mundo. Desde 1979, a China tem, junto aos Estados Unidos e a partir de 1984 em relação à Europa, uma cláusula de nação mais favorecida, o que permite que exportações chinesas na grande maioria dos setores não sejam objeto de barreiras tarifárias e não tarifárias. Ou seja, um acordo de livre comércio branco com os grandes mercados compradores do planeta. Segundo: para resolver o problema interno de infraestrutura, os chineses rapidamente desenharam uma legislação que permitia o deslocamento do investimento estrangeiro direto para território chinês, com uma série de benefícios do ponto de vista energético, de consumo de água para fins industriais ou da construção de rodovias e ferrovias, desde que uma parte importante desse capital que ali chegava fosse direcionado para a infraestrutura. Além disso, em contrapartida, sempre que o investimento estrangeiro chegava, o governo chinês, em seus níveis municipal, provincial ou central, era também proprietário daquela nova empresa. Ou seja, resolveram seu problema de infraestrutura por aquilo que muito mais tarde viemos a chamar de Parcerias Público-Privadas [PPPs].

Em terceiro lugar, como os chineses resolviam progressivamente seus dilemas infraestruturais e tinham acesso aos grandes mercados compradores do mundo, artificialmente e com mão pesada administraram os preços da economia, sobretudo os custos relativos à atividade exportadora. Mantiveram durante decênios sua moeda, o yuan, desvalorizada, como mantiveram desvalorizada a remuneração da mão de obra, ou seja, o fator salário.

O quarto fator de êxito chinês é o fato de se tornarem mercadores globais. As federações de indústria e comércio da China mantêm suas missões no exterior durante os 365 dias do ano. Sempre há alguém vendendo a China no mundo. E não estou falando da primeira onda, produtos de baixa qualidade ou baixo valor agregado. Vejam o caso da energia eólica: hoje os chineses investem mais em turbinas eólicas do que todos os outros países juntos. É também o país líder em energia fotovoltaica e está entrando pesado no setor de satélites. Eles se tornaram grandes diplomatas comerciais, algo que infelizmente aqui nunca veio a se consolidar.

Voltando ao Brasil, fizemos a lição de casa dos anos 1990 e se o nosso dia de sol perfeito ocorreu no início dos anos 2000, o período de 2003-2004 até cerca de quatro anos atrás foi o que agregou mais sol ainda para países como o Brasil. O crescimento do PIB chinês fez com que surgisse um gigantesco apetite por commodities agrícolas e minerais, nas quais o Brasil tem vantagens comparativas. Isso veio a se refletir na balança comercial brasileira. Em 2001, o comércio Brasil-China era de US$ 1 bilhão; em 2013, foi para US$ 85 bilhões, com superávit para o lado brasileiro. E aconteceu, não porque o Brasil fez a lição de casa, mas porque se criou uma bomba de sucção na economia chinesa para bens em que o Brasil apresenta vantagens comparativas. Isso ajudou também Argentina, Peru, Chile e Austrália. A Austrália, aliás, é o maior exportador mundial de minério de ferro. Alguns desses países, como é o caso da Austrália, utilizaram-se dessa ventania favorável para fazer as lições de casa. Hoje os australianos estão investindo 3% de seu PIB em ciência, tecnologia e inovação. Ou seja, utilizou-se a velha economia das commodities para se construir uma economia moderna.

As características do dia de sol perfeito criaram uma sensação de grande exuberância em nosso país. Isso porque, em alguma medida, temos o fator demográfico ainda a nosso favor. E aquilo que no Brasil se chamou de políticas contracíclicas, a combinação entre preços administrados de determinados bens públicos com financiamento privilegiado a determinadas empresas, funcionou para gerar um efeito ilusório de prosperidade e de intocabilidade em relação ao que estava acontecendo com outras economias mais maduras do mundo.

Houve outros fatores, como a descoberta das reservas do pré-sal, com a possibilidade de levar o país em 2020, pelo menos nos estudos prospectivos da Petrobras, a produzir 6 milhões de barris/dia. Gerou-se, dentro e também fora do país, aquilo que chamo de “Brasil mania”. Só que quando se olha na radiografia alguns dos problemas brasileiros, temos de perguntar se o Brasil é realmente emergente. Um país que poupa 15% do PIB, investe 1% em ciência, tecnologia e inovação, sendo que 80% desse 1% vêm de estatais, um país cuja juventude abaixo dos 25 anos tem uma parcela expressiva, praticamente 30%, que nem estuda nem trabalha, será mesmo emergente? Tudo isso compõe um quadro que com o fim do boom das commodities internacionais e com o fracasso relativo das políticas contracíclicas, colocou o Brasil a nu.

Para um país ser emergente é necessário que cresça mais do que a média mundial durante extensos períodos de tempo. Em 1950, a renda per capita do Brasil era equivalente a 20% da americana. Em 1970, continuava 20% da americana. Hoje, dia 13 de agosto de 2015, é igualmente 20% da renda per capita dos Estados Unidos. São 65 anos de história em que evoluímos se olharmos para nós mesmos. Se nos compararmos com os outros, o resultado não é tão bom, sobretudo se levarmos em conta os demais emergentes. E não somente com emergentes asiáticos, mas também com países como o Chile, que está resolvendo seus problemas. O PIB da Colômbia, por exemplo, já é maior do que o da Argentina. Enfim, vêm aí grandes dificuldades para o Brasil.

Metamorfose

Falemos do futuro dos Brics. Se tivéssemos de sintetizar o caminho adiante para essas quatro potências supostamente emergentes, talvez a melhor expressão seria dizer que elas precisam passar por uma mutação de seu código genético, uma metamorfose. Isso porque a estratégia de desenvolvimento não se dá apenas em relação àquilo que os países querem, mas também ao que o cenário oferece como oportunidade ou como porta fechada.

Então qual será o cenário internacional desses próximos anos que vai determinar o tipo de metamorfose de que precisamos? Em primeiro lugar, o mundo será marcado não pelo G-7, o grupo das sete nações mais desenvolvidas, nem pelo antigo G-20, que é o G-7 mais alguns países emergentes, mas pelo G-2, que é a competição entre Estados Unidos e China. Uma competição que vai se dar em vários setores e também no que poderíamos chamar de prestígio internacional. Uma nação se torna uma hiperpotência quando sabe não apenas o que quer para si própria ou o que deseja do mundo, mas sobretudo o que ela quer para o mundo. E os chineses, que durante 37 anos se limitaram ao que queriam para si próprios e ao que eles desejavam do mundo, passaram também a desenhar uma arquitetura daquilo que querem para o mundo.

Uma das maneiras de visualizar essa competição do G-2 é o desenho das novas geometrias globais de comércio: por um lado, com os Estados Unidos liderando a parceria transpacífica [Tratado Transpacífico – TTP], que envolve Estados Unidos, México, Peru, Chile, Japão, Austrália e Nova Zelândia, entre outros, claramente uma tentativa de criar um condomínio para se contrapor à hipercompetitividade chinesa. Por outro lado, vemos os chineses perguntando: como querem fazer uma área de livre comércio no Pacífico sem nos incluir? Isso é impossível.

Quando à APEC [Cooperação Econômica Ásia-Pacífico], clube dos países asiáticos que se reuniu em Pequim em novembro de 2014, Xi Jinping lançou a ideia da área de livre comércio do Pacífico. E disse ter os capitais necessários para fazer com que essa área de livre comércio funcionasse, ao contrário dos Estados Unidos, que têm apenas seu mercado para oferecer. Essa competição não vai se dar só no campo militar, mas também na área de planejamento da defesa. Hoje um americano médio gasta US$ 1,8 mil por ano com defesa, enquanto um chinês médio gasta apenas US$ 78. Imaginem o que vai significar para a economia chinesa e para o quadro de segurança no Pacífico a China construir ou adquirir uma frota de porta-aviões, fazer um upgrade da sua classe de submarinos ou algo equivalente ao que fizemos com os caças suecos em uma escala dez vezes maior.

A primeira característica, portanto, é o G-2 e a segunda tem muito a ver com a primeira: estamos assistindo à emergência definitiva da “China 2.0”, ou seja, vamos ter de conviver com esse enorme urso panda, mais parecido com um dragão. Vamos ver como a China, pelo menos do ponto de vista de sua intenção, vai substituir o modelo de crescimento sustentado por exportações por um modelo voltado para o mercado interno. Isso vai levar automaticamente ao aumento do custo relativo da produção na China, pois os salários se apreciaram, assim como o yuan.

O corolário dessas coisas é que a China vai fazer uma diáspora corporativa como fez o Japão nos anos 1970. O fenômeno dos Tigres Asiáticos nada mais é do que capital japonês indo para Taiwan, Hong Kong, Singapura e Coreia do Sul. Os chineses vão fazer a mesma coisa em relação a sua vizinhança e já estão indo para o Vietnã, Tailândia, Indonésia. E para a Índia. O principal programa de política industrial indiano chama-se make in India. Não é made, mas make. O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, de maneira muito inteligente percebeu que, por um lado, poderia atrair o capital americano industrial que está estacionado na China, porque a Índia tem mão de obra mais barata e fala inglês; por outro lado, poderia também ajudar na transposição de capital industrial chinês, porque para os bens de menor valor agregado não faz sentido a China manter a atividade em seu país.

Os chineses vão além da vizinhança asiática, para outras regiões do mundo. E o continente do planeta que conjuga, ao mesmo tempo, mão de obra barata e capacidade de receber os chineses para investir, com mão forte, junto aos governos locais e com acesso privilegiado a commodities agrícolas e minerais é a África. Essa é a razão pela qual hoje os países africanos passam por uma nova onda de colonização, desta vez por parte da China. O que gera gigantescos atritos de cooperação e conflito por conta do estilo abrasivo das empresas chinesas.

US$ 50 bilhões

Em relação à nossa parte do mundo, os chineses vão fazer chover dinheiro, mas para garantir que a incompetência ou a falta de recursos dos governos locais não sejam obstáculos à sua necessidade de continuar consumindo, em elevadíssimas doses, commodities agrícolas e minerais. Quando esteve aqui o premier chinês Li Keqiang, tudo o que ele disse sobre investimento chinês, o tal pacote de US$ 50 bilhões, tudo isso vai acontecer, mas não por conta do interesse no mercado interno brasileiro. Eles fazem uma leitura, a meu ver correta, de nossa incapacidade de implantar infraestrutura numa velocidade compatível com a demanda da China.

A ideia de que a economia chinesa está desaquecendo e que isso vai afetar o Brasil é conversa mole. Se verificarmos corretamente, mesmo neste terrível ano de 2015, no comércio bilateral Brasil-China, sobretudo do ponto de vista das exportações brasileiras, as remessas em negócios e tonelagem de soja são maiores que as do ano anterior. Em minério de ferro também. Mas o valor das exportações está caindo, porque os chineses estão buscando outras fontes no mundo e existe uma espécie de sobreprodução ou superoferta de commodities no mundo. Não que estejam consumindo menos.

A terceira característica desse mundo que vem por aí nos próximos 25 anos é a volta da geopolítica. Recentemente pensávamos que problemas de fronteiras e egos de países tinham sido deixados de lado em nome da racionalidade econômica, mas muito claramente o que vemos hoje, sobretudo na relação entre Rússia e Ucrânia, mostra que a questão não estava soterrada. Ao contrário, a volta da geopolítica cria novos canais de negócios. Por exemplo, em razão das sanções que hoje a economia russa sofre por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, os chineses conseguiram tirar da gaveta um gigantesco projeto de construção de um gasoduto Rússia-China a preços muito convenientes para os chineses. Quando Vladimir Putin foi a Xangai em 2014, numa visita de Estado, afirmou que o objetivo mais importante da política externa russa era uma boa relação econômica com a China. E há algumas semanas, quando na belíssima Praça Vermelha ocorreu o maior desfile militar desde a Guerra Fria, quem se encontrava ao lado de Vladimir Putin era ninguém menos que o presidente chinês Xi Jinping. Ou seja, uma grande aliança entre o urso cinzento russo e o urso panda chinês por conta da geopolítica.

Talentismo

O mundo em que estamos ingressando será determinado por uma mercadoria chamada talento. O historiador marxista Eric Hobsbawm falava em era do capital, dos imperialismos, dos nacionalismos e, num dos últimos livros, em era dos extremos. Estamos entrando na era do talento. A ponto de Klaus Schwab, criador do Fórum Econômico Mundial, dizer que já acabou o capitalismo, que estamos vivendo o talentismo. Pode-se dizer que o talento sempre foi importante. O problema é que sempre se identificou o talento de três formas: nos níveis individual, empresarial e nacional.

No individual era sinônimo de desenvolvimento de vocações. Para as empresas talento é core business. Aliás, core vem do latim cor que significa coração. Ou seja, para empresa o talento é o coração do negócio, cada qual em seus nichos.

Do ponto de vista dos países, o “talento 1.0” significava o mundo como foi imaginado por David Ricardo no século 19, quando dizia que os países tinham vantagens comparativas. A troca entre especialidades internacionais levaria ao que Montesquieu chamou de le doux commerce, o doce comércio em que as vontades dos consumidores no mundo inteiro seriam satisfeitas. Não é desse talento que estou falando. Aliás, o “talento 2.0” é algo que implode essas noções anteriores.

Do ponto de vista individual, o “talento 2.0” não significa mais o velho dilema entre o especialista e o generalista, mas a emergência do nexialista, ou seja, o indivíduo que tem múltiplas capacidades e é capaz de estabelecer conexões. A saber, engenheiros que saibam escrever, médicos e advogados que saibam fazer contas, poetas que entendam de métodos quantitativos. Ou seja, um animal multigenético, de múltiplas funcionalidades, que vai ganhar lugar ao sol mais do que aqueles que apostaram na verticalização de sua formação. Não estou dizendo que os especialistas não são mais importantes na nova era do talento. O que estou dizendo é que isso terá de ser complementado pelas multifuncionalidades. É a era da pós-especialização.

Mais uma vez: os Brics têm futuro? Do ponto de vista individual, estamos formando talentos para o mundo que vem por aí? Do ponto de vista empresarial, o que vamos observar serão as empresas multifuncionais, que abrangem mais de um setor, que implodiram a ideia de core business e de nicho. Vejam o caso da Montblanc, um fabricante de canetas. Hoje ninguém mais escreve à mão. Como fica a empresa? Há 15 anos eles chegaram a essa conclusão e numa reunião de planejamento estratégico alguém disse: “A saída é a redução de custos. A produção é feita na Alemanha ou na Suíça, temos de levá-la para o Vietnã ou Bangladesh. Assim o preço médio da Montblanc vai cair de US$ 130 para US$ 30. E vamos lucrar na quantidade e não na qualidade”. Alguém retrucou que isso acabaria com a marca, o que era preciso fazer era transformar o objeto caneta de instrumento de escrita em um item de colecionador. Sugeriu então esperar uma efeméride, como os 40 anos da ida do homem à Lua, contratar um artista, fazer mil canetas numeradas para serem vendidas em butiques nobres.

A empresa começou a adotar essa estratégia, que também não funcionou do ponto de vista econômico. Daí surgiu a ideia de aproveitar a experiência em produzir um objeto de luxo e diversificar. Produzir, por exemplo, relógios de luxo, gravatas ou partir para o mundo da seda fina, do couro ou para o mundo dos Spas. Hoje a receita da Montblanc oriunda de Spas é maior do que a da venda de canetas. Ou seja, ela que compreendeu a necessidade de mutação de seu DNA e continua firme e forte. De cada US$ 100 que vende apenas US$ 17 vêm das canetas.

Em relação aos países é a mesmíssima coisa. Pensar que o Brasil vai se tornar uma grande nação exportando soja, minério de ferro e outros bens de menor valor agregado é uma ilusão. Das 20 maiores economias do mundo, somos a que tem o menor coeficiente da soma de importações e exportações como fatia do PIB. E mesmo esse pequeno coeficiente é caracterizado por remessas de bens de baixo valor agregado. A China está fazendo sua mutação de DNA. Terá uma série de percalços nesse processo, mas vai se tornar uma economia maior que a dos Estados Unidos e a diáspora chinesa no mundo vai ajudar muito nesse processo.

A China está aí para ficar. Vai se tornar uma sociedade mais democrática, não tenho certeza se com mais liberdade de imprensa e mais parecida com certas sociedades ocidentais. A grande maioria de analistas acredita que maior liberdade econômica e maior prosperidade se fazem necessariamente acompanhar da demanda por mais liberdade de expressão etc. Não concordo com essa análise.

Em relação à Índia, ela pode se beneficiar muito do jogo do G-2, obtendo vantagens dos dois lados. Da mesma maneira que a China vai se tornar maior que os Estados Unidos economicamente, daqui a dez anos a Índia se tornará populacionalmente maior do que a China. Então haverá um bônus demográfico brutal na Índia com mais pessoas trabalhando. Mas será uma sociedade muito desigual, democraticamente caótica, ao contrário da China.

Em relação à Rússia, ela vai ficar presa ao dilema de possuir talvez as mais extraordinárias potencialidades que um país pode ter. Deus só abençoou dois países do mundo, Rússia e Argentina, os mais fáceis de dar tudo certo no planeta, mas curiosamente autossabotados durante gerações. A memória do poder autoritário na Rússia fornece obstáculos importantíssimos ao desenvolvimento do livre mercado e da prosperidade. E é curiosíssimo observar que é muito difícil identificar uma área do espírito humano em que os russos não sejam excelentes: música, balé, teatro, física, química, circo, esportes. São bons em tudo, menos em empreender.

E o Brasil? Aquele sentimento de “Brasil mania”, que tínhamos em 2009 ou 2010, deixou de existir. Mas não há um sentimento de “Brasil fobia”, que havia um pouco em 2001 ou 2002. O momento agora me parece de “Brasil náusea”. Náusea é um termo náutico, o desconforto de estar no mar. O desconforto existe porque, por um lado, há algo externo a você, o mar bravio, mas existe algo que tem a ver com você mesmo, ou seja, você não está conduzindo o barco de forma a enfrentar as águas revoltas. Há um elemento de dificuldade externa e outro de incapacidade interna. O lado bom da náusea é saber que seu organismo está funcionando e que ele deseja muito, tem a intenção de expelir algo que lhe é incômodo. O que queremos jogar fora?

Podemos expelir pessoas, partidos ou paradigmas. Podemos fazer uma reestruturação mais profunda da sociedade. Cá entre nós, tirar pessoas é fácil. Não é a crise política o obstáculo que nos deixa presos à armadilha do subdesempenho. Precisamos de outra coisa, algo mais estruturante. Mas para alcançar essa coisa mais estruturante precisamos pelo menos de três elementos: um é o líder, dois é a equipe e três é o bom plano.

O futuro dos Brics, como o futuro do Brasil, será o resultado de respostas satisfatórias a essa tripla questão: quem é o líder, qual é a equipe e qual é o bom plano.

Debate

LUIZ GORNSTEIN – O jornalista Clóvis Rossi afirmou que tem dúvida se a desigualdade está diminuindo no Brasil. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso. Outra coisa: o que acha do livro de Thomas Piketty [O Capital no Século XXI]?

NEY PRADO – Há alguns meses fui convidado a participar de um evento na Suíça e meu tema foi o das vantagens comparativas do Brasil em relação à maioria dos países. Referi-me exatamente aos Brics e uma das vantagens comparativas do Brasil é, em primeiro lugar, o território. É unificado, tem a maior reserva florestal, clima agradável, riquezas minerais, está livre de desastres naturais e conta com grande reserva hídrica.
Em relação à população, tem uma taxa de crescimento estabilizada, afabilidade acolhedora, é hospitaleira, com mobilidade social e tendência de ajuda humanitária. No tocante à cultura, tem uma só língua, os mesmos valores e pluralismo religioso, o que é importante para que não haja confrontos.
Do ponto de vista econômico, éramos então a sétima economia, provavelmente perderemos esse status, mas temos alta taxa de tecnologia, alto índice de exportação de soja, carne, algodão, arroz, café. Temos três colheitas anuais, um sistema bancário avançado e até uma indústria aeronáutica.
Quanto à geopolítica, estamos numa situação privilegiada. Proximidade amistosa com países vizinhos e distância dos centros de conflito. Pela teoria dos ciclos, saímos do autoritarismo e do populismo para uma democracia possível. E passamos por uma tentativa de integração regional.
Também fiz um elenco das desvantagens da Rússia, da Índia, da China e da África, inclusive dos Estados Unidos. Este país progride na área da tecnologia e do conhecimento, mas a autoestima do povo americano é muito complicada. Estão jogando gerações em guerras sem legitimidade, em que o indivíduo ou morre ou volta mutilado. Isso tem influência na natureza dos crimes que se cometem lá.
Lembro que minha análise não é do governo brasileiro, mas do Brasil enquanto país. As vantagens são enormes, nossa potencialidade é insuperável em relação a quase todos os países. Mas nosso problema é aquilo que você apontou: não temos consenso sobre o que queremos porque nosso passado político sempre foi populista e autoritário. E na medida em que fizemos a opção pela democracia ainda estamos discutindo seus conceitos. Em um país em que não há consenso básico sobre os conceitos, princípios e instituições, dificilmente se aplicarão as técnicas fundamentais para que progrida.

NEY FIGUEIREDO – Tenho um filho que é empresário na China há oito anos e também visito esse país anualmente. Uma das perguntas que quero fazer é em função do que tenho visto lá e do que ele me fala. Ele me disse que nesses oito anos sentiu que está ficando insuportável a diferença entre a abertura econômica e o comunismo. No caso da aviação comercial, por exemplo, as empresas americanas que atuam na China como Delta, American Airlines e mesmo as europeias, têm grandes dificuldades porque lá não há o controle aéreo privado, ele é do Estado. Este então interrompe os voos comerciais quando bem entende. Se vai pousar alguém do Partido Comunista, para tudo por umas três horas. A Delta já disse que se continuar assim não vai mais para a China, pois não pode parar por três horas por causa de um secretário do Partido Comunista.
Disse também que com o advento da internet, dos celulares etc., aquela proibição de se ter antena parabólica já foi para o espaço. Todo mundo tem, ele inclusive, e aquilo está virando bagunça. Então está entrando muita cultura ocidental. Ele acredita que o Partido Comunista tem procurado fazer certas concessões. Até a caça aos corruptos existe em função de dar ao povo alguma carne, porque a situação está ficando insustentável.
Gostaria, portanto, que falasse da China do ponto de vista político. Em 1500, a China era o centro do mundo, depois a Inglaterra ocupou esse papel, como depois vieram os Estados Unidos. Serão os chineses uma nação hegemônica a partir de 2020? Terá o papel que tiveram Inglaterra e Estados Unidos? Para terminar, gostaria de saber também como o senhor vê a África do Sul.

MARCOS – Primeira observação, sobre a desigualdade. Não se pode negar que vivemos um problema grave de desigualdade. A questão é se o distributivismo, a escalada da carga tributária e a realocação de patrimônio e renda por meio de instâncias governamentais é a melhor maneira de combatê-la. Se olharmos o PIB per capita medido pelo critério do poder da paridade de compra, ele é de US$ 12 mil, ainda de um país muito pobre.
Além da desigualdade, o Brasil sofre um outro problema talvez ainda maior, que na minha opinião antecede a esse, que é o modo como gera riqueza. Qual é o modelo de capitalismo competitivo que a gente vai construir no Brasil para que gere os excedentes necessários para combater a desigualdade? Quando Lula assumiu em 1º de janeiro de 2003 a economia brasileira representava 2,7% do PIB global e hoje continua com os mesmos 2,7%. Mesmo com todo aquele período supostamente virtuoso de 2004 a 2010 não ganhamos posições em relação a outros países.
Você falou também de Thomas Piketty, com a obra que já esteve mais em voga e que pouca gente leu. Eu diria que, em primeiro lugar, ele não traz uma grande explicação de como funciona o sistema econômico ou o capitalismo. O que faz é um estudo sobre o comportamento da concentração de renda, sobretudo por mecanismos de herança, nos países de economia mais madura. Não é uma obra abrangente, mas sobretudo um estudo em relação a economias mais maduras. Temas que são caríssimos para a economia contemporânea como inovação, empreendedorismo e estratégia de desenvolvimento, nada disso faz parte do livro. Então não o considero um grande manual de desenvolvimento econômico, mas um estudo sobre tendências da distribuição de renda ao longo do tempo, particularmente de concentração de patrimônio.
Em relação à observação de Ney Prado, de todas as palavras que mencionou a melhor é consenso. Consenso é algo que utilizamos para marcar um acordo de coincidência, resultante de um processo de argumentação. Encontramos pontos em comum e passamos a caminhar no mesmo sentido, ou seja, em consenso. Todos os exemplos de países que venceram paradigmas – Espanha com o Pacto de Moncloa, a Inglaterra com Margaret Thatcher a partir de 1979, a Coreia do Sul a partir dos anos 1960, o Japão e a Alemanha desde os anos 1950 – passaram por algum tipo de consenso. Primeiro, ele resulta de uma tragédia, geralmente quando um país se lança por populismo a aventuras militares, como é o caso da Alemanha e do Japão. O que vem depois é uma situação de fênix, a reconstrução a partir das cinzas. Ou então isso se dá por meio de uma outra palavra que quase significa o mesmo, que é o pacto, que significa um ato de paz. Entende-se que a situação anterior era de guerra, de conflito e o entendimento entre as partes marca a nova fase. A paz faz com que pelo menos durante um tempo se congelem demandas e a sociedade ande em consenso.
Na história do desenvolvimento nos últimos 50 anos, vemos que às vezes o consenso se dá por meio de mecanismos democráticos e às vezes se dá por sistemas em que o oxigênio da democracia é rarefeito. A mudança chinesa de 1978 para cá é também fruto de um consenso, que foram as reformas do Deng Xiaoping, em ambiente não democrático. O que aconteceu em Singapura, sobretudo nos anos 1950, também não foi por consenso democrático. O “milagre do Rio Amarelo”, da Coreia do Sul, também não. O Pacto de Moncloa talvez seja um dos exemplos mais marcantes, com um consenso absolutamente fundamental. No caso brasileiro, quem vai construí-lo? Será que a Constituição, como se encontra, ainda é a plataforma ideal para o foguete decolar? Não sei.
Em relação à China como centro do mundo, penso que não será. Ao contrário da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, se é que os Estados Unidos podem ser chamados de império, a projeção de poder da China sempre se deu de fora para dentro. Ela aglutinou para si aquilo que entendia que deveria ser seu poder. Ela não o expandiu. Essa é uma característica tão interessante que é perceptível até na arquitetura chinesa. A única construção do homem passível de ver vista do espaço é a Muralha da China. E uma muralha serve para proteger o interno do que é externo. O nome da construção mais conhecida na capital chinesa é a Cidade Proibida, aliás, o símbolo máximo do poder na China.
A imagem do poder ocidental é esta: joga-se uma pedra num tanque de água plácida, as ondas se expandem de dentro para fora. Na China é o contrário, há um instrumento de vazão e toda a água flui para um único poder. Na verdade, o que os chineses querem é ficar ricos antes de serem poderosos.
Uma observação sobre a África do Sul. “Brics 1.0” quer dizer economias que se imaginavam que seriam as grandes economias do século 21, algumas complementares e outras não. Esse era o conceito original. Pegou-se uma carona nesse conceito original para embarcar em uma dinâmica de construção institucional e de tentativa de alteração da ordem política e econômica internacional. É o “Brics 2.0” que inclui a África do Sul, uma economia 30 vezes menor que a da China. É mais ou menos do tamanho da economia do Estado do Rio de Janeiro, menor que a de São Paulo. O Brasil e a Índia ajudaram a colocá-la lá. A China também ajudou um pouquinho, mas sobretudo Brasil e Índia, que têm fixação por participar do Conselho de Segurança.

JOSEF BARAT – Na questão da liderança mundial, a China gera um poder que transcende o poder econômico ou das armas. Ao contrário dos Estados Unidos e do Império Britânico, que ofereciam ao mundo o desenvolvimento científico e tecnológico, a cultura, a arte, a música etc. Gostaria que analisasse isso a respeito da China. Outra questão é sobre a capacidade criativa diante de um regime totalitário. Como se desenvolve essa capacidade de criar e de inovar, de transformar os talentos efetivamente em condição produtiva quando há um regime que restringe a liberdade? Até que ponto a geração de talentos não está ligada à liberdade de expressão e à liberdade democrática?

PAULO LUDMER – Sem discordar de seus prognósticos, sugiro a captura das imprevisibilidades. Exemplos de imprevisibilidades: uma crise de água e energia no mundo com graves consequências, uma crise civilizatória, fruto de conflitos geopolíticos intermináveis, como a disputa entre China e Japão pelas ilhas no Mar da China Oriental. Não acredito em aquecimento climático, mas em suposição de aquecimento, porque 20% dos cientistas do mundo defendem uma tese de resfriamento. Enfim, há também imprevisibilidades climáticas. Mais: a introdução subversiva do progresso tecnológico, enfim, é uma lista infindável de imprevisibilidades.

JOÃO TOMAS DO AMARAL – Em 1996, foi publicado o Relatório Jacques Delors para a Unesco, a respeito da educação para o século 21. Foram colocados quatro grandes pilares para a educação mundial: aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conhecer e aprender a conviver ou ser, que é uma componente espiritualista. Mas já havia uma contraposição entre a formação generalista e a do especialista, que você comentou. Estamos diante de uma Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional que vem de 1996 com todos os seus problemas de aplicação. Dentro desse contexto todo e nessa visão da era do talento, como conciliar e como fazer? Como encontrar uma saída se precisamos de um processo educacional interessante e temos um muito questionável?

PAULO NATHANAEL –Notei na sua exposição que a educação vai se tornando o problema central nas preocupações com o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a realidade com que nos defrontamos não é a favor da educação, mas contra ela. A educação, por sua natureza, é um exercício de mérito. Ela deve situar as futuras gerações não só na cultura herdada, mas através dela na cultura futura. O máximo que nossa escolaridade aborda é alguma coisa da tradição, do passado. Todo o conteúdo de ensino é estabelecido em termos de passado. Com isso, a educação está em uma crise invencível.
Agora há aí esse exercício de centralização seletiva do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], que é uma grande baboseira e estamos vendo que, apesar das suas insuficiências e distorções, esse método de avaliar ganhos de aprendizagem no Brasil é, embora inapropriado, capaz de mostrar que a educação vai mal, pois os resultados foram absolutamente decepcionantes. Isso mostra que vivemos em um regime que tem muito populismo, mas não é nem de direita nem de esquerda, tampouco é anarquista, é uma colcha de retalhos em que os espertalhões conseguem estabelecer seus propósitos sem se preocupar com o futuro da nação. Então aqui está o primeiro grande problema: a filosofia hoje reinante nos meios de liderança brasileiros faz com que o mérito seja desprezível. Estupidamente acham essas lideranças que o mérito desequilibra a igualdade social. Isso naturalmente impõe o nivelamento por baixo.
Havia uma escola em São Paulo que ao final do ano premiava os melhores alunos. Então veio uma ordem expressa do governo para encerrar esse tipo de premiação, que o regime deveria ser igualitário. Realmente, sem o cultivo do talento não vamos sair do lugar. A educação brasileira só vai encontrar seu caminho quando souber conciliar a generalidade com a especialidade. Essa deveria ser a fórmula a ser perseguida por qualquer tipo de reforma educacional. Ao contrário, o que se vê é querer ensinar tudo sobre tudo e não se ensina nada.
É por isso que temos hoje no Brasil 50 milhões de analfabetos funcionais, que são os que fizeram cursos, mas não guardaram nada para uso prático. E um quarto da população é de analfabetos funcionais. A escola continua reproduzindo esse produto ano a ano e esse é nosso futuro.
Outro fenômeno que atrapalha a educação, além da mentalidade antimérito e antitalento, é a desconexão entre o que a educação pode fazer e seus resultados. Ninguém sabe no Brasil para que se educa, a não ser para dar a capacidade de ler e escrever. Está aí agora um tal de Plano Nacional de Educação que não é nem plano nem de educação. É uma declaração de intenções que na verdade não vai chegar a nada. Intenções para quê? É uma pergunta que não tem resposta.

MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – Em relação às vantagens comparativas, não sou tão otimista. Vejamos o exemplo de Portugal e Inglaterra, no século 18. Pelo Tratado de Methuen, a Inglaterra se industrializou e Portugal, sem a concorrência dos vinhos franceses, se acomodou, todo mundo ficou feliz e o país ficou atrasado. A acomodação acontece e coloco minhas dúvidas em relação àquelas vantagens. Parece que isso é válido quando se faz como a Austrália, que volta a investir em ciência e tecnologia. Não o que acontece com a maioria dos países em que as elites ou as classes dominantes se acomodam porque não sofrem concorrência.
Uma outra dúvida é em relação aos dois polos que poderemos ter no futuro, Estados Unidos e China. Vejo uma dificuldade muito grande para a China levar adiante esse modelo, com uma sociedade fechada e uma economia aberta para fora. A tendência é que isso se transforme em conflito futuro. Essa tendência também não é menor nos Estados Unidos, pois a concentração de capital e renda gera uma desigualdade muito grande, a pobreza não está sendo resolvida e o conflito também vai aparecer mais tarde.

CLÁUDIO CONTADOR – Atualmente tenho até dúvidas sobre até onde esse conceito dos Brics começa a perder sentido, principalmente na hora em que se inclui a África do Sul, com seus problemas dificílimos. A economia e a política lá estão separadas, esta, nas mãos dos nativos e a outra, nas dos brancos. Isso aí não vai dar certo. Vou contar um pequeno fato. Nos anos 2000, eu estava em uma reunião em que havia alguns indianos e em dado momento começaram a falar dos Brics. Um indiano que morava já há muito tempo nos Estados Unidos me disse: “Não sei por que vocês incluem a Índia no meio dos Brics. Vocês não conhecem os problemas que a Índia tem”. E começou a desfiá-los. Então essa questão de bem ou mal é muito relativa. Daqui a pouco será Brics e mais alguma coisa, como a Argentina.