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Sebo nas canelas
Por: MARCELO SANTOS
Há quem diz que a corrida de rua é uma metáfora da vida. Nunca desistir, especialmente quando o projeto vale a pena. Foi o que sentiu a professora universitária Patrícia Garcia Costa, 39 anos, assim que calçou o par de tênis usado recebido do viúvo de uma amiga para um treino de corrida em Santo André, cidade do ABC paulista. No mesmo instante brotaram lágrimas de saudade e admiração. Não havia passado muitos dias desde que “Lita”, como os amigos chamavam a analista de sistemas, corredora e ciclista, havia sido assassinada com seis tiros durante um assalto em Guarulhos, na Grande São Paulo, em julho passado, enquanto pedalava com o marido na rodovia Fernão Dias. Companheira de muitas corridas, principalmente em percursos montanhosos, como a conhecida prova A Rainha da Montanha, Patrícia herdou de Lita o que considerou de suma importância para a sua jornada como corredora: “A vontade de ir além, de ser cada dia mais forte”.
Foi há seis anos, numa academia do centro de São Paulo, que a professora começou a praticar corrida com outros amigos. “A Lita sempre me incentivava. Ela era uma mulher pequenina e muito forte e dizia que, tal qual ela, eu conseguiria correr também”. A amizade saiu da academia e ganhou as ruas. A primeira prova do grupo de amigos foi a Maratona Pão de Açúcar de Revezamento. Formaram uma equipe, batizada de De Bem com a Vida, e inscreveram-se na corrida. “Todos os anos participávamos e comemorávamos nossa decisão de competir com bolo e outros quitutes”, conta Patrícia.
Desde então ela contabiliza mais de 70 corridas de rua e em circuitos de aventura pelo estado de São Paulo; destacou-se em quatro delas, conseguindo segundas e terceiras colocações. “Foi na minha categoria. Tenho muito orgulho das minhas medalhas”, sorri.
A professora faz parte de um contingente estimado em 30 milhões de praticantes de corrida no mundo e mais de 4 milhões no Brasil. Número considerado exagerado por alguns especialistas, mas defendido pela maioria dos promotores de corridas de rua, com variações que totalizam até 6 milhões de atletas no país. “O crescimento das corridas em território brasileiro é algo muito positivo: elas ajudam a combater o sedentarismo além de tornar as pessoas mais felizes. E, ainda por cima, gera um excelente mercado de trabalho para os profissionais de saúde, negócios para os fabricantes e vendedores de material esportivo, e prestação de serviços a tantos outros”, diz Nelson Evêncio, 44 anos, presidente da Associação dos Treinadores de Corrida de São Paulo (ATC), uma entidade que reúne cem profissionais, representantes das principais assessorias esportivas paulistas. De acordo com o professor de educação física – que há duas décadas trabalha como treinador, acompanhando muitos de seus assessorados em viagens pelo mundo, como nas tradicionais maratonas de Amsterdã, Atenas, Berlim, Chicago, Nova York, Paris e muitas outras –, são aproximadamente 200 assessorias distribuídas pelo estado, especialmente na cidade de São Paulo.
Evêncio treina corredores em locais como o campus da Universidade de São Paulo (USP), na zona oeste da capital paulista, e no Parque Ibirapuera, zona sul. “Na assessoria trabalhamos com empresários, executivos, profissionais liberais e pessoas que participam das principais corridas no Brasil e no exterior. Utilizamos a corrida como um caminho para promover saúde, bem-estar e a realização de sonhos. Não temos atletas profissionais no momento, mas já tivemos”, conta, estimando em mais de um milhão a quantidade de pessoas que tem a corrida como seu primeiro esporte no país.
Os negócios do running
Segundo a Federação Paulista de Atletismo (FPA), a prática de corridas cresce todos os anos desde 2001, quando a federação passou a registrar essa evolução. Em 2014 houve um avanço de 11,75% em relação a 2013 no número de provas realizadas com alvará, ou seja, com autorização das prefeituras dos locais dos eventos. No total foram 361 corridas no estado com 653 mil participantes. Em 2013, elas somaram 323 com 566 mil atletas. Se levado em conta o número total de provas, inclusive as consideradas irregulares pela federação por não terem alvarás, somam 598 corridas apenas no estado de São Paulo. Como as provas acontecem aos sábados, domingos e feriados, é possível estimar que todos os fins de semana têm pelo menos dez provas, a maioria na capital. A principal prova do calendário, a Corrida Internacional de São Silvestre, chegou à 91a edição, em 2015, com expectativa de 30 mil inscritos.
Com preços de inscrições que, muitas vezes, ultrapassam os três dígitos, realizar uma prova de rua exige também boa saúde financeira dos organizadores. Somente na cidade de São Paulo, por exemplo, “foram autorizadas 129 provas em 2014 e 169 em 2015, e o calendário para 2016 prevê 183 corridas pelas ruas da metrópole”, estima Nelson Gil, coordenador de Corridas de Rua da Secretaria de Esportes, Lazer e Recreação da prefeitura paulistana. São quase quatro provas por semana, reunindo uma média de 4 mil participantes em cada uma delas.
Para obter o alvará da prefeitura paulistana é preciso estar no calendário municipal e dispor da liberação das vias pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), na capital. Além disso, é necessário recolher uma série de taxas: R$ 5 mil relativos ao Imposto Sobre Serviços (ISS) para a municipalidade e R$ 3,4 mil para a Federação Paulista de Atletismo. Se houver a execução de música, estão previstos outros R$ 2,5 mil para o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), e R$ 1,3 mil para a Coordenadoria de Atividade Especial e Segurança de Uso (Segur). E, por fim, R$ 30 mil para a CET. A locação de espaços como as arborizadas ruas do campus da USP, custa R$ 120 mil, assim como no Sambódromo do Anhembi. No autódromo de Interlagos o desembolso é de R$ 80 mil, o mesmo valor praticado pelo Jockey Club de São Paulo.
A arena é outro espaço que consome uma boa quantidade de recursos, dependendo da sofisticação da prova. A área de concentração de atletas para a largada e chegada da corrida de rua geralmente disponibiliza informações sobre o percurso da prova; abriga atividades de lazer e entretenimento, palco e postos de massagistas, além das frutas; dos serviços de hidratação e das entregas dos tradicionalíssimos kits com bolsas, camisetas e chip. Há ainda a estrutura para atendimento médico e, claro, o pódio com medalhas e troféus.
Os negócios que envolvem as corridas começam com bastante antecedência; todavia, os valores ligados ao chamado mercado do running no país é incerto. A Associação pela Indústria e Comércio Esportivo (Ápice) entidade que reúne as principais empresas do setor como a brasileira Alpargatas, que trabalha com as marcas Mizuno, Topper e Rainha; a Nike; a Adidas; a Asics; a Puma e outras, não disponibiliza o faturamento com os tênis e outros acessórios de corrida, mas é possível ter alguns indicativos. De acordo com o Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), a produção e a importação de roupas e calçados esportivos movimentou no país R$ 15,11 bilhões em 2014, montante superior em 6,8% ao registrado em 2013.
A Caixa Econômica Federal (CEF), uma das pioneiras em patrocínios de corridas de rua, empenhou R$ 62 mil para a promoção do esporte em 2001. Em 2013 o investimento saltou para R$ 48 milhões, com 219 corridas promovidas em todo o país. No ano seguinte foram R$ 54 milhões em 228 provas e estima-se que em 2015 o banco federal custeie R$ 63 milhões em pouco mais de 200 competições patrocinadas.
Alto poder aquisitivo
Os investimentos abrem oportunidade para inúmeras empresas e profissionais que buscam seduzir corredores em todas as classes econômicas. São serviços como blogs, emissoras de rádio, fotógrafos, portais, revistas especializadas e personal trainers que atendem tanto presencialmente, correndo junto pelas ruas e parques, quanto através da internet. Há ainda agências de viagem, fornecedores de alimentos e suplementos e uma infinidade de outras ações. A consultoria Crowe Horwath perfilou o corredor brasileiro. Os dados estão um pouco defasados, são de 2009, mas já apontavam um cenário promissor.
De acordo com a empresa, os corredores de rua demonstravam ter alto poder aquisitivo: 60% ganhavam mais que R$ 5 mil mensais e 75% tinham nível superior. A maioria dos atletas na amostragem era do sexo masculino e 70% deles estavam na faixa etária entre 35 e 59 anos. O relatório indicou ainda que o volume de gastos de um corredor era, em média, de R$ 5 mil por ano na aquisição de produtos, mensalidade de assessoria esportiva, inscrições em provas, compra de alimentos, bebidas e suplementos. E esse número podia ser ainda maior quando o atleta viajava para participar de provas em outras cidades e até mesmo no exterior.
O jornalista e escritor Sérgio Xavier Filho, 49 anos, tem esse perfil. Corredor experiente, com 11 maratonas e incontáveis provas de rua, o esporte e sua profissão se misturam desde que, em 2008, a Editora Abril, onde ele trabalha chefiando o núcleo editorial que produz as revistas “Men’s Health”, “Playboy” e “Women’s Health”, trouxe ao Brasil a “Runner’s World”, tradicional revista especializada em corridas. “A partir dali eu, que já corria, consegui unir o útil ao agradável”. As revistas deixaram de pertencer à editora no último ano, porém Xavier continuou a empregar sua habilidade em contar histórias a favor das corridas. Ele é blogueiro, comentarista esportivo na emissora de rádio Band News FM e publicou três livros: Correria – Histórias do Universo da Corrida, Operação Portuga – Cinco Homens e um Recorde a Ser Batido e Vidas Corridas, este último lançado no segundo semestre de 2015 e que conta a história de executivos e maratonistas. “Há estudos nos Estados Unidos que demonstram que, quando há uma crise econômica e desemprego, o número de corredores aumenta. As pessoas usam a corrida para se ajudar. Isso é um fato. A corrida também tem outros fatores, e o mais conhecido é o da superação, mas eu acho que a principal vantagem, que percebi quando escrevi Vidas Corridas, é que ela contribui para as pessoas se organizarem. O corredor não tem como treinar para uma maratona sem organizar sua rotina, colocar metas, a curto e longo prazo, uma coisa que tem tudo a ver com o trabalho do executivo”, pondera. Para o jornalista, apesar do grande crescimento das corridas no início dos anos 2000, o esporte ainda deve evoluir e atrair muito mais pessoas.
É o que acredita também uma das dez maiores organizadoras de provas no país, a Iguana Sports, que prevê uma expansão de cerca de 40%, até o ano de 2020, no número de praticantes da corrida de rua. “Anualmente, temos 25 provas e mais de 150 mil inscritos. E elas acontecem, em sua maioria, nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas dispomos também de circuitos em Brasília, no nordeste e no sul do país”, relata Daniel Krutman, responsável pelo marketing da Iguana, que já realizou mais de 300 provas e reuniu 600 mil inscritos em oito anos de operação. “Trabalhamos com dois modelos de corridas: as nossas (como a Athenas, Wrun e Venus) e as das marcas esportivas, bens de consumo e outras empresas ou entidades que nos contratam para organizá-las”, esclarece Krutman, que é também corredor e articulista do portal Sua Corrida (www.suacorrida.com.br), editado pela empresa. “Percebemos um crescimento médio anual de 20% no número de corridas e inscritos e temos mais de 5 milhões de visitantes em nosso site”.
Turismo das maratonas
Pioneira no país no tocante às provas, a Corpore (Corredores Paulistas Reunidos) é o maior clube do gênero da América Latina. Fundada em 1982, ela ganhou vida após o regresso dos Estados Unidos dos irmãos Octávio José e Flávio Aronis, e dos amigos Fernando Nabuco e Victor Malzoni Junior, que foram disputar a Maratona de Nova York. Retornaram convictos de que era plausível criar no país uma associação que, entre outras coisas, organizasse provas com o mesmo nível da norte-americana. E a primeira delas aconteceu no campus da USP, em 15 de maio de 1982, e dela participaram 686 corredores. “A Corpore se diferencia dos demais players porque é a única entidade realizadora de eventos. Somos corredores aficionados pelo esporte e criamos uma entidade com a missão de divulgar a corrida de rua e realizar provas com qualidade”, diz Octávio, vice-presidente da Corpore.
Desde então o número de associados e provas não parou mais de crescer. Os números começaram a ser contabilizados em 1994, ano em que 4,3 mil pessoas correram em suas provas. Vinte anos depois, em 2014, esse número chegou a 58,3 mil. Passados alguns anos, com a realização de provas que mobilizaram muitos participantes, a associação reúne, anualmente, mais de 130 mil pessoas pelas ruas do país. Porém, o que impressiona é o número de membros do clube de corredores. Em 1994, eram 3 mil. Em 2004, 70 mil e em 2014, mais de 450 mil. As provas são realizadas em 22 cidades de 11 estados.
A marca, no entanto, não impressiona o diretor Octávio José Aronis. Ele acredita que após ajudar a popularizar o esporte nas ruas, apoiar e investir em atletas, como o campeão olímpico Joaquim Cruz, que recebia apoio de um grupo de sócios da Corpore para treinar no estado americano do Colorado – ele venceu as Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, nos 800 metros, a primeira, e única, vitória de um brasileiro numa prova de pista do atletismo –, chegou a hora de repensar os caminhos da associação. “Passamos por uma crise existencial. Chegamos a ser líderes de mercado; todavia, as coisas mudaram. Certamente perdemos a liderança e temos conversado sobre isso porque a missão da Corpore foi realizada. Fizemos nossa lição de casa.”
Um mercado que está aquecido é o do chamado maraturismo ou turismo de maratona. Na última edição da Maratona da Disney, por exemplo, mais de 800 brasileiros estavam inscritos. Já a última edição da Maratona de Buenos Aires, na Argentina, teve presença maciça verde e amarela. Dos estrangeiros inscritos, 52% eram brasileiros. Em agosto de 2015, a Forma Turismo, líder em viagens de estudantes, lançou um novo empreendimento, a TravelRun, para atuar no segmento de corredores amadores e aumentar sua fonte de receitas. A empresa planeja que as viagens com corredores representem 10% do total dos negócios da agência em um ano.
O nicho, porém, foi desbravado pela pioneira Kamel Turismo, agência que lidera a venda de pacotes para maratonistas ao exterior. Tudo começou em 1988, quando a empresa conseguiu autorização do clube de corredores de Nova York para comercializar 30 pacotes aos brasileiros. “Vendemos tudo e a relação com os representantes da maratona deu tão certo que fomos qualificados como uma das agências oficiais, no mundo da prova”, conta Elisabet Olival, diretora da Kamel, que hoje possui cinquenta produtos, como a África do Sul, Berlim, Boston, Muralha da China, Patagônia, Paris, Tóquio e muitos outros destinos ao redor do planeta. Apesar do pessimismo em relação ao cenário econômico atual, a agência comercializa cerca de 3 mil pacotes de viagem por ano. “Não sabemos como será mais adiante, certamente haverá uma grande queda no Brasil. Todavia, há um forte investimento das grandes marcas esportivas na criação de um circuito de corridas pelo mundo.”
Uma forma de viajar pode ser, justamente, correndo. O Mova Mais, primeira startup do Brasil de incentivo à prática esportiva em troca de recompensas, criou um programa baseado no monitoramento. “Os pontos são cedidos em função do engajamento do atleta. O Mova Mais monitora as ações de caminhada ou corrida, ciclismo e atividade em cadeira de rodas”, explica Fernando Aquino, CEO da empresa. O acúmulo de pontos é trocado em programas de fidelidade, que podem ser usados na compra de viagens, serviços e produtos. Segundo ele, 60 mil atletas já se cadastraram no programa, que utiliza outros aplicativos de celulares, como RunKepper, Map My Run e Strava, monitorando o treino e transferindo os dados automaticamente para o Mova Mais.
Adepto de viagens, o psicanalista paulistano Villy Fomin já disputou vinte meias maratonas, 12 maratonas e uma ultramaratona de 104 quilômetros através do deserto do Saara, no norte da África, durante três calorentos dias. “Não sei dizer quanto já gastei com as corridas, mas não me arrependo”, garante ele, que iniciou a prática do esporte em 2003 assim que a balança começou a roçar os três dígitos. O que começou como uma necessidade de condicionamento físico, virou algo que, no caso de Fomin, contempla várias definições. “É um processo terapêutico, um momento de solitude onde converso comigo mesmo, penso na vida, tenho boas ideias e vejo a cidade de ângulos diferentes. Na corrida as pernas trabalham e a mente também. Correr é um ato de superação”, filosofa.