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Sopro de engenho e sensibilidade

Bel Pedrosa
Bel Pedrosa

O PROFESSOR, HISTORIADOR E CRÍTICO LITERÁRIO ALFREDO BOSI DEIXA OBRA FUNDAMENTAL PARA ENTENDER A CULTURA BRASILEIRA

 

Um dos grandes pensadores e humanistas brasileiros do século 20 atravessou boa parte da vida em sala de aula, lecionando para as gerações que passaram pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Fiel ao ofício, a atividade docente foi central no caminho percorrido pelo professor, ensaísta, historiador e crítico literário Alfredo Bosi, que morreu em 7 de abril passado, aos 84 anos, em decorrência da Covid-19.

Outros pontos focais em sua carreira foram a intensa dedicação às ações sociais, políticas e ambientais e a constante luta em favor da democracia e pela justiça social. Isso tudo faz de Bosi, ocupante da cadeira número 12 da Academia Brasileira de Letras, exemplo de intelectual que se engajou com coragem nas causas de seu tempo. Uma trajetória de dimensões ímpares, iniciada na mesma USP, em 1958, quando se graduou em Letras Neolatinas. Na sequência, seguiu para a Itália, país de seus antepassados, para estudar estética e filosofia da Renascença na Università degli Studi di Firenze.

De volta a São Paulo, em 1962, retomaria o ensino de literatura italiana. Em 1964, obteve o doutorado com a tese Itinerario della Narrativa Pirandelliana e, em 1970, a livre-docência (com tese intitulada Mito e Poesia em Leopardi). Nesse mesmo ano, passou a lecionar literatura brasileira na USP, dando início a percurso singular na crítica literária. É dessa época, ainda, o lançamento do clássico História Concisa da Literatura Brasileira, atualmente na 52ª edição (ver Lições do mestre), obra essencial na formação em Letras no país, e que ele publicou com apenas 34 anos.

 

IDEIAS ORIGINAIS

“Bosi pertence a uma geração de pensadores que, a partir de seus saberes específicos, conectaram duas temporalidades”, escreveu Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo e ex-aluno do crítico, em artigo publicado em homenagem ao professor no jornal Folha de S.Paulo de 9 de abril deste ano.

“Numa ponta, reluz o Brasil do modernismo dos anos 1920 e dos grandes intérpretes das décadas de 1930 e 1940, notadamente Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, que estabeleceram os alicerces para a compreensão de nossa contraditória modernização. Na outra ponta, temos a nação do século 21, ainda na busca por, enfim, assentar sua experiência democrática, que reconhece a diversidade cultural como patrimônio, mas vacila em superar a mácula da desigualdade – mácula que tem no âmbito educativo um de seus mais enfáticos sintomas”, analisou.

Alfredo Bosi durante a conferência Leitura de Infância, de Graciliano Ramos, na ABL, em 25 de março de 2014

 

Na opinião da professora emérita da FFLCH-USP Walnice Nogueira Galvão, o Brasil de hoje, marcado pela polarização ideológica e grande intolerância para o debate cultural, evidencia o quanto o legado de Bosi é imensurável. “Sem dúvida, trata-se de um momento de perigo para as instituições democráticas. É num tal lance de risco que mais faz falta um intelectual do calibre de Alfredo Bosi, tornando sensível essa lacuna nas fileiras progressistas”, destaca.

Walnice ressalta os aspectos que, em sua visão, fazem de Bosi um luminar dos tempos atuais: “O ponto de maior investimento humanista pode ser encontrado nas perquirições efetuadas por Alfredo Bosi quando abordou os mais altos voos líricos da poesia universal. Em sua obra, na qual nunca faltou como um moto-contínuo o ajuste de contas com nosso passado colonial, fonte de tamanha iniquidade social, esses encontros com a poesia afloram como uma homenagem à potência da literatura, na qual valores maiores são resguardados”.

 

A ESPERANÇA NO COLETIVO

“Meu pai sempre mantinha, no fundo de si, alguma esperança de que seria possível, afinal, superar, pelo empenho coletivo, os males da situação atual. Embora decepcionado com os rumos da nossa política, ainda acreditava no trabalho consciente de tanta gente séria e generosa para melhorarmos o país”, reflete Viviana Bosi, professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

A docente e José Alfredo, economista, são filhos de Alfredo e Ecléa Bosi (1936-2017), psicóloga, escritora, professora, um dos maiores nomes da psicologia social no Brasil e a grande companheira do intelectual durante a vida.

“Lembro-me com saudade do seu entusiasmo vigoroso e da sua capacidade para compreender e ir na direção de auxiliar todos os que precisavam, à sua volta. Ele era uma pessoa dadivosa, preocupada em distribuir o que tinha de melhor para os que mais necessitavam”, rememora Viviana. Alfredo Bosi também ocupou o cargo de diretor (1998 a 2001) e vice-diretor (1987 a 1997) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, além de ter sido editor da revista Estudos Avançados (1989 a 2019). Sobre esta última função, a professora Viviana Bosi relata:

“Meu pai procurava articular, na revista do IEA, as várias áreas do conhecimento com propostas concretas de atuação para resolvermos problemas importantes, como a saúde e a educação públicas de qualidade, a preservação dos biomas, flora e fauna, a causa indígena, a discriminação racial, a desigualdade econômica, as fontes limpas de energia e tantas outras questões”, enumera.

Antonio Candido e Alfredo Bosi conversam enquanto aguardam o início da Jornada Alfredo Bosi: Cultura e
Resistência, promovida pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em 22 de agosto de 2006

 

MILITANTE INCANSÁVEL

Bosi presidiu, ainda, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns entre 1982 e 1984, era membro da Comissão de Justiça e Paz desde 1987 e foi ativo na luta pela redemocratização. Antes, na década de 1970, a atuação como militante destacado das Pastorais Operárias em Osasco seria marcante na biografia do professor. A experiência atesta a contribuição de Bosi para a consolidação das comunidades eclesiais de base, formadas, em sua maioria, por membros da Igreja Católica identificados com a doutrina da Teologia da Libertação.

Os anos de trabalho na pastoral, enquanto corria a ditadura militar, foram tema do ensaio O Testemunho de Velhos Militantes: Singela Homenagem a Alfredo Bosi, do professor Paulo de Salles Oliveira, titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, do Instituto de Psicologia da USP.

Na produção do artigo, de 2011, Oliveira entrevistou antigos militantes, jovens migrantes à época, que fizeram parte daquele movimento. Colheu depoimentos emocionados, como o da líder comunitária Marinete de Brito Brasil. “Nós nem sabíamos que ele era professor”, relatou Marinete, no ensaio. “O Bosi, para nós, não é o professor; o Bosi para nós não é apenas o amigo. O Bosi para nós é uma pessoa nossa, uma pessoa da gente.”

 

 

Lições do mestre

UMA SELEÇÃO DE OBRAS IMPERDÍVEIS PARA MERGULHAR NO PENSAMENTO DO CRÍTICO

Alfredo Bosi publicou mais de 20 livros, entre eles História Concisa da Literatura Brasileira, de 1970, considerado um cânone. Recebeu o prêmio Jabuti duas vezes. Uma por Dialética da Colonização, de 1992, e outra por Machado de Assis: o Enigma do Olhar, lançado em 1999. Confira uma lista dos seus principais títulos:

História Concisa da Literatura Brasileira (Cultrix, 1970)

Dividido em oito partes, é dedicado aos estudantes universitários, professores e pós-graduados, e reconhecido como a melhor obra do gênero.

O Ser e o Tempo da Poesia (Cultrix, 1977; Companhia das Letras, 2000)

Composto por seis ensaios, venceu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) no ano de seu lançamento.

Reflexões sobre a Arte (Editora Ática, 1985)

Em 80 páginas, a obra traz a visão de Bosi sobre os fenômenos artísticos.

Dialética da Colonização (Companhia das Letras, 1992)

Livro que condensa uma interpretação do Brasil, apresenta, com sensibilidade, as formas históricas que enlaçaram colonização, culto e cultura.

Literatura e Resistência (Companhia das Letras, 2002)

Coletânea de ensaios sobre Basílio da Gama, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e João Antônio, entre outros nomes.

Ideologia e Contraideologia (Companhia das Letras, 2010)

Apanhado de seis séculos de história da civilização ocidental, em busca dos momentos decisivos da luta intelectual entre dominados e dominadores.

Três Leituras: Machado, Drummond, Carpeaux (Editora 34, 2017)

Aqui, Bosi escreve sobre os três autores, que são fundamentais para a cultura brasileira: Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Otto Maria Carpeaux.

Machado de Assis: O Enigma do Olhar (Ática, 1999; WMF Martins Fontes, 2020)

Título que engloba ensaios em torno do olhar machadiano e suas nuances.

Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci (Edusp, 2019)

Neste ensaio, o intelectual reflete sobre o processo criativo do mestre florentino.

 

 

Intérprete agudo do presente

PUBLICAÇÃO CONFIRMA A ATUALIDADE DO LEGADO DO INTELECTUAL

Reflexão Como Resistência (Edições Sesc São Paulo e Companhia das Letras), livro-homenagem de 2018, traz a correspondência inédita mantida entre Alfredo Bosi e nomes como Murilo Mendes, Darcy Ribeiro e Otto Maria Carpeaux, além de estudos e ensaios. O tributo conta com, ao todo, 52 colaboradores, muitos deles ex-alunos de Bosi na USP. A organização é de Augusto Massi, Erwin Torralbo Gimenez, Marcus Mazzari e Murilo Marcondes de Moura, professores da FFLCH-USP.

Para Massi, a seção “Cartas na mesa” é um dos pontos altos do livro. “Através destas cartas, podemos compreender que ele não era um homem voltado somente para o passado, pelo contrário, foi um intérprete agudo do tempo presente, dialogando com a obra de prosadores como João Antônio e Dyonélio Machado assim como com os poetas, entre eles, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar. Isso sem falar em intelectuais da estatura de Antonio Candido e Celso Furtado”, diz o organizador, que mantinha uma duradoura amizade com o mestre.

“Em nossas conversas, a política e a poesia estavam sempre presentes. Este estranho par está bem articulado e entranhado nas premissas teóricas de Ideologia e Contraideologia, cabendo à poesia [contraideologia] confrontar a política [ideologia]. Foi o horizonte crítico que nos propusemos a resgatar na homenagem coletiva de Reflexão Como Resistência. Esse é um conceito e uma práxis que atravessa o pensamento militante do Alfredo Bosi. A poesia é uma forma privilegiada de resistência”, acrescenta Massi.

Para refletir sobre como o intelectual encarava os tempos atuais, Augusto Massi pontua: “Quero lembrar uma frase do escritor francês Romain Rolland, posteriormente resgatada por Antonio Gramsci, e que reflete de forma adequada a postura que Alfredo Bosi procurava adotar ao enfrentar a brutalidade dos tempos atuais: O pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”.

 

A seguir alguns excertos de Reflexão Como Resistência: Homenagem a Alfredo Bosi:

Carta de Raduan Nassar, 25 de fevereiro de 1999

“Li ‘Camus na festa do Bom Jesus’ só na última segunda, entre três e cinco horas da madrugada (...)  Se contei poucas horas depois com o silêncio para acompanhar a tua análise, transitei por outro lado, o tempo todo, entre a leitura do ensaio e o sentimento de que você estivesse me estendendo a mão através dele, o que se confirmou aos meus olhos efetivamente na exortação cheia de luz com que você fecha o teu trabalho.”

Carta de Celso Furtado, 1º de março de 1993

“O seu mapeamento descritivo do acontecer brasileiro no período colonial, resumido em oito pontos, é sem precedente em nossa historiografia pela abrangência e acuidade. A ‘síntese apertada’ em que você integra as dimensões econômica, social e política que engendram o estilo de convivência patriarcal e estamental é particularmente feliz.”

Carta de Otto Maria Carpeaux, 31 de dezembro de 1970

“Querido amigo Bosi, recebi hoje seu livro [História Concisa da Literatura Brasileira] e mal posso lhe dizer da minha emoção. No fim de um ano que certamente não foi dos melhores das nossas vidas, essa grande alegria – não, a melhor das alegrias: testemunho de uma grande e preciosa amizade e a honra de ver meu nome impresso na mesma página dedicada à sua senhora.”

 

 

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