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Uma casa para chamar de minha

Susana: “Choro muito à noite quando algum deles está para ir embora” / Foto: José Paulo Borges
Susana: “Choro muito à noite quando algum deles está para ir embora” / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Tânia Maria Barbosa Brito, 51 anos, e Susana de Souza Moreira, 36, moram mais de mil quilômetros de distância uma da outra. A residência da primeira fica em São Bernardo do Campo, Região Metropolitana de São Paulo; a da segunda, em Porto Alegre, a capital gaúcha. O imóvel onde elas residem têm vários quartos, cozinha espaçosa, ampla sala de jantar e estar, com aparelhos de tevê de tela grande e computador. E bichinhos de pelúcia enfeitam algumas camas. Os carros estacionados nas ruas ou guardados nas garagens revelam que tanto num quanto noutro caso, os bairros são de classe média. De manhã, logo cedo, nas casas de Tânia Maria e Susana instala-se um pequeno burburinho. São crianças se arrumando para a escola. Por volta do meio-dia, o cheiro de comida caseira preparada para a turminha toma conta das duas cozinhas. À noite, depois que os pequenos vão dormir, o sossego impera nas moradias em São Bernardo e Porto Alegre.

Não está escrito na fachada, mas aqueles não são lares como tradicionalmente conhecemos. São casas-lares, residências destinadas exclusivamente ao acolhimento de crianças e adolescentes (até 18 anos de idade) que tiveram de ser retirados do convívio de suas famílias biológicas, entre outros motivos, por terem sido vítimas de violência doméstica, abusos ou exploração sexual, ou, simplesmente, porque foram abandonados. Existem centenas de casas-lares como estas espalhadas por todo o país. Por “medida de proteção” determinada pelo Estado brasileiro, milhares de crianças e adolescentes moram provisoriamente nesses locais, aos cuidados de mulheres como Susana e Tânia Maria. As pessoas talvez não saibam, mas elas têm carteira assinada e gozam de todos os direitos trabalhistas, uma profissão em tempo integral e com dedicação exclusiva aos recolhidos, e que ainda é pouco conhecida dos brasileiros. Susana e Tânia Maria são mães sociais.

Susana não imaginava o tanto que aquela visita do padre Délcio Kunzler iria mudar a sua vida. O ano era 2007 e ela morava na cidadezinha de Itapiranga, de 16 mil habitantes, a 740 quilômetros de Florianópolis, em Santa Catarina, com o marido Luís e os dois filhos do casal, Vander Luan e Lucas. Luís trabalhava de borracheiro e ela era funcionária de um frigorífico na seção de embalagens. “Uma amiga que já trabalhava como mãe social me falou sobre seu trabalho e disse que do jeito que eu cuidava da minha família eu tinha o perfil para a profissão”, conta Susana. Recomendada, certamente, por essa conhecida, o padre Délcio viajou desde Porto Alegre e foi bater na porta de Susana. O religioso contou a ela que trabalhava no Abrigo João Paulo II, uma instituição beneficente católica, com raízes em Verona, na Itália, que mantém mais de 20 casas-lares nas cidades de Alvorada, Porto Alegre e Viamão. Esclareceu, também, quais eram as responsabilidades da mãe social, e convidou a ela e ao marido para conhecerem o abrigo na capital gaúcha. Uma frase do padre ficou martelando na cabeça de Susana: “Disse que se Deus tinha me escolhido, não adiantava me esconder, nem no fundo do mar, porque ele iria me buscar.”

“Aquilo me assustava”

O coração de Susana bateu mais forte e ela ficou sem reação; todavia, a decisão não precisava ser imediata, ela tinha algum tempo para pensar. “Não podia jogar tudo para o alto e ir embora para Porto Alegre, uma cidade grande, para cuidar de crianças que nunca havia visto. Aquilo me assustava”. Durante dois meses Susana e Luís pensaram na proposta, até que finalmente o casal aceitou o desafio que, por sinal, era duplo, pois o Abrigo João Paulo II adota o sistema de “pais sociais”, ou seja, a responsabilidade pela casa-lar é tanto do marido quanto da esposa. “Fizemos uma entrevista e depois passamos por um estágio numa instalação do gênero, para conhecer a rotina e a realidade que nos esperava”. Em outubro de 2007, Susana começou sua vida como mãe social, e logo com a tarefa de cuidar, dia e noite, de oito menores. A primeira coisa que chamou a sua atenção foi o comportamento meio estranho de um de seus novos “filhos”. Ele estava sempre assustado e comia escondido pelos cantos. “O ‘Samuca’ havia passado tanta fome que não acreditava que agora podia comer à vontade”, ela relembra.

Susana conta que as crianças, além de estudar, têm tarefas domésticas a cumprir. “Tem uma escala para lavar a louça, por exemplo, e eles devem manter os quartos sempre em ordem”. Como todas as mães, uma das maiores preocupações de Susana é quando os “filhos” atingirem a adolescência. “Os meninos vão quer ir atrás de namoradinhas e a gente vai precisar impor alguns limites”. Segundo ela, o tempo de convívio com os pequenos numa casa-lar varia de acordo com a história de cada um. Uns podem retornar à família de origem assim que os pais voltarem a ter condições de cuidar deles. Outros podem ser adotados. Mas há também os que ficam até completar 18 anos. Prevendo casos assim, é fundamental, segundo ela, que os adolescentes sejam colocados logo no mercado de trabalho.

A mãe social diz que está satisfeita com a profissão que abraçou e que tem plena consciência de que seu papel é essencialmente de cuidadora. “Nada no mundo substitui o afeto e o amor da mãe verdadeira”. Mesmo assim, segundo ela, quando as crianças precisam ir embora, a hora da separação é sempre dolorida. “É difícil se separar das crianças, pois acabamos nos tornando uma família. Choro muito à noite quando algum deles está para ir embora”.

Antes de exercer a atividade com carteira assinada, Tânia Maria já era mãe social. Mas não sabia. Baiana de Feira de Santana, ela nunca encontrou tempo para trabalhar fora de casa, pois estava sempre envolvida com a educação dos irmãos menores, nove ao todo. Mais tarde, já em São Paulo, foi cuidar dos sobrinhos para que o irmão e a cunhada pudessem trabalhar. “Sempre gostei de cuidar de crianças”. Afinal foram mais de 20 anos ajudando a encaminhar os irmãos e os sobrinhos. Um belo dia eles cresceram, e Tânia Maria se viu às voltas com um sério problema: “O que fazer para ajudar novamente a quem precisa?”. Foi aí que soube que a ONG Aldeias Infantis SOS Brasil estava contratando mães sociais para trabalhar em São Bernardo do Campo. A primeira coisa que passa pela cabeça de muita gente é que mãe social e “crecheira” (pessoa que cuida das crianças em creches) são a mesma coisa. Com Tânia Maria não foi muito diferente. Mas quando lhe disseram que ser mãe social era um desafio e tanto, que envolvia deixar de lado coisas importantes da vida pessoal para cuidar da vida de crianças e jovens com histórias complicadas, ela não teve dúvidas: “Era aquilo que eu queria.”

E já se foram quase dez anos como mãe social. Durante esse tempo, pelo menos 30 crianças e adolescentes passaram pela casa-lar sob os cuidados de Tânia Maria. “São muitos relatos, vários deles bem tristes, mas quando penso que consegui livrar muitas crianças das drogas, é uma vitória”. Uma grande alegria para ela é abrir a porta para receber a visita de “filhos” que se tornaram adultos e foram embora. “Um deles esteve há pouco tempo aqui em casa. Lembro-me como era tímido quando chegou, mas muito estudioso. Hoje trabalha como garçom e revelou que seu sonho é cursar a faculdade de nutrição”.

Na casa-lar em São Bernardo, Tânia Maria atualmente cuida de quatro meninas, entre 10 e 18 anos de idade. Uma delas apresenta um déficit mental e por isso sempre recebe carinho especial. “Outro dia ela foi eleita princesa na escola onde estuda. Precisava ver a alegria quando chegou em casa trazendo na cabeça uma coroa feita de papelão”, encanta-se a mãe social. O relógio marca meio-dia. Outra das quatro “filhas” de Tânia acaba de chegar e o almoço já está esperando por ela na mesa.

“Mãe temporária”

“Cada vez que uma mãe social vai embora, um novo vínculo é rompido, colocando a criança em contato com mais um abandono em sua história”. A afirmação é das psicólogas e professoras Paula Cristina Nogueira e Liana Fortunato Costa, autoras de um artigo acadêmico intitulado “A Criança, a Mãe Social e o Abrigo: Limites e Possibilidades”. Neste estudo, elas refletem sobre a realidade de menores de zero a três anos de idade que vivem numa casa-lar. Durante a pesquisa, Paula Cristina e Liana observaram que muitas mães sociais ficavam alguns meses na instituição e logo eram substituídas ou remanejadas. Isso acaba, inevitavelmente, por reeditar a experiência de separação vivenciada pela criança não só em relação à sua mãe biológica e parentes, mas também pelas profissionais responsáveis por elas quando institucionalizadas (isto é, quando moram numa instituição de acolhimento, longe da família), observam.

As psicólogas comparam a privação materna nos primeiros anos de vida a uma queimadura de lenta e dolorosa cicatrização. “Pessoas que atuam junto a crianças em situação de abandono não podem ser confundidas com mães ou professoras. São profissionais responsáveis pelo cuidado e pela garantia da saúde física e psíquica de crianças extremamente fragilizadas, em função de suas histórias de vida, que necessitam do máximo de estabilidade e de qualidade no cuidado que recebem”, pontuam Liana e Paula Cristina. Elas reconhecem o esforço e a dedicação das mães sociais com as quais tiveram contato, porém, enfatizam: “Sabe-se que crianças muito pequenas exigem grande carga de afeto, atenção e energia. Ao tratar de crianças com histórico de abandono, é preciso considerar, a carga torna-se ainda maior, exigindo do adulto uma disponibilidade que pode estar além de suas possibilidades devido ao número de crianças para cuidar, e mesmo à falta de preparo para exercer tal função.”

A profissão de mãe social é regida pela Lei n. 7.644, editada em 18 de dezembro de 1987. A atividade surgiu na mesma esteira de programas de políticas públicas e sociais deflagrados naquela oportunidade, como tentativa de resposta para algumas demandas que incomodavam a consciência nacional – mas que ainda prevalecem – como, por exemplo, os maus tratos e o abandono de crianças e adolescentes. Assim, não por acaso, o “social” foi incorporado ao nome da profissão então criada. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.971/04 que institui a figura do pai social, com as mesmas características, direitos e deveres atribuídos às mães sociais. O projeto, apresentado há mais de dez anos, aguarda parecer do relator na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público.

As mães sociais trabalham em instituições sem finalidade lucrativa, ou de utilidade pública, conveniadas com o poder público, como ONGs e entidades religiosas, e também em instituições oficiais. As atribuições básicas das mães sociais (há quem prefira a designação “educadoras residentes”), segundo a lei, são as seguintes: “Propiciar o surgimento de condições próprias de uma família, orientando e assistindo os menores colocados sob seus cuidados; administrar o lar (casa-lar), realizando e organizando as tarefas a ele pertinentes; dedicar-se, com exclusividade, aos menores e à casa-lar que lhes forem confiados.” Isso é o que está escrito. Na prática, mãe social é uma mulher que desempenha o papel de “mãe temporária” de crianças que foram retiradas das famílias de origem devido a abandono e maus tratos, situações que vieram à tona, muitas vezes, após denúncias de vizinhos e parentes.

São exigidos das candidatas a mãe social o curso de primeiro grau ou equivalente, idade mínima de 25 anos, sanidade física e mental, aprovação em treinamento e estágio, boa conduta social e aprovação em teste psicológico específico. Como todo profissional, a mãe social tem direito a folgas semanais e férias, sendo que nessas ocasiões as tarefas que realizam nas casas-lares serão executadas por mães substitutas. O trabalho dessas brasileiras de bom coração é monitorado permanentemente por equipes técnicas especializadas (psicólogos e assistentes sociais) contratadas pelas instituições dedicadas ao acolhimento de menores. No Abrigo João Paulo II, por exemplo, entre as funções da equipe técnica consta, de acordo com a coordenadora da instituição, Camila Monteiro, “investigar os casos e propiciar, sempre que possível, aproximações e revinculações familiares, oficializando periodicamente ao Juizado da Infância e da Juventude a situação de cada caso”.

Trabalho fora

O atendimento numa casa-lar é realizado em tempo integral e o objetivo, segundo a lei, é proporcionar um ambiente doméstico saudável e protegido para até dez crianças e adolescentes de zero a 18 anos de idade. A responsabilidade pelo encaminhamento dos menores para a instituição é de juizados de infância e juventude e conselhos tutelares. Os menores ficam aos cuidados das mães sociais até poderem voltar aos lares de origem, ou serem adotados. Ao completar 18 anos, eles devem deixar a moradia.

O menor quando entra no mercado de trabalho, como estagiário, aprendiz ou empregado, algumas providências são realizadas, tais como, o depósito de até 30% do valor do salário em uma caderneta de poupança em seu nome. Esse dinheiro ele só poderá retirar depois que completar 18 anos.

Em 15 de junho de 2011, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou uma resolução com objetivo de regulamentar e uniformizar as fiscalizações realizadas nas entidades e nos programas de acolhimento de crianças e adolescentes existentes no país. A partir de então, de tempos em tempos, um pequeno exército de promotores de Justiça na área da infância sai às ruas com a missão não só de inspecionar, mas, também, avaliar os serviços prestados pelas instituições que cuidam dos menores “em situação de risco”. Os promotores monitoram desde instalações físicas, adequação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e aos programas oficiais voltados ao menor, até o perfil e a situação familiar das crianças e adolescentes acolhidos nas instituições. O resultado desse trabalho é reunido e publicado num amplo documento intitulado “Um Olhar mais Atento aos Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes no País”. Trata-se, segundo o CNMP, “de importante ferramenta de apoio à execução e aperfeiçoamento das políticas públicas para a infância e a adolescência desenvolvidas no Brasil”.

O relatório do CNMP editado em 2013 mostra que, na época, milhares de crianças e adolescentes (o documento não especifica o número exato) viviam em 511 casas-lares espalhadas pelo país, e que o afastamento do convívio familiar tinha diversos motivos – com ênfase em maus tratos, abuso sexual e abandono. O Paraná era o estado com maior número de casas-lares (169), seguido por São Paulo (74), Minas Gerais (47), Santa Catarina (40) e Rio de Janeiro (32). Acre, Piauí e Roraima não contavam, até aquele ano, com nenhuma entidade que oferecesse acolhimento do tipo.

Com relação à idade, os dados coletados pelos promotores de Justiça revelaram a presença expressiva nas casas-lares de meninos entre 6 a 11 anos e meninas entre 12 e 15 anos. Os promotores constataram também, a existência de menores com as mais diferentes condições, tais como: adolescentes grávidas ou com filhos, ameaçados de morte, deficiência física, dependência química (drogas), em situação de rua, portadores de doenças infectocontagiosas e transtorno mental. A pesquisa apurou que “a falta de condições materiais para cuidar do menor deficiente dentro da casa de origem é uma das principais causas para o encaminhamento ao serviço de acolhimento”.

A negligência dos pais ou responsáveis (mais de 80%), a dependência química ou alcoolismo dos pais ou responsáveis (mais de 80%) o abandono dos pais ou responsáveis (em torno de 77%), a violência doméstica (próximo de 60%) e o abuso sexual praticado pelos pais ou responsáveis (em torno de 45%) são, segundo os promotores de Justiça, as principais causas para o afastamento dos menores de seus lares. Eles destacaram que a soma ultrapassa 100% “porque muitas causas são citadas mais de uma vez”. Outra indicação importante: ao redor de 35% dos menores permanecem nas casas-lares por tempo superior ao máximo recomendado pelo ECA, que é de dois anos. Dado considerado positivo pelos pesquisadores é o tempo de permanência no trabalho das mães sociais. Conforme a pesquisa, em 52% das unidades inspecionadas não tinha havido substituições, e em outras 28% as trocas aconteceram no período de um a dois anos.